19 de abril de 2024 07:21

“Trem do Bispo – nos trilhos da fé”

Meus amigos leitores,

O presente artigo, assim como o anterior aqui publicado, nos remete às solenidades dedicadas ao Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas. A fé e a devoção expressas em seu portentoso Jubileu motivaram até, dentre a realização de várias obras, a construção de um ramal férreo em Congonhas. Feito único da Igreja Católica no Brasil como parceira empreendedora de uma estrada férrea.

Depois de pronta, essa ligação ficou popularmente conhecida como ‘trem do Bispo’ e possibilitou que romeiros e devotos do Bom Jesus de Matosinhos, alunos e professores do Seminário, padres do Santuário, além dos moradores congonhenses, tivessem um meio de transporte célere com as principais cidades mineiras (e até de outros estados brasileiros) através da estrada de ferro.

Após sua construção e efetiva operacionalização, o ramal desempenhou um marcante papel transformador e modernista, pois alavancou o crescimento de Congonhas permitindo que aqui chegassem levas de empreendedores que apostaram em um novo limiar no então arraial, no descortinar do século 20, além de transformar significativamente o comportamento dos peregrinos e fieis durante os festejos anuais do Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos.

Embarquem nessa leitura e façam uma viagem pela história no “Trem do Bispo – nos trilhos da fé”. Espero que gostem. Boa leitura ou boa viagem…

“Trem do Bispo – nos trilhos da fé”

Congonhas, em seus vários ciclos de desenvolvimento, tem na chegada da estrada de ferro um novo momento em sua história.

Conheça agora um capítulo marcante de sua história ainda desconhecido da maioria dos congonhenses.

A estrada de ferro Dom Pedro II próxima a Congonhas

A Estrada de Ferro Dom Pedro II, fundada em 1858, tem seu ponto de partida na cidade do Rio de Janeiro e segue em direção a Minas Gerais transpondo a serra das Araras, e daí em diante passando por Juiz de Fora, Santos Dumont e Barbacena. E em 1883 chegou a Queluz (Conselheiro Lafaiete) com bitola (distância entre os trilhos) de 1,60m.

A partir de 1884 seguiu sua construção lentamente de Conselheiro Lafaiete em direção ao sertão mineiro até atingir as margens do rio São Francisco e a divisa com o estado da Bahia na década de 1930. Passou próximo da futura capital mineira (Belo Horizonte) em 1891. Porém esse trecho de Conselheiro Lafaiete em diante foi construído com a bitola de 1,00m em razão da diminuição de custos e também do menor raio das curvas, criando assim uma ‘quebra’ em Lafaiete entre os trens obrigando os passageiros que seguiam viagem a realizar a baldeação de um trem para o outro.

E dessa forma, no final do século 19, o então distrito de Congonhas passou a contar de maneira indireta com os serviços da EFDPII após a inauguração da estação ‘Soledade’, no distrito de mesmo nome, em 25 de agosto de 1886.

O distrito de Soledade (hoje Lobo Leite) foi incluído no projeto ferroviário que conectou a então capital mineira Ouro Preto – através do ramal que partia de São Julião (atual Miguel Burnier) – e a cidade do Rio de Janeiro (capital federal à época), por ser o primeiro povoado do vale do Paraopeba depois de Lafaiete, em direção a Ouro Preto e Itabirito, considerado local ideal para iniciar o contorno da serra de Ouro Branco e também para atender aos distritos de Ouro Branco e Congonhas (ambos ainda pertencentes a Ouro Preto).

Como o distrito de Lobo Leite está distante cerca de 8 km do centro de Congonhas, o viajante que desembarcasse na estação ‘Soledade’ teria ainda que completar sua viagem a pé ou em lombo de animal através do caminho velho da Estrada Real.

Com a proclamação da República em 1889 a EFDPII foi rebatizada para Estrada de Ferro Central do Brasil e a estação ‘Soledade’ teve seu nome alterado para ‘Congonhas’ por atender ao distrito de Congonhas.

Origens do ramal férreo de Congonhas

Com o crescente desenvolvimento ferroviário no país no final do século 19, a província de Minas Gerais e seu vasto território tornaram-se rapidamente alvo de negociantes interessados em investir na construção de ramais férreos para integrar com maior rapidez suas localidades através de concessões públicas.

Nessa época Congonhas já possuía um grande fluxo de peregrinos em constante visitação ao Santuário do Senhor Bom Jesus, em particular no tradicional Jubileu do mês de setembro e também por alunos do Colégio Matosinhos.

