Nós temos que entender que estamos lidando com uma doença de transmissão respiratória. Vamos pegar a história do sarampo — sarampo também tem transmissão respiratória. Ou você tem altas coberturas vacinais, ou você não controla.”
Quando a experiente cientista Marilda Siqueira, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), fala em “alta cobertura vacinal”, no caso do sarampo, significa ter mais de 95% da população-alvo imunizada.
Hoje, quando o país vive o pior momento desde que a pandemia começou, um ano atrás, cerca de 3,75% dos brasileiros receberam a primeira dose da vacina contra a doença causada pelo Sars-CoV-2.
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Para achatar a curva que contabiliza os números diários de novos casos e óbitos por covid-19, o país precisa ter acesso a um volume maior de imunizantes, ao mesmo tempo em que a população “faz sua parte” para evitar a disseminação do vírus, diz a especialista, que há um ano participa ativamente dos esforços da comunidade científica brasileira para barrar o avanço do coronavírus.
“Não adianta a gente entrar com um programa de vacinação se a população não ajuda. Pode demorar muito pra gente ver a situação controlada.”
A chefe do Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) fala com conhecimento de causa: em 2016, junto com outras três autoridades, ela recebeu o certificado da eliminação da rubéola e do sarampo no Brasil pela Organização Panamericana de Saúde (Opas), braço da Organização Mundial de Saúde (OMS) nas Américas.
O trabalho começou 24 anos antes, com uma ampla campanha de vacinação em 1992, quando o sarampo matava no mundo cerca de 2,5 milhões de crianças, um número próximo ao número de vítimas do Sars-CoV-2 em um ano de pandemia.
“A gente conseguiu imunizar 96% da população-alvo, que eram crianças menores de 14 de idade, em um mês e pouco. Foi um sucesso absoluto.”
De um ano para outro, o número de casos notificados no país caiu 81%, de 42.934 em 1991 para 7.934.
A maior campanha de vacinação do mundo
Marilda trabalhou na vigilância laboratorial e epidemiológica do programa, à frente do Laboratório de Vírus Respiratórios. A coordenação da força-tarefa, ela frisa, ficou a cargo do Programa Nacional de Imunizações, o PNI, ligado ao Ministério da Saúde.
Naquela época, a cientista fazia o doutorado em Microbiologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Formada em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), a paulista de Catanduva se mudou para o Rio de Janeiro no fim dos anos 1970 para fazer a especialização em Microbiologia e Imunologia e o mestrado em Biologia Parasitária na Fiocruz.
No início dos anos 1990, o mundo já havia conseguido erradicar a varíola, e as Américas tinham feito um bom trabalho no controle da poliomielite.
“A pergunta que se fez então foi: qual seria a outra doença que tem impacto sobre a saúde das populações e para a qual há boa vacina? O sarampo.”
O Brasil fez a maior campanha de vacinação do mundo até então — imunizou 48 milhões de crianças e adolescentes entre de 22 de abril e 25 de maio de 1992 — e virou modelo.
O laboratório de Marilda passou a treinar equipes de outros países e a disseminar a metodologia baseada no tripé de ampla imunização e vigilância laboratorial e epidemiológica.
“Eu lembro que um ano ou dois depois fui ao Uruguai a convite do Ministério da Saúde para dar uma palestra lá — algo mais relacionado a questões laboratoriais, mas apresentei gráficos de questões epidemiológicas. Quando falei que tínhamos vacinado 48 milhões de crianças menores de 14 anos de idade, várias pessoas da plateia me interromperam e pediram que eu repetisse o número — a população do Uruguai era de 3,5 milhões”, ela recorda.
“Para muitos países essa estratégia utilizada pelo Brasil foi como se acendesse uma tocha, um raio de luz no final de um túnel.”
A ideia era que, se um país de grande extensão territorial, socialmente desigual, com cidades em locais remotos, outras densamente povoadas e com favelas conseguiu fazer um programa de vacinação em massa, outros também conseguiriam.
“Foi muito bonito. Fico até emocionada quando me lembro.”
Além da ampla divulgação — com o objetivo de sensibilizar a população em geral, a classe política e os profissionais de saúde —, o plano de eliminação do sarampo contou com campanhas nos anos seguintes para eliminar o volume de crianças ainda suscetíveis à doença.
Ao mesmo tempo, contava com uma vigilância epidemiológica intensiva dos casos suspeitos e com o diagnóstico de todo caso suspeito notificado, para que as autoridades de saúde pudessem se antecipar a eventuais surtos e terem tempo de agir para evitar uma piora do quadro.
Um trabalho parecido foi feito com a rubéola, levando em consideração as particularidades da doença. A vacina era dada em conjunto com a do sarampo, com a dupla viral ou a tríplice viral, que também protege contra caxumba.
