O Brasil vive o momento mais dramático da pandemia da covid-19 e as mulheres brasileiras não terão nada a comemorar no Dia Internacional da Mulher, em 08 de março de 2021. O país atingirá 11 milhões de infectados pelo SARS-CoV-2 no Dia das Mulheres e deve ultrapassar os números acumulados da Índia até meados de março, ficando atrás apenas dos EUA. Também está se aproximando de 270 mil vidas perdidas, se distanciando do terceiro lugar ocupado pelo México com cerca de 200 mil mortes. A primeira semana de março foi a mais terrível desde o começo da pandemia e o Brasil ultrapassou a União Europeia e os EUA na média móvel diária de casos e óbitos. Em 7 dias, o país registrou mais do que o dobro das mortes que ocorreram na China. Na semana epidemiológica de 28/02 a 06/03, foram registradas 10.104 vidas perdidas no território nacional, enquanto a China contabilizou 4.636 mortes durante toda a pandemia.
A semana do 8 de março começa com a assustadora perspectiva – feita por respeitáveis epidemiologistas e referendada até pela Cúpula do Ministério da Saúde – de se atingir em breve 3 mil mortes diárias pela covid-19. Parece um cenário de guerra. Os homens (especialmente os mais idosos) são os que mais morrem pela covid-19, mas as mulheres pagam um preço maior pela perda de conquistas históricas e em função do agravamento das dificuldades econômicas, sociais e familiares do dia a dia.
O gráfico abaixo, do Portal da Transparência, mostra que a maior parte das mortes pela covid-19 no Brasil está concentrada nas idades acima de 60 anos, sendo que os homens são maioria entre as vítimas fatais em todas as faixas etárias, com exceção de 90 anos e mais. No acumulado das mais de 260 mil vidas perdidas do país, os homens representam 57% do total de mortes e as mulheres 43%. Em consequência, o Brasil deve apresentar, assim que saírem os dados definitivos de 2020, a primeira redução da esperança de vida ao nascer em mais de um século. Ambos os sexos vão pagar um alto preço, mas o diferencial de gênero, em termos de anos esperados de vida, que já é elevado, irá aumentar ainda mais.
A maior longevidade feminina seria motivo de grande comemoração se viesse acompanhada de uma esperança de vida saudável e de melhores condições cotidianas de existência. Contudo, a pandemia da covid-19 não afetou somente as estatísticas vitais, mas também provocou um pandemônio na economia e nas relações costumeiras das pessoas, no âmbito profissional e familiar. A modernidade tem sido marcada pela separação entre locais de trabalho e estudo e local de moradia. Contudo, a covid-19 forçou a “volta para casa”, recorrendo ao “home office” e ao “homeschooling” forçados.
Sem embargo, a pandemia não mudou o cerne da divisão sexual do trabalho que comumente reserva o trabalho remunerado e produtivo em maior proporção aos homens e, de forma extremada, atribui às mulheres o trabalho não remunerado e reprodutivo. Assim, a pesada e desigual responsabilidade das tarefas do cuidado e da reprodução da vida cotidiana acentua as desigualdades de gênero, em especial, após o fechamento das escolas, de muitos serviços e da maior centralidade dos trabalhos domésticos. Em muitos casos, a dupla jornada de trabalho feminino passou a ser realizada dentro das quatro paredes do lar.
Um aspecto inegável é que as mulheres foram as mais afetadas pela crise econômica e o colapso do mercado de trabalho, com a perda de empregos e renda e o acirramento do fenômeno da “feminilização da pobreza” (as mulheres são maioria entre os segmentos mais pobres da população). Décadas de progresso feminino foram interrompidas nos últimos anos de recessão e as perspectivas para 2021 não são nada boas.
A covid-19, o mercado de trabalho e o desempoderamento feminino
A entrada da mulher no mercado de trabalho é uma conquista histórica que ocorreu progressivamente na modernidade. A escritora Mary Wollstonecraft (1759-1797), considerada a primeira feminista da era moderna (além de ser mãe de Mary Shelley autora do inigualável “Frankenstein”), publicou o livro “Reivindicação dos Direitos da Mulher”, em 1792, defendendo a necessidade da autonomia feminina para a garantia dos direitos de cidadania e para o progresso material e intelectual de ambos os sexos. Ela afirmou: “É hora de efetuar uma revolução nos modos das mulheres – hora de devolver-lhes a dignidade perdida – e fazê-las, como parte da espécie humana, trabalhar reformando a si mesmas para reformar o mundo”.
Das reivindicações dos direitos da mulher, a participação política, a educação e a inserção no mercado de trabalho são as bandeiras mais fundamentais para o fortalecimento do “segundo sexo”. O empoderamento feminino no Brasil começou com o direito de voto estabelecido em 1932 e, em sequência, com a inserção em massa das mulheres na educação e no mercado de trabalho. A partir de 1940, o sexo feminino passou a ser maioria da população brasileira e as mulheres com maior participação política, maior nível educacional e maior inserção no mercado de trabalho tiveram um papel fundamental nos avanços econômicos e sociais do país após o fim da Segunda Guerra.
De modo geral, o Brasil avançou no sentido de estabelecer maior equidade de gênero. Em alguns casos – como na educação – as desigualdades de gênero foram revertidas e, em outros casos – como no mercado de trabalho – as desigualdades foram reduzidas. O fato é que o Brasil estava caminhando, mesmo que em ritmo pouco acelerado, para um quadro de relações de gênero cada vez menos desigual. As relações sociais entre homens e mulheres estavam progredindo durante as últimas seis a sete décadas, como mostraram Alves e Cavenaghi (2019).
