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Identidade na cabeleira

Em seu premiado romance “Americanah” – selecionado pelo “New York Times” como um dos 10 melhores livros de 2013 –, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie oferece diagnóstico peculiar da vida real do poder nos Estados Unidos. “Imagine se Michelle Obama se cansasse de toda aquela escova, decidisse usar o cabelo natural e aparecesse na televisão com o cabelo parecendo algodão, ou com ele bem crespo? (…) Ela ia ficar linda, mas o pobre do Obama sem dúvida perderia o voto dos independentes e até dos democratas indecisos”, escreve, à página 322.

Jamais será fácil se insurgir contra uma ditadura – no caso o totalitarismo do cabelo liso, a Coreia do Norte das cabeças, padrão pesadamente obrigatório. De tão intensa, a discriminação produziu hinos racistas, cantados inclusive no Carnaval

Porque na luta contra o preconceito, cabelo está longe de ser apenas estilo, ou mera opção estética. Significa atitude, postura, identidade, empoderamento – predicados de mulheres brasileiras ainda mais corajosas do que a primeira-dama americana. Nascidas numa sociedade com o racismo em sua gênese, ousaram enfrentar parâmetros impostos desde sempre, redesenharam os paradigmas de beleza e obrigaram o mercado a correr atrás delas.

Jamais será fácil se insurgir contra uma ditadura – no caso o totalitarismo do cabelo liso, a Coreia do Norte das cabeças, padrão pesadamente obrigatório. De tão intensa, a discriminação produziu hinos racistas, cantados inclusive no Carnaval – sim, na festa inventada pelos negros –, inacreditavelmente até os dias atuais. Sustentar-se fora do padrão exigia coragem de heroína da ficção.

Assim, por muito tempo, restou às donas do cabelo crespo o destino do sacrifício cotidiano de tratamentos dolorosos, caros, nocivos à saúde (e ao meio ambiente), em nome de tentar ser aceito – e fracassar. Esticar as madeixas ou alongá-las artificialmente, amarrando fios comprados a preços salgados, pareciam os únicos caminhos para se enquadrar.

Juliana Luna: cabelos soltos, livres da opressão (Foto Zô Guimarães)

Juliana Luna, 30 anos, empreendedora social, modelo e repórter especial da revista digital “AzMina”, lembra vivamente da dor. Até os 16, ela acostumou-se a revezar um par de modelos – ou alisava ou prendia tudo num coque; quando precisava arrumar o penteado, entregava o dia inteiro ao cabeleireiro. “Sem exagero, das 10h às 18h”, ratifica. “E ainda custava 500 reais”.

Não existia outra possibilidade para mim. Estava completamente submetida à estética do opressor

Juliana Luna Empreendedora social e modelo

Saía ainda mais caro “botar cabelo”, senha da opressão para Andressa Verdino, 27 anos, que tinha a obrigação profissional para turbinar a sina. Passista-show da Mangueira, estava compulsoriamente presa ao estilo farto da personagem icônica, o protocolo do “tudo ão”: “peitão, bundão, pernão, cabelão”. O último item, claro, segundo a lógica dos brancos – e tome dinheiro. “Economizava um tempão para comprar os fios. Acabava com o orçamento”, relembra ela.

Com Leticia Ramos, a confusão instalou-se logo no começo. Ela sempre sonhou ter o cabelo parecido com o da mãe que, um dia, resolveu alisar. Ainda criança, a filha fez o  mesmo, iniciando-se no calvário dos fios esticados. Pré-adolescente, com o penteado quase no quadril, decidiu dar fim naquilo. Tinha 12 anos. “Qualquer estilo virava sofrimento”, resume.

Luna, Letícia e Andressa: menos trabalho e mais identidade capilar (Foto Zô Guimarães)
Luna, Letícia e Andressa: menos trabalho e mais identidade capilar (Foto Zô Guimarães)

A vida entre os venenos que transformavam o cabelo surgia como caminho único para o belo, na visão jovem de Luna. “Não existia outra possibilidade para mim. Estava completamente submetida à estética do opressor”, descreve. Até que quando ensaiava para uma peça, sentiu-se incomodada com os fios alisados caindo-lhe no rosto. “Cortei com máquina 2”, conta, lembrando-se do momento em que fitou a imagem no espelho, e não se reconheceu. Em casa, a mãe especulou que a filha estivesse com algum problema psicológico.

A patologia estava nos outros, em quase todos. “Percebi que a sociedade não aceitava quem eu queria ser, quem eu sou”, recorda. Enquanto o cabelo crescia, a negra esguia – linda, linda! – viu multiplicar-se o preconceito, DNA do Brasil. “Barbeiro também tem família!”, “Tem maconha aí dentro?”, gritavam, lá do outro lado da rua. Um mais selvagem chegou a dar um puxão, para conferir se não era peruca. “Colega, seu cabelo não está combinando”, ouviu, na entrada de uma boate. “Maior feiosinha, com esse cabelo esquisito”, mandou outro. Dureza.

Estudiosa, fluente em quatro idiomas (inglês, espanhol e italiano, além do português), Luna também encarou portas fechadas por causa da identidade capilar. Nem o currículo atraente, com sobras de qualificação para a vaga de vendedora, debelou a discriminação explícita. “Com esse cabelo, não dá”, avisaram. “Entendi que não teria como viver pelas vias convencionais”, constata. “A gente sente uma tristeza profunda, sem entender o motivo”, descreve.