Diante desse cenário e vislumbrando a grandiosa oportunidade em conseguir uma concessão férrea, os sócios e investidores ouro-pretenses José Pinto Penna Firme Ramos e Antônio Mathias da Silva protocolaram em agosto de 1884 na Comissão de Poderes e Obras Públicas de Minas Gerais em Ouro Preto um requerimento pleiteando a construção e exploração de uma ‘linha de bondes com tração a vapor’ entre a estação ‘Soledade’ e o arraial de Congonhas.

Nessa época José Pinto Penna Firme Ramos era Capitão do 1º Corpo de Cavalaria da Guarda Nacional da comarca de Ouro Preto, e gozando de muito prestígio, resolveu pouco antes de sua aposentadoria enveredar-se como investidor, conseguindo a concessão após a aprovação da lei estadual nº 3.651 em 1º/09/1888, que o autorizou a construir um ramal férreo que provesse o arraial de Congonhas com um serviço diário de trens para atender a demanda de seus usuários e também oferecer um serviço de transporte de mercadorias e serviço postal.

Destarte, o projeto inicial previa que o ramal da estrada de ferro de Congonhas, assim chamado inicialmente, empregasse a bitola de 0,76m. Porém essa bitola era inferior à utilizada pela EFCB em sua linha em uso no distrito de Soledade. Tecnicamente essas medidas não permitiriam que um mesmo trem trafegasse em bitolas diferentes.

Autorizado, José Pinto Penna Firme Ramos constituiu no final de 1888 a Companhia Estrada de Ferro Congonhas do Campo e seu próximo objetivo seria a captação dos recursos necessários para iniciar a construção do ramal e colocar os trens para funcionar. No entanto recebeu uma vantajosa oferta e abdicou de seu projeto, transferindo o empreendimento a um grupo de investidores do Rio de Janeiro uma vez que a lei lhe facultava essa possibilidade.

O curioso é que, cerca de três anos depois de outorgada essa concessão, os senhores Randolpho Augusto Baêta Neves e José Calesina de Moares protocolaram em 1891 um pedido semelhante na Câmara Municipal de Queluz (Conselheiro Lafaiete) solicitando a concessão do mesmo ramal, porém sem sucesso.

Nova proposta para a Companhia E.F. Congonhas do Campo

Voltando a José Pinto Penna Firme Ramos e seu sócio, ambos receberam no início de 1889 uma vantajosa proposta e transferiram a concessão da empresa (Cia Estrada de Ferro Congonhas do Campo) para os investidores do Rio de Janeiro Olegário Antônio Coelho, João Vieira da Cunha Guimarães e Sebastião Guillobel que em 26 de junho do mesmo ano, após deliberação de seus acionistas, alteraram a denominação da empresa para ‘Companhia Estrada de Ferro Vale do Paraopeba’.

Detentora da concessão, a empresa estava autorizada a construir o ramal férreo a partir da estação ‘Soledade’ da E.F. Central do Brasil até Congonhas (com extensão de 12 km) e seu diretor-gerente, Antônio Martins Marinhas, convocou todos os acionistas a partir de julho de 1890 e oficializou a construção do ramal férreo.

Iniciado o processo de captação de recursos para a empreitada, a companhia recebeu outra proposta do governo mineiro para também construir um ramal férreo que margeasse o rio Paraopeba até chegar ao rio São Francisco. Essa proposta acabou gerando uma grande discussão sobre qual seria o novo traçado, atrasando por mais de 8 anos o início das obras do ramal de Congonhas.

O Santuário do Bom Jesus entra na sociedade do ramal férreo

Durante o transcorrer da década de 1890 o Santuário do Bom Jesus vivia uma grave crise organizacional e financeira. A Mesa da Irmandade estava em ‘rota de colisão’ com a Diocese de Mariana a qual pertencia e para quem deveria prestar contas.

Crise essa que foi muito bem detalhada na obra do Monsenhor Júlio Engrácia, “Relação Chronológica do Sanctuário e Irmandade do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo (1903)”. Engrácia cita, por exemplo, que em 1895 a situação do Padre Flávio Ribeiro de Almeida, Secretário da Irmandade do Senhor Bom Jesus, ‘era delicada e diante de tantos desacatos achava-se em perigo de morte nas mãos dos desesperados credores, obrigando-o a seguir um sistema paliativo para contornar o problema: realizar constantes empréstimos a altos juros, contraindo dívidas em toda casa onde lhe quisessem vender a prazo, complicando sucessivamente a saída deste labirinto administrativo, preparando fatalmente a queda da Irmandade com grande decepção e vergonha para o Bispo Dom Silvério Gomes Pimenta’.