Entretanto, os avanços foram interrompidos com a grande recessão econômica de 2014-16 e se transformaram em retrocesso com a recessão covídica de 2020. O pesquisador do IPEA, Marcos Hecksher – doutor em estudos populacionais – mostrou que a taxa de atividade feminina voltou aos níveis de 1990, quando havia menos da metade das mulheres em idade produtiva inseridas no mercado de trabalho. De fato, o quadro é desalentador não só para as mulheres, mas também para toda a nação brasileira.
O trabalho é um direito estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e, também, na Constituição Brasileira, de 1988. Mas além disto, o trabalho é a fonte da riqueza das nações como mostraram Adam Smith no século XVIII e Karl Marx no século XIX. Desta forma, o “Pleno Emprego e o Trabalho Decente” é a bandeira que une concretamente um direito fundamental e os meios para se avançar nas conquistas sociais juntamente com uma maior equidade de gênero, de geração, de raça e de qualquer outro recorte interseccional.
Portanto, o grande drama do Brasil atual se deve ao desrespeito ao direito básico ao trabalho e, também, em decorrência do desperdício do potencial produtivo da população brasileira. O Brasil fechou o ano de 2020 com cerca de 14 milhões de pessoas procurando trabalho (desemprego aberto) e com 32 milhões de pessoas subutilizadas, segundo a taxa composta de subutilização da força de trabalho (que mede o percentual de pessoas desocupadas, subocupadas por insuficiência de horas trabalhadas e na força de trabalho potencial), do IBGE.
Isto contrasta com o fato de que o Brasil vive o seu melhor momento demográfico e poderia ter aproveitado este instante para dar um salto na renda e na qualidade de vida de seus habitantes. Porém, na prática, está desperdiçando uma janela de oportunidade única, como mostra o gráfico abaixo, que utiliza três fontes de dados do IBGE, para descrever a evolução da relação entre a população ocupada total (e por sexo) em relação ao conjunto da população brasileira de 1950 a 2020 e com projeções até 2040.
Analisando os dados dos censos demográficos, nota-se que a população ocupada masculina em relação à população total do país ficou praticamente constante, em torno de 27% entre 1950 e 2010. Já a população ocupada feminina em relação à população total cresceu de 4,7% em 1950 para 19,2% em 2010, mostrando que a inserção da mulher no mercado de trabalho foi o principal componente do bônus demográfico brasileiro. O conjunto dos ocupados (homens + mulheres) em relação à população total passou de 32% em 1950 para 31,7% em 1970 e para 45,3% em 2010, significando que, entre 1970 e 2010, houve um aproveitamento do bônus demográfico, pois a proporção de trabalhadores efetivos aumentou em relação aos consumidores efetivos.
Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), também mostram que a relação entre a população ocupada e a população total estava aumentando entre 2001 e 2014 (2015 já teve uma pequena queda). Da mesma forma, os dados da PNAD Contínua (para o segundo trimestre do ano) mostram que a relação entre a população ocupada e a população total estava avançando até 2014. Portanto, as taxas de ocupação estavam com viés de alta e, consequentemente, a renda estava crescendo, a pobreza estava se reduzindo e o Brasil estava aproveitando, ainda que parcialmente, o bônus demográfico. A diferença de gênero entre as taxas de ocupação de homens e mulheres estava se reduzindo e a maior inserção feminina no mercado de trabalho contribuía não somente para a autonomia das mulheres, mas para a melhoria das condições de vida de toda a população brasileira. No Brasil, os ganhos da estrutura etária são decorrentes, essencialmente, de um bônus demográfico feminino.
Desafortunadamente, o quadro mudou completamente com a recessão econômica que teve início em 2014. Os dados da PNADC mostram que a população ocupada (de 14 anos e mais) em 2014 era de 92 milhões de pessoas e caiu para 83 milhões no segundo trimestre de 2020, a despeito do crescimento da população total. A taxa de ocupação (PO/PT) feminina que estava acima de 19% no início da série da PNADC, caiu para 17,5% em 2020. Ou seja, depois de 60 anos de ganhos ininterruptos no mercado de trabalho, houve uma diminuição na proporção de mulheres inseridas nas diversas profissões. Isto significa não somente um empobrecimento nacional, mas um desempoderamento feminino, conforme discutido no artigo “Crise no mercado de trabalho, bônus demográfico e desempoderamento feminino” (Alves, 2016).
Para aproveitar o bônus demográfico, as taxas de ocupação deveriam seguir a linha pontilhada do gráfico entre 2020 e 2040. O Brasil ganharia e teríamos uma maior igualdade de gênero com a continuidade da inserção feminina no mercado de trabalho. A projeção do aumento da taxa de ocupação para 53% pode até ser considerada conservadora, diante de experiências como as da China e do Vietnã que chegaram a ter cerca de 60% da população total ocupada. A experiência internacional mostra que nenhum país conseguiu enriquecer e manter elevados Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) após envelhecer (ALVES e CAVENAGHI, 2019). Países de renda média que não aproveitam o bônus demográfico costumam ficar presos eternamente na “Armadilha da renda média”.
Desta forma, o destino do Brasil está intrinsicamente ligado ao destino das mulheres. Só haverá progresso nacional se houver maior empoderamento feminino e maior equidade de gênero. Assim como toda maratona começa com um simples passo, o Brasil do futuro depende, em primeiro lugar, da vitória sobre o SARS-CoV-2 e, em segundo lugar, a retomada do mercado de trabalho. Isto posto, o Dia Internacional da Mulher deve ser não só um momento de luto, mas também um dia de luta pelo Pleno Emprego e o Trabalho Decente. Como disse Simone de Beauvoir, somente o trabalho poderá garantir uma independência concreta às mulheres. E segundo a perspectiva de Mary Wollstonecraft trata-se de: “trabalhar reformando a si mesmas para reformar o mundo”.