O ano escolar em 2021 começou muito diferente do esperado. Havia a expectativa de um retorno gradual às aulas presenciais, mas o avanço da covid-19 em todo o país, a escassez de vacinas e, consequentemente, a lentidão do programa de vacinação estão mantendo parte das escolas fechadas. Duas pesquisas recentes mostram que o Brasil regrediu 20 anos nas taxas de abandono e de evasão escolar. Com a pandemia e sem uma coordenação nacional dos três níveis de governo, a desigualdade na educação brasileira fica ainda mais nítida.
No estudo “Enfrentamento da cultura do fracasso escolar“, publicado em janeiro de 2021, o Fundo das Nações Unidas pela Infância (Unicef) estima que aproximadamente 4,1 milhões de crianças e adolescentes de 6 a 17 anos tiveram dificuldade de acesso ao ensino remoto em 2020. E que cerca de 1,3 milhão abandonou a escola. Os dados usados no relatório são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de outubro de 2020.
Pesquisa da DataFolha, também apresentada em janeiro, aponta que aproximadamente 4 milhões de estudantes brasileiros entre 6 e 34 anos deixaram as aulas em 2020, o que significa 8,4% de evasão escolar. Na educação básica, a taxa é ainda maior: 10,8% dos alunos largaram a escola em 2020, sendo 4,6% no ensino fundamental. Para termos de comparação, em 2019 as taxas oficiais de evasão foram de 4,8% no ensino médio e 1,2% no fundamental. Os números dão a dimensão do desafio em um cenário no qual o retorno progressivo às aulas presenciais permanece indefinido.
Para discutir como manter crianças e adolescentes na escola e fortalecer seus vínculos a Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca) realizou um seminário online com especialistas no tema. Participaram do debate Dalila Saldanha, secretária municipal de Educação de Fortaleza; Ítalo Dutra, chefe de Educação do Unicef, e Ricardo Vitelli, professor e pesquisador da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, e membro da Associação Brasileira de Prevenção da Evasão Escolar. O seminário foi mediado por Marta Avancini, editora de conteúdo do Jeduca.
Perfil de abandono e evasão escolar tem cor, endereço e renda
Dados da Pnad de 2019 mostram que cerca de 20,2% dos quase 50 milhões de jovens brasileiros de 14 a 29 anos não completaram a educação básica. Por um recorte de raça, 71,7% dos que não concluíram o ensino básico se declaram pretos ou pardos, e 27,3%, brancos. Abandonar os estudos para trabalhar foi a principal razão alegada por jovens de todas as regiões do país. O segundo motivo, também em todo o país, foi falta de interesse.
Voltamos 20 anos no tempo. O que já era desigualdade virou um abismo durante a pandemia
Ítalo DutraUnicef
Em 2020, escolas brasileiras ficaram fechadas em média por 30 semanas, e houve lugar que sequer abriu. É uma das maiores médias mundiais de tempo, segundo Ítalo Dutra, do Unicef:
“Tentamos identificar no nosso estudo quem são essas crianças e adolescentes que estão fora da escola. O perfil desse estudante tem cor, endereço e renda. São principalmente pretos, pardos e indígenas, das regiões Norte e Nordeste, e de baixa renda. Pelos dados da Pnad, voltamos 20 anos no tempo. O que já era desigualdade virou um abismo durante a pandemia. É preciso fazer uma busca ativa, ir atrás dessas crianças e adolescentes que abandonaram a escola para reverter o quadro e recuperar 20 anos.”
Busca Ativa Escolar é justamente o nome de uma plataforma desenvolvida pelo Unicef para ajudar a combater a exclusão escolar. Ítalo ressalta a importância do papel da escola além da educação:
“Escola faz parte do sistema de proteção de direitos. Escola é garantia de segurança alimentar e, também, protege crianças e adolescentes da violência doméstica. E temos poucos dados sobre educação infantil. Além de ser obrigatória, ela é fundamental para a criança criar vínculo com a escola.”