Júlio Engrácia deixou a paróquia de Itabira do Mato Dentro (atual Itabirito) em março de 1900 com a incumbência e ordem expressa do Bispo Dom Silvério Gomes Pimenta para assumir o compromisso em Congonhas de realizar um minucioso levantamento da situação administrativa e financeira da Irmandade do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Após 20 dias de trabalhos ininterruptos e várias noites sem dormir, Júlio Engrácia concluiu que a Irmandade estava em sérias dificuldades financeiras em virtude do total desequilíbrio das contas e da falta de seriedade com o dinheiro arrecadado das esmolas durante o Jubileu a pelo menos uma década.

Segundo Júlio Engrácia faltava tudo, menos ‘projetos arriscados’ dentro da Irmandade do Senhor Bom Jesus. O Santuário, apesar da decadência financeira descrita, tinha ainda uma ‘tábua de salvação’, que dadas suas economias, podia colocá-lo a salvo do colapso financeiro: possuía 200 apólices entre gerais e estaduais e cadernetas de poupança da caixa econômica. Uma vultuosa quantia para a época.

Júlio Engrácia faz uma citação, no mínimo, curiosa a respeito do que encontrou em sua auditoria: ‘lembrou-se’ a administração do Santuário de empregá-las na construção de um ramal férreo, que partindo de um ponto mais conveniente da Central do Brasil, fosse ao arraial de Congonhas e que sua exploração comercial poderia reequilibrar as finanças da administração do Santuário.

A Irmandade enfrentava uma calamitosa crise organizacional por um lado, e por outro, uma empresa constituída ensejava construir um ramal férreo em Congonhas. Não demorou e seus empresários procuraram a Mesa da Irmandade para propor uma parceira que poderiam tirá-los da dita ‘crise financeira/administrativa’.

Engrácia assim descreveu o ocorrido: ‘o ano era 1895 e ao tornar pública a situação de desespero da Irmandade do Bom Jesus, logo apareceram sem demora os pretendentes à obra, entrando o Santuário com 200:000$ (duzentos contos de réis) de auxílio. Era uma quantia bem apreciável a exploradores, que nessa época esvoaçavam por toda a parte a cata de fortuna rápida e fácil’.

O Bispo Dom Silvério enxergou o perigo de entregar, dessa maneira, o patrimônio constituído da Igreja a aventurosas empresas: relutou o quanto pode, mas foi convencido de que ofereciam ao Santuário as maiores e melhores vantagens, onde lhe foi descrito com maestria os resultados ‘excepcionais’ que o ramal férreo traria aos cofres da Irmandade, como sabem fazer os mercadores de praça pública.

Três propostas foram apresentadas pelos empresários: a primeira comprometia-se a construir o ramal férreo por 350:000$000 entrando o Santuário com 200:000$000, porém não foi aceita. A segunda proposta o fazia por 500:000$000 nas mesmas condições e também foi rejeitada. Uma terceira proposta, que tomava o mesmo compromisso, sob idênticas condições foi ofertada por 750:000$000 sendo essa a proposta que agradou a Dom Silvério, pois aumentava a margem de garantia do empreendimento no qual o Santuário do Bom Jesus custearia somente 1/3 da construção do ramal.

O contrato entre as partes foi celebrado por escritura pública no final de 1895, entrando o Santuário com as 200 apólices que foram entregues na sede da empresa no Rio de Janeiro pelo correspondente da Irmandade, Dom João Duarte, a Francisco Antônio da Silva e seu sócio José Martins Pollo, os novos representantes da Companhia Estrada de Ferro Vale do Paraopeba, detentora da construção e operação do ramal.

No período em que ficou como administrador do Santuário (1895 a 1900) o padre Cândido Veloso viveu dias penosos diante da situação lastimável de desordem administrativa e financeira que vivia a instituição religiosa. As reclamações e queixas quotidianas dos credores e suas exigências levaram ao conhecimento de Dom Silvério a triste e verdadeira situação do Santuário que por sua vez entrou em litígio com a Mesa da Irmandade a tal ponto de anos mais tarde extingui-la judicialmente e empossar o Padre Júlio Engrácia como administrador provisório do Santuário, fato ocorrido em meados de 1900.

Dom Silvério ao ser convencido da construção deste importante e incipiente meio de transporte coletivo não teve alternativa senão apoiar sua construção.

O ramal férreo, inaugurado em 1899, ganhou logo a popular alcunha de ‘trem do Bispo’.