O país recebeu o certificado de eliminação em 2016 — mas acabou perdendo três anos depois, em 2019, em parte pela queda expressiva da cobertura nacional.
Em 2017, conforme os dados do Programa Nacional de Imunizações (PNI), o percentual de imunizados nos grupos-alvo chegou a 83,8%. No ano seguinte, houve surtos em diversos Estados, com um volume total de mais de 10 mil casos.
E, no meio do caminho, tinha uma pandemia…
Enquanto o país tentava aumentar os índices de vacinação, que vinham caindo de forma quase generalizada nos anos anteriores, estourou a pandemia de covid-19 — e a rotina de Marilda se transformou completamente.
À frente do Laboratório de Vírus Respiratórios e Sarampo, de referência nacional, a cientista trabalhou no início para capacitar laboratórios em todas as regiões do país para que pudessem processar exames diagnósticos para a doença. Os únicos laboratórios de referência regionais eram o Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, e o Evandro Chagas, no Pará.
Naquele momento, o esforço foi para capacitar os Laboratórios Centrais de Saúde Pública (Lacens), distribuídos pelos diferentes Estados, para que processassem testes de PCR, e para desenvolver protocolos para o diagnóstico da doença.
O Instituto Oswaldo Cruz, ao qual o laboratório de Marilda é vinculado, também ajudou no desenvolvimento do kit diagnóstico molecular do Instituto Biomanguinhos.
As longas jornadas se tornaram extenuantes. Entre fevereiro e maio, a cientista trabalhou de forma ininterrupta. Hoje, a jornada vai geralmente 5h30 da manhã até perto de 22h — quando consegue, ela tira o domingo de folga.
Passado um ano do início da pandemia, a situação no país teve uma piora significativa e, diante do surgimento de variantes preocupantes do coronavírus, há uma urgência de ampliação da chamada vigilância genômica — o trabalho de sequenciamento do genoma do vírus para entender quais linhagens estão se espalhando pelo país e com qual velocidade.
Esse tem sido um dos focos do laboratório, por meio da rede genômica da Fiocruz, que conta com instituições em 11 Estados e analisa amostras de todo o país.
Os laboratórios têm feito sequenciamento genético desde o início da crise sanitária, graças à expertise adquirida pela vigilância genômica do vírus influenza feita há anos pelo grupo e da experiência recente com a epidemia de H1N1, entre 2009 e 2010.
O volume de amostras sequenciadas até então, contudo, era baixo, em parte devido à escala sem precedentes da crise sanitária, que fez com que os laboratórios tivessem muitas vezes que priorizar o processamento de exames diagnósticos de covid.
O Brasil contribuiu com 3,7 mil entre os mais de 660 mil genomas sequenciados compartilhados na plataforma pública Gisaid — um número elevado se comparado com outros na América Latina, mas ainda baixo se comparado com países que têm feito uma boa vigilância genômica.
Esse acompanhamento produz dados importantes para embasar decisões de política pública que vão de lockdown a distribuição de vacinas e, por isso, é fundamental dentro da estratégia de controle da doença.
É ‘mais complexo’ vacinar agora
De volta à campanha de eliminação do sarampo, a cientista compara os dois momentos e diz acreditar que a estratégia de vacinação no caso da covid-19 é “muito mais complexa”.
Um primeiro ponto, para ela fundamental, é a questão do acesso às vacinas, hoje ainda limitado. Mas o país enfrenta outros problemas que se colocam como obstáculo: uma desconfiança da população muito grande, a polarização política no país, “que também influencia”, uma falta de organização e de estratégia melhor definida em todos os três níveis de governo — “não só de vacinação, mas estratégias de controle”.
“Em locais onde ainda há alta transmissibilidade, não deveríamos fazer um outro lockdown?”, questiona.
Para controlar a disseminação do coronavírus, diz a cientista, a participação da população é fundamental. Os brasileiros estão esgotados, mas é preciso entender o custo de não seguir as recomendações de distanciamento social, das aglomerações.
“O individual interfere no coletivo. Essa noção tem que estar clara para as pessoas”, diz ela.
“Essa conscientização se perdeu um pouco no meio de tantas questões que começaram a surgir com a pandemia.”
Isso vale também para as vacinas, que são alvo de uma miríade de notícias falsas que desencorajam a população de se imunizar. Assim como no caso do sarampo, frisa Marilda, a ampla cobertura vacinal é fundamental para controlar o Sars-CoV-2.
“O controle hoje — veja, não estamos falando de eliminação, mas de controle — depende basicamente de três fatores essenciais: as vacinas, as estratégias utilizadas pelos três níveis de governo e a aderência da população às estratégias corretas”, destaca.
“Sem esses três fatores vai ficar muito complicado. A gente vai ter um ano difícil se isso não acontecer.”