A avalanche de intolerância, no entanto, transformou-se em combustível para uma atitude libertadora. Hoje, Juliana Luna semeia olhares deslumbrados por onde passa. Sua incrível beleza desfila emoldurada por cabelos fartos, altos, legítimos, que compõem uma imagem de liberdade e independência. “As pessoas estão ganhando consciência”, atesta. Estava mais do que na hora.

Você não tem noção de como é bom poder lavar a cabeça quando bem entender. Estou me amando

Andressa Verdino Passista

Inclusive no Carnaval, mundo cheio de maneirismos onde Andressa Verdino brilha cada vez mais. Sua plástica impecável agora surge enfeitada por um penteado black em crescimento virtuoso. Fim da tortura do mega-hair, o sacrifício de amarrar madeixas lisas, compradas por algumas centenas de reais, em longas e torturantes jornadas nos salões da vida. Tantos maus-tratos estavam produzindo entradas no couro cabeludo da mulata-show, como na calvície dos homens.

A libertação teve um par de alicerces. Primeiro, o orçamento familiar, que precisou passar por uma reordenação a partir do nascimento de Bento, seu primeiro filho. “Depois que fui mãe, perdeu completamente o sentido gastar fortunas com o cabelo. Simplesmente, não admito”, decreta. A convicção se cristalizou diante da imagem mais marcante do Carnaval 2016: Squel, a porta-bandeira da Mangueira, desfilou como se estivesse careca, para simbolizar uma iaô (as iniciantes no candomblé), no enredo em homenagem a Maria Bethânia.

verde e rosa acabou campeã, mas, para a decisão da sua musa, nem precisava. “Fui a primeira da escola a usar black”, orgulha-se, contando que, no bojo da mudança, reformulou até o estilo de se vestir. “Agora, saio de rasteirinha, bem mais despojada. Ganhei confiança”. Não sem antes vencer o preconceito das próprias colegas de samba, negras como ela. Andressa ouviu que deixaria de ser contratada para shows por causa do cabelo “diferente”, mas, corajosa, ignorou e foi em frente – ainda bem. “Na primeira apresentação com a bateria, os meninos me disseram: ‘Você tá muito linda’”, recorda.

E ainda virou exemplo para quatro amigas e uma comadre, que a seguiram na independência do mega-hair. “Você não tem noção de como é bom poder lavar a cabeça quando bem entender”, festeja. “Estou me amando!” A vida fez a volta e agora, Andressa, atualizada na mudança do conceito de beleza, puxa a fila das musas mangueirenses. Num show em dezembro, na Cidade do Samba, ela se destacou, como a única dançarina “black”. “Sou a diferente”, assume, com sorriso encantador.

Vivia torturada com aquele trabalho todo, e o resultado não me agradava. Parecia que não era eu

Letícia Ramos Garçonete

A convicção de Letícia Ramos nunca se alterou. “Sempre me senti negra”, garante a barista, 21 anos parecendo menos, linda em seus cabelos crespos, perfeitos no tom castanho-claro. Na adolescência, manteve os fios longos, à custa de muito tratamento, tempo e dinheiro, para seguir a mãe. Praticante de skate, ainda sofria para tourear o suor na calorenta Nova Iguaçu, onde nasceu e mora até hoje. “Vivia torturada com aquele trabalho todo, e o resultado não me agradava. Parecia que não era eu”, traduz. Um dia, pouco mais de um ano atrás, viu um penteado black numa revista. “Aí, me encontrei”. Entrou no cabeleireiro e mandou raspar, para o recomeço definitivo.

Sempre sorridente, Letícia atrai as atenções no Moviola, restaurante e bar onde trabalha, em Laranjeiras. “Sou  bem mais observada com este penteado”, reconhece – sem crise. “Acabo me mostrando mais. Tudo bem, é legal”, arremata, num sorriso, garantindo, por sorte, quase nunca ter vivido problemas por causa da opção estética. “A exceção foi um menino na pista de skate, que chamou meu cabelo de horroroso. Mas nem dei bola.” Está certa – não tem que dar trela para moleque sem-noção.

A multiplicação de atitudes como as de Juliana, Andressa e Letícia transformou até o mercado. Principal grife do setor para os negros, a rede Beleza Natural assume que se reposicionou para não perder. Nascida nos anos 1990, em oposição à ditadura do cabelo alisado, buscou, desde o início, empoderar as mulheres negras, diante de um mundo e um país que só valorizam a estética branca.

Antes, a principal estratégia da empresa buscava dar aparência diferente, luxuosa, aos cachos. Mudou. “Fomos ao mercado ouvir as clientes para nos reposicionar”, conta Márcia Silveira, gerente da rede que tem 47 unidades no Brasil. “Hoje, temos advogadas, médicas, mulheres em todas as profissões com black”, comemora, estimando em 15% – e viés de alta – o percentual de clientes que se decidem pela “transição”, nome do processo de devolver o formato natural aos cabelos.  Márcia destaca ainda o investimento em produtos sem química.

Faz sentido em relação ao método de Juliana Luna, que usa manteiga de carité, trazida de viagem recente à Nigéria, para hidratar seu cabelo. Andressa aposta em azeite, assim como Letícia, que acrescenta café e mel à mistura garantidora da beleza.

Os resultados são espetaculares – e legítimos. “No início, olhavam para mim como um ET; hoje, cada vez mais gente me aborda para elogiar”, relata Luna. “A cada dia, tenho mais certeza da minha decisão. Estou mais bonita”, exulta Andressa. “Eu me sinto autêntica. Afinal, sou negra”, arremata Letícia.

Chimamanda Ngozi ia adorar conhecê-las.

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