A construção do ramal

Resolvidas as questões de ordem financeira, ficou definido que o ponto inicial do ramal seria o km 479 da EFCB e não mais a estação “Congonhas” (em Lobo Leite) como anunciado anos antes. As obras iniciaram-se em 12/09/1898 com a mobilização e contratação da mão de obra além da aquisição de materiais sendo o gestor da empreitada o engenheiro Antônio A. Horta Barbosa.

No km 479 da linha Centro foi erguida a estação “Jubileu”, ponto de partida do ramal. Seu ponto final seria a estação “Santuário”.

Outro fato importante durante sua construção foi a alteração da bitola para 1,00m compatibilizando com a EFCB, o que permitiu a manutenção dos equipamentos nas oficinas de locomotivas e vagões em Queluz (Conselheiro Lafaiete).

Em seu percurso foram empregadas modernas técnicas de engenharia com destaque para as pontes de 9m e 3m de extensão, cortes e taludes, além de várias obras de arte (bueiros, galerias e canaletas para escoamento de águas pluviais). O engenheiro responsável pelos projetos foi Vicente de Carvalho, que realizou os estudos do traçado dez anos antes, em 1889.

O trajeto do ramal

O ramal foi construído, em toda sua extensão, na margem direita do rio Maranhão dentro dos limites do município de Ouro Preto (Congonhas só seria emancipada em 1938). Do seu ponto inicial, seguiu pela margem direita do ribeirão Soledade até se aproximar, também pela margem direita, do rio Maranhão, continuando seu trajeto pelos atuais bairros Ipiranga e Jardim Profeta e cruzar o córrego ‘Macaquinhos’. Em seguida se aproximava novamente da margem direita do rio Maranhão, transpunha o córrego ‘Goiabeiras’ em direção ao centro de Congonhas margeando o rio com seu leito passando próximo de onde atualmente se localiza o prédio do INSS até seu término entre a praça JK e a esquina das ruas Pe. João Pio e Getúlio Vargas, totalizando aproximadamente 9 km de extensão.

Após sua desativação em 1917, um trecho do leito do ramal férreo foi aproveitado como base para a futura abertura e construção de parte das avenidas Marechal Floriano e Júlia Kubitschek.

As estações

A estação ‘Jubileu’ foi construída seguindo o padrão da época em alvenaria de tijolos e telhas estilo francês. De acordo com uma publicação do jornal “O Paiz” de 18/09/1899, era uma ‘estação elegante’. Após a desativação do ramal a mesma foi demolida. No local ainda podemos ver as ruínas do que foi um dia a estação ‘Jubileu’.

A estação ‘Santuário’ seguiu o mesmo padrão de construção em alvenaria de tijolos. Possuía três linhas, sendo uma principal e duas para manobras além da caixa d’água para abastecimento e uma caixa para depósito das cinzas da fornalha da locomotiva.

A locomotiva e vagões

A E. F. Vale do Paraopeba arrendou uma locomotiva da companhia que construiu a nova capital mineira, Belo Horizonte, no final de 1898. De origem norte-americana, foi fabricada pela Baldwin Locomotive Works em 1896. Era da classe 6 1/3-C com o tipo de rodas 0-4-2 (sem rodas guia, 4 rodas de tração e 2 rodas de apoio para a cabine) com força de tração variando entre 18t a 50t.

Foi rebocada de General Carneiro (próximo a Belo Horizonte) até Congonhas como relatado no jornal ‘O Pharol’ em 24/08/1899.

Os vagões eram do tipo ‘bonde’ e foram fabricados na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1898 e 1899 com o emprego de imbuia, uma madeira abundante e nobre de nossa floresta tropical. Foram construídos pela Companhia Edificadora da Ponta do Cajú cujo responsável era o afamado Comendador Casimiro Costa, conhecido pela alcunha de ‘O Maneta’.

A Diretoria e Funcionários

A diretoria era formada pelo seu Diretor-Presidente José Martins Pollo, o Vice-Presidente Francisco Antônio da Silva e pelo Diretor Tenente-Coronel Sabino de Almeida Magalhães. O engenheiro responsável pelos projetos era Vicente de Carvalho e o engenheiro responsável pela construção e manutenção do ramal, o Sr. Antônio A. Horta Barbosa. Porém, diante da escassez de documentos referentes à empresa não foi possível identificar os funcionários (agente de estação, foguista, fiscal de trem, bilheteiro e equipe de manutenção) que trabalharam no ramal. A exceção fica por conta do congonhense Luiz Saint Clair Vasconcelos que, segundo sua neta Rosa de Vasconcelos Magalhães, foi auxiliar de maquinista da companhia e um dos responsáveis por conduzir o trem entre as estações durante vários anos. E também, ainda de acordo com relatos orais, o agente da estação ferroviária ‘Santuário’ teria sido o português Alberto Teixeira dos Santos (pai do primeiro prefeito de Congonhas, Dr. Albertinho) nos primeiros anos de funcionamento do ramal.

