×

Na pandemia, três mulheres foram vítimas de feminicídio por dia

O corpo de Bianca Lourenço foi encontrado dentro de um tonel no Rio de Janeiro. Ela voltara à favela para visitar uma amiga, depois de fugir das ameaças do ex-namorado. No Amazonas, Emilaine de Souza, 20 anos, recebeu 40 facadas nas costas, no pescoço e na nuca, de seu ex- companheiro. Bianca e Emilaine são duas das 1.005 mulheres que morreram pelo simples fato de serem mulheres durante os meses da pandemia de 2020, entre março e dezembro. Isso quer dizer que, por dia, pelo menos três mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil. Se é difícil para uma mulher romper o ciclo da violência por uma série de questões que passam por subjetividades emocionais até contextos práticos, como a dependência financeira, a pandemia impôs isolamento social e, portanto, mais um obstáculo para o enfrentamento dessa situação.

Os números dos feminicídios são do mais recente monitoramento da série Um vírus e duas guerras. Os dados são referentes a 24 estados e Distrito Federal – Paraná e Sergipe não enviaram as informações solicitadas. Se levarmos em conta o ano todo de 2020, foram 1.204 mortes, total bem semelhante a 2019, quando houve 1.202 mortes. “Apesar da estabilidade dos números em nível nacional, o comportamento varia bastante entre os estados. No Mato Grosso, houve um aumento de 59% nos casos de feminicídio, enquanto o Distrito Federal registrou queda de 48%”, afirma a analista de dados Maria Elisa Muntaner.

O monitoramento, que tem como base as estatísticas das Secretarias Estaduais da Segurança Pública, tem objetivo de visibilizar a violência doméstica e o feminicídio contra a mulher durante a pandemia e é realizado pela parceria de sete mídias independentes: Amazônia Real; AzMina; #Colabora; Eco Nordeste; Marco Zero Conteúdo; Ponte e Portal Catarinas.

Durante os meses de pandemia, de março a dezembro, 14 estados apontaram aumento no número de feminicídios. Juntos, tiveram um aumento de 20% em comparação ao mesmo período de 2019. Mato Grosso e Pernambuco apresentaram a maior elevação em número absolutos: 22 (73%) e 16 (36%) casos a mais, respectivamente, em comparação com o mesmo período do ano passado. Outro destaque é o estado do Amazonas, que elevou o número de feminicídios em 67% neste período.
“O aumento da violência contra as mulheres e da subnotificação dessa violência é uma evidência mundial, e o Brasil não é exceção. A perspectiva é a de que, enquanto perdurar a pandemia da covid-19, essa situação se agrave”, afirma Julieta Palmeira, secretária de Políticas para as Mulheres do Estado da Bahia.

Nos mesmos meses, dez estados apresentaram queda no número de feminicídios. Os estados que apresentaram as maiores quedas em porcentagem foram o Distrito Federal (- 57%) e Rio Grande do Norte (- 47%) e em números absolutos foram o Rio Grande do Sul, com 29 casos a menos e Minas Gerais e Distrito Federal, ambos com redução em 17 casos.
Em 2020, a taxa média de feminicídios por 100 mil mulheres foi de 1,18. Em 2019, a taxa foi de 1,19. Conforme a análise do monitoramento, 16 estados apresentaram taxas acima da média (veja no infográfico abaixo). Estes correspondem a 45% da população feminina dos estados analisados (102 milhões) e foram responsáveis por 61% das mortes ou 735 feminicídios. Os estados que apresentaram as maiores taxas são Mato Grosso 3,56 e Roraima 2,95 – ambos com o triplo da média dos 24 estados e do Distrito Federal). Na contramão, 11 estados apresentaram taxas abaixo da média: Ceará (0,57), Rio Grande do Norte (0,64) e São Paulo (0,74).

Crianças são testemunhas da violência

A dificuldade em denunciar a violência se soma à falta de políticas públicas. Durante o ano de 2020, menos de 3% do orçamento que seria usado para iniciativas para mulheres pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos foi, de fato, gasto, segundo levantamento da Gênero e Número. Isso se reflete na realidade das vidas das mulheres.

É o caso do batalhão da PM em Chapecó, oeste catarinense, que atende 43 municípios. “Só em Chapecó, aos fins de semana, temos por vezes 80 chamadas por perturbação de sossego. Fechamos o dia atendendo 45, ou seja, às vezes, 30 ocorrências vão ficar sem atendimento”, revela o tenente-coronel Fábio Henrique Machado, comandante do batalhão.

