Mulheres afegãs voltam para o passado

Artigo: pesquisadora de finanças comportamentais e questões de gênero reflete sobre o futuro sombrio de mulheres e meninas nos centros urbanos do Afeganistão

Após 20 anos de ocupação norte-americana e de forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), a retomada do Afeganistão pelo Talibã marca o início de um novo inferno na vida de mulheres e meninas, especialmente nos centros urbanos do país. Parte das áreas rurais sempre esteve sob o domínio do grupo fundamentalista. Portanto, o inferno já estava lá, apagando a existência delas com a morte ou em vida.

Foram 20 anos de progressos para milhões de mulheres. Esse não era um projeto norte-americano, mas foi um efeito colateral. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, deixou bem claro em seu pronunciamento após a queda de Cabul que o objetivo dos americanos nunca foi construir uma nação melhor no Afeganistão. Pura e simplesmente, queria-se conter o avanço de células terroristas que pudessem ameaçar a segurança… em solo americano. Não dito, mas que sabemos bem, também era importante manter tropas no país afegão por influência geopolítica no Oriente Médio e sul da Ásia.

A China se adiantou em negociações com o Talibã e sinalizou que reconhecerá o novo governo, já de olho em parcerias para explorar matéria-prima valiosa para a indústria chinesa. Recentemente foi revelada pelo Pentágono a existência de reservas minerais no país, estimadas em pelo menos US$ 1 trilhão, e ainda pouco exploradas por causa da instabilidade e dos constantes conflitos. Uma das maiores reservas de lítio do mundo agora pertence a um grupo extremista. Rússia, Irã e Paquistão fazem fila para reconhecer o novo “governo”. Nenhum desses países é grande exemplo de respeito aos direitos humanos.

Não que as forças ocidentais ocupando o território tenham respeitado a dignidade humana durante essas duas décadas. Não são poucos os relatos de abuso de poder e de uso de violência contra civis, além de associação com milícias contra o Talibã também violentas e opressoras. Para populações rurais em áreas ocupadas pelo Talibã, houve também aumento da pobreza e da miséria, uma vez que essas regiões estavam sempre sob conflito. Uma panela de pressão que favorecia o recrutamento de meninos pelo grupo extremista, inclusive pela facção Haqqani, conhecida por ser a mais brutal.

O avanço do Talibã após a saída dos americanos foi rápido. O exército afegão pouco resistiu nas últimas semanas. O presidente deixou o país no dia 15 de agosto, o domingo em que Cabul caiu. O pânico se instalou e com razão. As mulheres praticamente desapareceram das ruas da capital. A maioria aguarda seu destino em casa, outras buscam esconderijos, poucas se aventuram a escapar pelo aeroporto. O Talibã cerca o acesso ao Aeroporto Internacional Hamid Karzai revistando e identificando quem deseja fugir. Um risco muito grande para quem é alvo por ter trabalhado com as forças ocidentais, por ser ativista dos direitos humanos, para jornalistas ou, no caso das mulheres, por existirem na vida pública.

As práticas medievais do Talibã, já vistas com horror pelo mundo 20 anos atrás, não parecem ter mudado. Por mais que o grupo faça declarações apontando moderação, esta não existe no regime. Os vídeos e relatos vindos do Afeganistão mostram que a brutalidade não diminuiu. Meninas e mulheres solteiras são sequestradas de suas casas para virarem escravas sexuais. Várias são obrigadas a se casar com membros do Talibã. Provavelmente nunca mais verão suas famílias. Buscando informações sobre os últimos meses no Afeganistão, deparei-me com um vídeo recente que circula na internet, cuja localização e data não posso verificar. Nele, homens arrancam uma jovem de uma casa na zona rural. Numa cena desesperada do que parece ser mãe e filha, elas conseguem se abraçar pela última vez antes da menina ser arrastada para longe.

Açoitamentos são frequentes, apedrejamentos são punições comuns a supostos crimes contra a honra. Amputações de supostos ladrões fazem parte do cotidiano. Mulheres podem ter as unhas arrancadas se forem vistas com esmaltes, podem apanhar na rua se suas risadas forem ouvidas.