A inauguração do ramal

Após quase 12 meses de obras o ramal estava concluído e pronto para entrar em operação durante o jubileu de 1899 suprindo assim a grande expectativa dos moradores de Congonhas e localidades vizinhas em usufruir do novo e moderno meio de transporte coletivo.

Congonhas entrava definitivamente no rol das localidades atendidas pelas ferrovias brasileiras quando em 1º de setembro de 1899 era oficialmente aberta ao tráfego de trens a estação ‘Jubileu’ – ramal de Congonhas, da Estrada de Ferro Vale do Paraopeba.

Em nota o jornal “A Imprensa” do Rio de Janeiro, cujo diretor-chefe era o notável Ruy Barbosa, destacou em 02/09/1899 a inauguração da estação ‘Jubileu’:

O conhecido comerciante de nossa praça, sr. José Pollo, enviou-nos o seguinte telegrama, de Jubileu:

Jubileu.1 – peço-lhes que deem notícia da abertura, realizada hoje, da estação de Jubileu, correspondência do ramal de Congonhas do Campo.

Houve grande regozijo. O povo veio esperar o S1, primeiro trem de passageiros que aqui parou, tendo à sua frente as principais autoridades, outras pessoas importantes e uma banda de música.

A visita de Dom Silvério e do Diretor da Central do Brasil

Apoiador da construção do ramal férreo, Dom Silvério Gomes Pimenta esteve em Congonhas para celebrar a benção final do Jubileu aos fiéis e também para conhecer o funcionamento e os serviços prestados pela Companhia Estrada de Ferro do Paraopeba.

Sua visita foi notícia no jornal ‘Minas Gerais’ na edição do dia 15/09/1899:

Terminaram ontem os tradicionais festejos de Congonhas do Campo, que foram este ano imensamente concorridos.

As esmolas que os fieis deixaram nas salvas, segundo nos informaram, elevaram-se à algumas dezenas de contos de reis.

O sr. Dom Silvério, bispo desta diocese, presidiu aos últimos atos, ministrando o sacramento da eucaristia e dando a benção episcopal.

Não nos consta que tenha havido a menor perturbação da ordem pública, correndo tudo na melhor ordem e estiveram muito animadas as feiras.

Dizem-nos que foi tal a concorrência de fieis que houve necessidade de se estabelecer no arraial de Congonhas um serviço contínuo de trens para dar vazão aos passageiros.

À disposição do Bispo, que chegou em Congonhas no dia 12, foi posto um carro especial pelo Dr. Alfredo Maia, diretor da E. de Ferro Central, que o conduziu à estação do Jubileu.

Outra presença ilustre foi a do Diretor Geral da E. F. Central do Brasil, Alfredo Eugênio de Almeida Maia (no cargo entre abril de 1899 a janeiro de 1900), que viajou à Minas Gerais para inspeção das linhas férreas sob sua responsabilidade, chegando em Congonhas no dia 10 de setembro de 1899 logo após a inauguração do ramal. Foi recebido pela população local com um grande festejo. Em sua comitiva estava o Ministro da Bélgica, sr. Alberic Fallon, diversos engenheiros da EFCB além de vários repórteres da imprensa fluminense que durante a permanência em Congonhas visitaram o Santuário do Senhor Bom Jesus ficando todos extasiados diante das magníficas obras de arte e de tamanha demonstração de fé e devoção dos romeiros. A visita de Alfredo Eugênio a Congonhas foi destaque nas páginas do jornal ‘O Paiz’, do Rio de Janeiro, na edição de 18/09/1899.

Da intenção inicial em se construir o ramal férreo em 1884 até seu efetivo funcionamento no final de 1899, se passaram mais de 15 anos devido as dificuldades financeiras, incertezas técnicas e dos múltiplos objetivos de seus empreendedores iniciais.

Mas agora era realidade e o ‘trem do Bispo’ funcionava a todo vapor cortando o vale do rio Maranhão (tributário do Rio Paraopeba), transformando o ir e vir dos romeiros em direção ao Santuário Bom Jesus.

As peregrinações de romeiros à Congonhas

Tão logo se deu a inauguração do ramal ferroviário de Congonhas, as peregrinações de romeiros em direção ao Santuário, que antes eram feitas a pé, em lombo de animais ou em carros de bois (quando era possível), se intensificaram rapidamente após a oferta do novo meio de transporte. Essas peregrinações passaram a serem noticiadas com galhardia pelos jornais da época. Cabe ressaltar que quase a totalidade da população brasileira tinha no catolicismo sua principal religião em fins do século 19.