Em Fortaleza, taxa de abandono e evasão escolar é de apenas 0,1%
Fortaleza tem a quarta maior rede municipal de ensino do país e, ano passado, foi reconhecida pelo Unicef por reduzir os indicadores de desigualdade. Em 2017 a média de frequência escolar era de 73%. Em 2019 o índice chegou a 94%. Para Dalila Saldanha, secretária municipal de Educação, saber o que aconteceu com quem abandonou a escola é fundamental para lidar com o problema:
“Em Fortaleza e em outras cidades do Ceará temos uma cultura da busca ativa, do monitoramento. Há quatro anos acompanhamos a frequência dos alunos diariamente. Se depois de dez dias não há uma justificativa para a falta, nosso protocolo é acionar o Conselho Tutelar e o Ministério Público. Em 2008 a taxa de abandono era de 11%. Em 2020 conseguimos chegar a apenas 0,1%. Desde o primeiro mês da pandemia enviamos um kit de alimentos para a família dos estudantes. Se o aluno não tiver acesso ao ensino remoto, mandamos material didático impresso junto com os alimentos. Ainda assim perdemos 194 alunos em 2020 e estamos buscando descobrir para onde eles foram, se as famílias se mudaram para outra cidade ou estado.”
Abandono é quando o aluno larga a escola por um período, mas retorna. Quando não volta, é evasão. No ensino médio a evasão é desastrosa
Ricardo Vitellipesquisador da Unisinos (RS)
O pesquisador Ricardo Vitelli, da Unisinos, chama a atenção para a diferença entre os conceitos de abandono e evasão escolar:
“Abandono é quando o aluno larga a escola por um período, mas retorna. Quando não volta, é evasão. Problema histórico na educação brasileira pelo menos desde 1930, quando os dados começaram a ser estudados. No ensino fundamental, a família está mais presente e a merenda garante uma taxa de retorno maior. No ensino médio a evasão é desastrosa. Na pandemia, estudantes de ensino médio estão à procura de trabalho. Há escolas no Rio Grande do Sul que tiveram 100% de evasão nos cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). É preciso enviar alimentos para as famílias e garantir o acesso ao ensino remoto a alunos que não têm o que comer nem possuem computador ou telefone com acesso à internet, o que aumenta a desigualdade”.
Em 2021 ainda há escola brasileira sem banheiro
O quadro de abandono escolar pode ser revertido durante e depois da pandemia. Mas Ítalo Dutra, do Unicef, destaca outro problema histórico a ser resolvido pela educação pública brasileira: a infraestrutura das escolas, ou a falta dela.
“É inaceitável que em 2021 existam escolas sem banheiro, biblioteca, laboratório de ciências, quadra para atividades esportivas. Temos feito um esforço de divulgar nossos estudos para o público em geral porque ainda há muito trabalho a ser feito para reduzir a desigualdade. E temos que dar luz aos bons exemplos, como o da rede municipal Fortaleza”, diz Ítalo.
São muitas as diferenças físicas entre as escolas de Fortaleza
Dalila Saldanhasecretária de Educação de Fortaleza (CE)
Mas mesmo na capital do Ceará, a quinta maior do país em população, ainda há o que fazer.
“Apesar dos nossos esforços, são muitas as diferenças físicas entre as escolas de Fortaleza”, reconhece a secretária Dalila Saldanha.
Ricardo Vitelli aponta a importância de infraestrutura e combate à evasão caminharem paralelamente:
“Temos que buscar quem está fora da escola e, ao mesmo tempo, melhorar a infraestrutura. É mais demorado, mas há que ser feito. Escola não é só para aulas de português e matemática. É espaço de formação, tem que ter arte, área para exercícios, uma infraestrutura mínima garantida para todos. Quem é educado, pensa.”
A íntegra do seminário promovido pela Jeduca no início de abril de 2021 está disponível no canal do YouTube da associação.
(Colabora)