A defasagem no efetivo da polícia somada à pequena quantidade de assistentes sociais nesses municípios demonstram as falhas da rede de apoio à mulher em situação de vulnerabilidade. Ariane Tenfen Mendes, de 21 anos, sentiu na pele os efeitos dessas falhas. Moradora de Águas Frias, uma das cidades atendidas pelo Batalhão de Chapecó, Ariane vivia um relacionamento violento com Altair Camargo Gonçalves, de 35 anos. Decidida a mudar essa realidade, ela se separou, mas as agressões continuaram. Dois dias após pedir medida protetiva contra o ex-companheiro, Ariane foi morta a facadas dentro de casa. A filha do casal de 3 anos testemunhou todo o assassinato.

A filha de Ariane também é exemplo de um outro problema observado na pandemia: diante do isolamento social, cada vez mais crianças e adolescentes testemunham a morte ou espancamento de suas mães, avós ou cuidadoras. Mas sem critérios definidos e padronizados para quantificar os casos, essa percepção de crescimento no número de crianças e adolescentes afetadas pela violência doméstica durante a pandemia é apenas uma “observação” de quem trabalha constantemente no atendimento dos casos.

“Tenho percebido esse aumento no número de casos em que as mulheres são mortas na frente dos filhos, mas como esse é um dado que não entra nas estatísticas oficiais, apenas em outras etapas da investigação, não há como precisar o quanto cresceu”, conta a delegada Paula Meotti, titular da 1ª Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher (Deam) de Goiânia.

Mulheres com deficiência

Outras vítimas que acabam invisibilizadas quando se fala de violência contra a mulher são aquelas que têm alguma deficiência. Em São Paulo, houve queda de 51% nos registros de violência doméstica contra mulheres com deficiência: foram 467 boletins de ocorrência no ano passado e 708 em 2019, revelando mais uma faceta da subnotificação no período.

“Se para mulheres sem deficiência, fazer uma denúncia de um abuso, de um assédio, em uma delegacia já é um super processo, imagina para mulheres com deficiência. Seus próprios agressores são seus cuidadores e, muitas vezes, há falta de acessibilidade para receber essas denúncias”, diz a educadora Desiree Casale, integrante do Coletivo Feminista Hellen Keller.

Morte por facadas revelam extermínio no Norte

Na Região Norte do Brasil, registros policiais nos sete estados apontam que as facas aparecem muito mais do que revólveres e pistolas como instrumentos do ódio. A partir de 11 mil boletins de ocorrência, o Observatório de Violência de Gênero (Ovgam), da Universidade Federal do Amazonas, juntou os relatos de mulheres do interior do Amazonas para descobrir essa face até então oculta da violência de gênero. Para a antropóloga Flávia Melo, fundadora do Ovgam, esse fato revela “uma circunstância de agressão ainda mais violenta, porque a utilização da arma branca requer muito mais intensidade que o disparo de uma arma de fogo”.

No Amazonas, mulheres têm sido exterminadas a golpes de faca. Emilaine recebeu 40 facadas nas costas, no pescoço e na nuca. Em Jacira, foram mais de 30. Kimberly, Maria Eliza e Miriam também se tornaram vítimas de feminicídio. Além da morte brutal por esfaqueamento, todas foram mortas por seus ex-companheiros, em alegados e injustificados atos por ciúmes.

Socos e pontapés são outras formas que os homens encontram para matar mulheres no Norte. Em Tocantins, o ano de 2020 terminou com uma tragédia no movimento indígena. Myriwekwde Karajá, de 36 anos, moradora da aldeia Fontoura, na Ilha do Bananal, foi espancada pelo marido, também indígena. Ela teve politraumatismo, hemorragia interna e recebeu diagnóstico positivo para a Covid-19. Morreu no dia 10 de janeiro. Ele fugiu.

Eliana Karajá, da coordenação do Coletivo de Mulheres Iny e da Associação Indígenas do Vale do Araguaia (Asiva), diz que esconder que houve o espancamento no contexto indígena é um comportamento que vem do medo das consequências que isso pode ter dentro da própria comunidade. “Por muitas vezes, tratar a questão como cultural dá mais apoio aos homens e agressores do que às vítimas. Pode acontecer de a mulher que denuncia ser xingada pela família do agressor e até apanhar novamente ao voltar para a aldeia”, diz Eliana. Para ela, “a Lei Maria da Pena não foi pensada nas mulheres indígenas”.

O monitoramento Um vírus e duas guerras analisou os dados de feminicídios por quadrimestres em 2020 do que em relação a 2019. Os gráficos mostram que no primeiro quadrimestre houve um aumento dos casos. Nos outros meses, não houve alteração entre os dois anos. Mas, a cada sete horas uma mulher é morta vítima de feminicídio no Brasil.

(Colabora)

Receba Notícias Em Seu Celular

Quero receber notícias no whatsapp