A primeira grande peregrinação de romeiros após a inauguração do ramal partiu da estação central de Juiz de Fora com um número estimado de 500 pessoas e teve a cobertura do jornal ‘O Pharol’ que a estampou em sua edição do dia 27/03/1900.

Coordenada pelo padre Júlio Maria foram distribuídos estandartes e entoado o hino dos peregrinos. A locomotiva foi devidamente ornamentada e a Central do Brasil disponibilizou 5 vagões de 1ª classe além de outros 5 vagões de 2ª classe para a viagem, com os peregrinos dando um belo exemplo de fé até à estação Jubileu, quando todos ali fizeram a baldeação para o ‘trem do Bispo’ para concluírem a peregrinação.

O Santuário entra em litígio com a Companhia E.F. Vale do Paraopeba

Assim que o ramal entrou em operação e de acordo com as cláusulas contratuais firmadas entre as partes, a Mesa da Irmandade deveria receber mensalmente os percentuais estipulados, mas a Diretoria da EFVP não honrou sua parte contratual obrigando a Irmandade do Senhor Bom Jesus a realizar várias tentativas, sem êxito, em receber o que lhe era devido.

Após um breve período em que as negociações não obtiveram sucesso a Mesa da Irmandade ‘declarou guerra’ e foi buscar na Justiça reaver o que lhe era de direito entrando em litígio com a EFVP. Padre Júlio Engrácia descreveu com clareza em sua obra o ocorrido:

O ramal férreo, em má hora e piores auspícios iniciado era outro espinho da administração do Santuário.

Os empresários, que por documento se tinham obrigado ao juro de 8% sobre o capital recebido, ao passo de entrega, e a 10% dos lucros da exploração da estrada, ainda não tinham feito nenhum repasse ao Santuário no início de 1900.

Estavam eles de posse de tudo como se fora próprio, e explorando a sós e apesar da formula convencional de desejar qualquer resolução que não lesasse o Santuário e na verdade lesando-o só faziam pretextar prejuízos.

A Irmandade, depois de tentativas pacíficas, sem possibilidade de solução e vendo que o Santuário era ludibriado, tomou por advogado o Exmo. Sr. Senador Virgílio de Mello Franco e sequestrou-lhes todo o material fixo e rodante e a lide levada aos tribunais, tem sempre triunfado nos interesses e direitos do Santuário.

O assunto tomou proporções inesperadas e fugiu dos domínios da Irmandade sendo o fato explorado pelo jornal ‘O Pharol’ em sua edição de 27/10/1900.

Júlio Engrácia destacou que a boa-fé que presidia a empresa, sem que prove o contrário, foi revelada pela brilhante façanha praticada pelo empregado dos empresários, carregando consigo e remetendo aos patrões do Rio de Janeiro ou a outro local sem o devido conhecimento, os livros por onde constam os rendimentos da companhia férrea, esquecendo-se, como acontece com pessoas com esse intento, de que tudo o que está em seus livros se acha também por força da lei no arquivo do engenheiro residente e este é público à necessidade da parte lesada.

A companhia ao agir dessa forma criou uma enorme dificuldade para a administração do Santuário em receber a parte devida sendo necessária a intervenção da Justiça para solucionar a questão. E em sua incansável luta para reaver o que foi acordado e investido na EFVP, Júlio Engrácia acabou sendo designado judicialmente como fiel depositário do ramal férreo em 1903. As divergências entre a empresa e a administração do Santuário se arrastaram por longos anos até que, em 1912, o padre João Pio sucedeu a Júlio Engrácia na administração do Santuário e iniciou uma nova era organizacional que equilibrou suas finanças. Enérgico, João Pio aumentou ainda mais o rigor no cumprimento das obrigações contratuais da companhia férrea para com o Santuário. Rigor este mantido até a desativação do ramal no final de 1917.

O auge e o declínio do ramal

Na primeira década de seu funcionamento o ramal férreo experimentou dias gloriosos ao oferecer aos peregrinos e fieis que se dirigiam a Congonhas, comodidade e rapidez entre as estações Jubileu e Santuário. Os maiores fluxos de passageiros aconteciam em setembro, mês em que se celebra o concorrido Jubileu. Mas as caravanas de peregrinos se avolumaram em diversos outros períodos do ano gerando movimentação no ramal, como nos meses de março e junho e também durante a Semana Santa.