A liberdade da mulher é tolhida de todas as formas possíveis. Elas perdem o direito aos estudos, ao trabalho (com exceção de algumas profissionais de saúde, já que mulheres só podem ser vistas por mulheres), de saírem de casa sem a companhia de um parente homem. São obrigadas a cobrirem todo o corpo com a burca, que já existia antes do Talibã se formar nos anos 90.

Vai se consolidando novamente o apagamento das mulheres. Viram um borrado azul na paisagem. Sem rosto, sem voz, sem vida

A burca é muito menos frequente nas cidades, o que resultou num aumento explosivo dos preços da vestimenta nos últimos dias. Com medo de punições, mulheres e familiares homens correm para comprar a peça para se protegerem e protegerem suas famílias. Assim, vai se consolidando novamente o apagamento das mulheres. Viram um borrado azul na paisagem. Sem rosto, sem voz, sem vida.

Cartaz com rosto de mulher é vandalizado na fachada de um salão de beleza em Cabul
Cartaz com rosto de mulher é vandalizado na fachada de um salão de beleza em Cabul (Foto: Haroon Sabawoon / Anadolu Agency /AFP – 20/08-2021)

Nos últimos anos, o Afeganistão viu mulheres prefeitas, membros do parlamento, jornalistas, atletas, artistas, empreendedoras. Muitas agora correm contra o tempo para destruir qualquer evidência da vida passada, seja documentos, fotos, perfis em redes sociais ou objetos como chuteira de futebol e instrumentos musicais.

O porta-voz do Talibã, em coletiva de imprensa, afirmou que os direitos da mulher serão respeitados dentro da lei islâmica (Sharia). Uma fala altamente preocupante, uma vez que as mulheres nas cidades acreditam já seguir esses preceitos. Elas temem restrições e proibições a atividades absolutamente normais em muitos outros países islâmicos.

A Sharia tem várias versões, sendo que o Talibã adota a mais rígida e punitiva, além de impor regras completamente dissonantes do islã. Não há nenhuma pista ou evidência de que será um regime mais brando desta vez só porque as lideranças do grupo viajam para outros países, falam inglês, dão entrevista e estão todos conectados aos seus smartphones. Os Haqqani, cotados para terem assento no conselho do regime Talibã, atuam de forma semi-independente.

De acordo com o canal de notícias afegão, Tolo, mais de 50% dos alunos na Universidade de Herat são mulheres. Um cenário inimaginável daqui para a frente. As alunas já estão sendo barradas de acordo com reportagens de jornais internacionais. A Universidade de Cabul tem um mestrado em estudos de gênero que dificilmente continuará existindo. Âncoras mulheres de telejornais afegãos contam que estão sendo proibidas de retornar ao trabalho.

Até para escapar do regime, os homens desfrutam de privilégios

A fuga desesperada de Cabul que superlotou um avião norte-americano com afegãos mostra, em sua maioria, homens. São poucas as crianças e mulheres a bordo. Numa sociedade que nunca deixou de ser conservadora e patriarcal, eram eles que trabalhavam como tradutores e afins para os países da Otan. Até para escapar do regime, os homens desfrutam de privilégios.

Os direitos das mulheres não são prioridade no jogo geopolítico, definido historicamente por homens. São usados por conveniência, seja quando os Estados Unidos queriam justificar a permanência quase colonizadora em solo estrangeiro ou quando um grupo extremista quer aparentar moderação. Mulheres viram peça secundária num tabuleiro de interesses políticos e econômicos. Com a possiblidade de enriquecimento do Afeganistão pela exploração de minérios, resta saber se em pouco tempo o mundo reconhecerá tranquilamente um grupo fundamentalista anticivilizatório.

