Desterro de Entre Rios. “Se eu fosse você, não entrava ali, não. O boato é que esse pessoal que estava aí mexe com coisa ruim. Fazem magia negra e sacrifício com crianças. Que Deus te livre de pegar uma maldição”. Os conselhos eram dados por uma assustada vizinha de uma casa depredada, com janelas e portas arrancadas, em Desterro de Entre Rios, na região Central de Minas. No último dia 5, o local foi palco de uma confusão, quando cerca de 30 moradores expulsaram da cidade dois homens e uma mulher que estavam de mudança para o imóvel.
Apesar de nunca antes vistos no pequeno município, de pouco mais de 8.000 habitantes, os forasteiros – um homem negro, outro branco e gordo e uma mulher loira – levaram desconfiança ao local. Antes mesmo de chegarem à cidade, imagens das identidades dos três já circulavam pelo WhatsApp junto com áudios de supostos moradores de municípios vizinhos, dando conta de que eles “cultuavam o demônio e raptavam crianças”.
“Eles estavam em Morro de Ferro (distrito de Oliveira) desde o início de agosto, e lá acabou a paz. Minha irmã falou que só vê mãe abraçada com os filhos, porque eles andam em um carro preto, com a placa do Rio de Janeiro (RJ), vidro preto, e não baixam por nada… E já foi pego dois meninos lá para o sacrifício deles”, dizia um dos áudios. As mensagens ainda faziam um alerta que os viajantes já haviam saído de Morro de Ferro e estavam em direção a Desterro de Entre Rios ou a Passatempo, porque teriam pedido informações sobre as duas cidades em um supermercado do distrito.
Com a circulação dos áudios e com a chegada do trio, moradores de Desterro de Entre Rios começaram a se mobilizar. Primeiro, procuraram a Polícia Militar (PM) para tentar que ela tomasse alguma atitude em relação aos visitantes. “Além do carro com vidro escuro, os três ainda chegaram vestidos de preto. Lembro que fiz o sinal da cruz na hora. Eles eram muito estranhos. Não falavam nada com ninguém e só andavam de cara amarrada. Era de pôr medo, sim”, disse a vizinha do imóvel, que pediu para não ser identificada. O receio do trio se alastrou para outras pessoas da cidade.
Diante da apreensão, a Polícia Militar (PM), mesmo sem nenhum indício de crime, realizou um levantamento e buscou informações do trio com policiais de Morro de Ferro e Passatempo. A resposta foi que os áudios eram inverídicos e que nada de ilegal havia sido cometido por eles até o momento.
Confusão O comunicado policial, porém, foi incapaz de evitar que alguns moradores, inconformados com a permanência dos três, resolvessem agir por conta própria. Armadas com pedras e tacos de madeira, cerca de 30 pessoas foram até a casa alugada pelo trio e surpreenderam todos, que ainda estavam em processo de mudança para o local.
“Foi uma coisa de louco. O povo tinha falado que ia fazer uma manifestação contra eles e já veio na base da violência. A confusão só parou quando a polícia chegou, e, por pouco, ninguém se feriu”, contou o aposentado Ângelo de Oliveira, 71.
Além da casa destruída, o Chevrolet Corsa preto que os três usavam também ficou danificado. Ele teve a lataria amassada e um vidro trincado. Após fazerem um boletim de ocorrência, as vítimas devolveram a casa alugada e não foram mais vistas na cidade. Existiam informações de que os três teriam voltado para Morro de Ferro, mas eles também não foram localizados no distrito pela reportagem de O TEMPO.
O medo de alguns moradores das localidades, no entanto, ainda permanece. Na semana passada, alguns estudantes, conforme moradores, ainda relutavam para ir até a escola ou só iam acompanhados dos pais. “Minha filha está um choro só. A notícia é que eles vão voltar aqui para se vingar. Pode ser só boato, como parece ser o outro, mas o que nos resta é rezar e pedir proteção a Nossa Senhora”, disse uma moradora, que pediu anonimato e, assim como outros entrevistados, negou ter participado da expulsão.
Investigação
Polícia Civil. Procurada, a Polícia Civil informou que abriu inquérito para apurar o ocorrido e identificar as pessoas envolvidas na depredação do imóvel. As investigações estão sendo coordenadas pela delegacia da vizinha Entre Rios. Não há prazo para conclusão.
Polícia Militar.
Em um comunicado pelo Facebook, no dia 2 de setembro, a PM de Desterro de Entre Rios disse aos moradores que o boato contra os três novos moradores era mentiroso e que os áudios era “um tipo de discriminação por conta do modo de ser dessas pessoas, por causa da religião que seguem”.
Paradeiro de trio ainda é desconhecido
Após serem expulsos de Desterro de Entre Rios, na região Central de Minas, o destino dos dois homens e da mulher apontados como raptadores de crianças e praticantes de magia negra é desconhecido. Boatos na cidade davam conta de que eles teriam retornado ao distrito de Morro de Ferro, onde o trio chegou no início de agosto.
A reportagem de O TEMPO também esteve no distrito, onde o clima era de apreensão. “Olha, ninguém sabe ao certo de onde eles são. Um deles falou que era carioca, mas só isso. Eles realmente voltaram aqui após o tumulto de Desterro, mas parece que foi só para pegar o resto das coisas da casa onde estavam aqui. Agora, para onde foram, só Deus”, disse o aposentado Mário Henrique, 72.
Segundo o aposentado, eles realmente não fizeram nada de errado. As atitudes deles, no entanto, é que causaram apreensão. “Eles eram bem fechados, andavam só de roupa preta, e, durante a noite, havia uma barulheira na casa deles até por volta das 3h. Era barulho de choro”, disse o aposentado, acrescentando que acredita que eles haviam se mudado porque “não haviam sido bem recebidos pela população”. As Polícias Civil e Militar não informaram a naturalidade do trio. (JC)
Dono de imóvel fica no prejuízo
Com a confusão em Desterro de Entre Rios, quem ficou no prejuízo, além do trio expulso, foi o proprietário do imóvel alugado, o aposentado Paulo Inácio Cardoso, 82. Como as janelas e as portas foram arrancadas, a casa de apenas três cômodos ficou destruída. Quando a reportagem esteve no local, ainda havia entulho.
“Eu não tinha nada a ver com isso e nunca fiz mal nenhum a ninguém daqui de Desterro. Aluguei o barraco só por R$ 100, e o preço que estava cobrando era de R$ 500. Fiz isso porque um deles me contou que estava passando por uma situação difícil. Eles pareciam honestos e sinceros. Agora vou ter que esperar a investigação para poder fazer a reforma”, contou.
Segundo Cardoso, não houve contrato de aluguel, e ele ainda devolveu o dinheiro que havia recebido dos inquilinos. Os trio também lhe devolveu as chaves do imóvel.
Pacata
Para Cardoso o que ocorreu não representa uma característica da população da cidade. “Posso te falar que eu acho que a maioria é bem receptiva”, afirmou. Opinião semelhante à da comerciante Lucéa Rezende, 53. “É uma vergonha e traz uma imagem negativa para a cidade”, lamentou. (JC)
Fonte: o Tempo