Com fluxo ascendente, em 1905 foi necessária a criação de uma linha do Correio solicitada pelo Padre Júlio Engrácia visando maior celeridade no envio e recebimento das correspondências do Colégio Matosinhos e da administração do Santuário. E em 1909 foi registrado um aumento extraordinário de passageiros que embarcaram nos trens da Central com destino à Congonhas em razão das festividades de mais um Jubileu. No ano seguinte, e mesmo com o aumento dos custos operacionais e reajuste no preço das passagens, o movimento de peregrinos continuou crescendo como registrou o jornal ‘Pharol’ em sua edição de 13/09/1910 fazendo crítica à Central do Brasil:

Nesses últimos dias têm passado por esta cidade (Juiz de Fora) numerosas levas de romeiros, que vão assistir às tradicionais festas de Congonhas do Campo.

Os trens passam repletos de tal maneira que até nos para-choques dos carros se empoleiram viajantes.

A Central, como sempre, prima em não melhorar seu serviço nesses dias em que há tanta concorrência em seus trens.

Mas a partir de 1910 a E. F. Central do Brasil e o governo de Minas iniciaram a construção do ramal do Paraopeba (partindo de Joaquim Murtinho até Belo Horizonte margeando o rio Paraopeba), obra essa que utilizou uma leva muito grande de mão-de-obra estrangeira no qual muitos espanhóis, italianos e portugueses chegaram e fixaram residência em Congonhas através do ‘trem do Bispo’. Após a inauguração do ramal do Paraopeba em 1917 o movimento do ramal férreo de Congonhas foi rapidamente ‘engolido’ pela concorrência e sua desativação se deu no final de 1917.

Após 18 anos de atividades, a Estrada de Ferro Vale do Paraopeba era desativada por não mais oferecer celeridade e comodidade no transporte de passageiros e romeiros. Como seus usuários eram obrigados a fazer a baldeação entre os trens na estação Jubileu, após a inauguração do novo ramal da Central, o passageiro desembarcava diretamente na estação ‘Congonhas do Campo’, mais próxima da ladeira que os levaria ao Santuário.

Legado

O Jubileu do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas representa um dos mais importantes patrimônios imateriais não só de Minas, mas também de todo o Brasil. E esse patrimônio cultural e seus bens intangíveis são portadores de elementos que definem uma coletividade e sua história. Trazem consigo uma enorme riqueza de práticas, usos, costumes e musicalidade. O Jubileu transmite a imaterialidade produzida pela cultura de um povo representando sua identidade e história.

A relação da cidade de Congonhas e de seu povo com o Jubileu é intensa. O surgimento do arraial se deu de duas formas: a mineração do ouro e a fé ao Bom Jesus. O lado direito do rio Maranhão foi desenvolvido pelas atividades de mineração e seu lado esquerdo floresceu diante da devoção ao Bom Jesus. A peregrinação crescente e constante de pessoas criou a necessidade de se investirem infraestrutura. Assim, para servir ao Jubileu, foram construídas casas de hospedagem (as romarias) para os peregrinos, ruas foram calçadas, construídos aterros e reforços nas encostas dos morros, aquedutos, colégio e o resultado é o imponente complexo arquitetônico religioso da Basílica do Bom Jesus, que abriga obras dos maiores artistas mineiros dos séculos 18 e 19.

Mas um dos maiores investimentos feitos pela Igreja Católica em Congonhas foi a participação na construção do ramal férreo que conectou o então arraial ao restante do sistema ferroviário do país permitindo que um número cada vez maior de romeiros viesse à Congonhas demonstrar sua fé e práticas religiosas populares que, apesar de se transformarem no tempo, ainda hoje conservam o seu cerne – a fé ao Bom Jesus.

O ‘trem do Bispo’ circulou por quase duas décadas e modificou o cotidiano do arraial, principalmente no que diz respeito a permanência dos romeiros durante as festividades do secular Jubileu.

Foi idealizado e construído em uma época de parcos recursos e grande dificuldade técnica sendo por si só um destacado e audacioso projeto que, ao final de suas negociações, teve o aval do Bispo Dom Silvério Gomes Pimenta – grande incentivador do desenvolvimento de sua terra natal.

Fontes consultadas:

Livros:

  • Almanack Administrativo, Mercantil, Industrial, Scientifico e Litterario do Município de Ouro Preto – Anno I – 1890 – Typographia A Ordem
  • Revista Industrial de Minas Gerais – 1897 – Setembro/Novembro – nºs 28 a 32 – Ouro Preto
  • Relação Chronológica do Sanctuário e Irmandade do Senhor Bom Jesus de Congonhas do Campo no Estado de Minas Geraes –1905 – Pe. Júlio Engracia
  • Memória Histórica da Estrada de Ferro Central do Brasil – 1908 – Manuel Fernandes Figueira – Rio de Janeiro – Imprensa Nacional
  • Revista Eu Sei Tudo – Edição nº 9 –1925 – Rio de Janeiro – Companhia Editora Americana
  • Anuário Minas Gerais – 1925 – Belo Horizonte – Imprensa Oficial
  • A Estrada de Ferro Central do Brasil – 1928 – Max Vasconcelos – Rio de Janeiro – Typographia Pimenta de Mello & C.
  • Bom Jesus – 1948 – Djalma Andrade – Congonhas – Tipografia Senhor Bom Jesus
  • Arte e Paixão – Congonhas do Aleijadinho – 2016 – Fábio França – Congonhas – Editora C/Arte

Sites:

  • Site Estações Ferroviárias – www.estacoesferroviarias.com.br/
  • Portal Educação – História das Ferrovias no Brasil – www.portaleducacao.com.br
  • Site Instituto Moreira Sales – Brasiliana Fotográfica

Museus e Bibliotecas:

  • Museu da Imagem e Memória de Congonhas/MG
  • Museu da Mineração de Congonhas/MG
  • Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa – Belo Horizonte/MG
  • Hemeroteca Histórica de Minas Gerais
  • Arquivo Público Mineiro

Jornais e revistas:

  • A Província de Minas – Ouro Preto/MG, edições: 04/01/1884, 01/10/1887, 14/08/1888 e 22/08/1888 
  • A União – Ouro Preto/MG, edições: 10/03/1888 e 17/03/1888
  • Liberal Mineiro – Ouro Preto/MG, edição: 12/11/1884
  • Minas Gerais – Ouro Preto/MG, edições: 12/03/1890, 19/05/1892, 22/05/1892, 10/01/1893, 16/01/1896, 20/08/1896, 24/07/1897, 30/07/1897, 14/08/1897, 30/08/1897, 15/01/1898, 14/03/1898, 17/09/1898, 18/01/1899, 22/08/1899, 15/09/1899, 05/10/1899 e 06/10/1899
  • O Pharol – Juiz de Fora/MG – edições: 09/08/1888, 17/08/1895, 17/09/1895, 24/08/1899, 29/09/1899, 17/03/1900, 25/03/1900, 27/03/1900, 27/10/1900, 29/01/1904, 30/12/1904, 07/04/1905, 11/09/1909, 10/12/1909, 25/08/1910, 28/09/1910, 13/09/1911 e 17/07/1919
  • Diário de Minas – Juiz de Fora/MG – edição: 25/01/1889
  • Correio de Minas – Juiz de Fora/MG – edição: 30/08/1898
  • A Imprensa – Rio de Janeiro/RJ – edições: 02/09/1899, 13/09/1899, 14/09/1899, 18/09/1899, 25/10/1899 e 28/11/1911
  • Jornal do Commercio – Rio de Janeiro/RJ – edições: 05/10/1890, 25/01/1891, 28/12/1892 e 29/08/1898
  • O Paiz – Rio de Janeiro/RJ – edições: 24/01/1889, 18/07/1890, 14/09/1899, 18/09/1899 e 22/06/1917
  • A União – Rio de Janeiro/RJ – edições: 27/09/1914, 23/02/1919, 03/09/1922 e 02/11/1922
  • O Cruzeiro – Rio de Janeiro/RJ – edição: 10/09/1890
  • Gazeta da Tarde – Rio de Janeiro/RJ – edição: 08/10/1889
  • Gazeta de Notícias – Rio de Janeiro/RJ – edições: 25/08/1899, 17/01/1901, 08/06/1904, 13/01/1906, 16/09/1907, 20/09/1907 e 04/05/1910
  • Jornal do Brazil – Rio de Janeiro/RJ – edições: 15/05/1891, 04/09/1893, 14/08/1902 e 20/06/1905
  • Correio da Manhã – Rio de Janeiro/RJ – edição: 30/05/1903
  • Relatório Presidência de Minas – Belo Horizonte/MG – edições de 1911 e 1917
  • Anuário Estatístico de Minas Gerais – Belo Horizonte/MG – edições: 1906 e 1911
  • Revista de Estradas de Ferro – Rio de Janeiro/RJ – edição nº 49 – 31/01/1889
  • Revista de Engenharia – Rio de Janeiro/RJ – edições: 14/03/1890, 14/04/1890 e 14/06/1890

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