FONTE PROJETO COLABORA

No Afeganistão, recursos minerais podem valer até 3 trilhões de dólares

Essa é uma das razões pelas quais o Talibã quer retomar o controle do país e países como China, Paquistão e Índia também estão interessados

Rico em recursos minerais, o Afeganistão tem reservas pouco exploradas de cobre, ouro, petróleo, gás natural, urânio, bauxita, carvão, minério de ferro, lítio, cromo, chumbo, zinco, pedras preciosas, talco, enxofre, travertino, gesso e mármore. De volta ao poder após 20 anos, o Talibã recuperou o controle dessas minas, que um relatório de especialistas militares e geólogos avaliou em um trilhão de dólares. Mais do que ideologia e religiosidade, o grupo extremista parece ser motivado pela perspectiva econômica dessa retomada.

Na década passada, a maior parte desses recursos permaneceu intocada devido à violência contínua no país. Enquanto isso, o valor de muitos desses minerais disparou, em função da transição global para a energia verde. Um relatório de acompanhamento do governo afegão em 2017 estimou que a nova riqueza mineral de Cabul pode chegar a três trilhões de dólares, incluindo os combustíveis fósseis.

A riqueza natural contrasta com a pobreza extrema da população. Os suprimentos de minerais como ferro, cobre e ouro estão espalhados pelas províncias. O mais importante, no entanto, são os maiores depósitos de lítio do mundo – um componente essencial, mas escasso, em baterias recarregáveis e outras tecnologias vitais para enfrentar a crise climática. A demanda cresce anualmente 20% em comparação com apenas 5% a 6% alguns anos atrás. O memorando do Pentágono chamou o Afeganistão de “Arábia Saudita do lítio” e projetou que os depósitos do país poderiam se igualar aos da Bolívia – um dos maiores do mundo.

O cobre também está se beneficiando da recuperação econômica global pós-Covid-19 – um aumento de 43% em relação ao ano passado. Mais de um quarto da futura riqueza mineral do Afeganistão poderia ser obtida com a expansão das atividades de mineração de cobre. Desafios de segurança, falta de infraestrutura e secas severas impediram a extração da maioria dos minerais valiosos no passado. É improvável que isso mude em breve sob o controle do Talibã. Ainda assim, há interesse de países como China, Paquistão e Índia, que podem tentar se engajar apesar do caos.

FONTE VEJA

Volta do Talibã significa retrocesso de 20 anos para mulheres no Afeganistão

Relatos de violência e repressão contra mulheres se multiplicam nas áreas já ocupadas pelo movimento fundamentalista que agora domina o país

(Azadah Raz Mohammad e Jenna Sapiano*) À medida que o Talibã assume o controle do país, o Afeganistão tornou-se novamente um lugar extremamente perigoso para se ser mulher. Mesmo antes da queda de Cabul no domingo, a situação estava se deteriorando rapidamente , exacerbada pela retirada planejada de todos os militares estrangeiros e pelo declínio da ajuda internacional.

Só nas últimas semanas, houve muitos relatos de vítimas e violência. Enquanto isso, centenas de milhares de pessoas fugiram de suas casas. A Agência das Nações Unidas para os Refugiados afirma que cerca de 80% dos que fugiram desde o final de maio são mulheres e crianças.

(No início de julho, depois que os líderes do Talibã assumiram o controle das províncias de Badakhshan e Takhar, eles emitiram uma ordem para os líderes religiosos locais fornecerem uma lista de meninas com mais de 15 anos e viúvas com menos de 45 para “casamento” com guerreiros talibãs – nota do tradutor).

O que o retorno do Talibã significa para mulheres e meninas?

Espancamento, açoite e apedrejamento

O Talibã assumiu o controle do Afeganistão em 1996, impondo condições e regras severas, seguindo sua interpretação estrita da lei islâmica.

Sob essas regras, as mulheres tinham que se cobrir e apenas sair de casa na companhia de um parente do sexo masculino. O Talibã também proibiu as meninas de frequentar a escola e as mulheres de trabalhar fora de casa. Elas também foram proibidos de votar.

As mulheres estavam sujeitas a punições cruéis por desobedecer a essas regras, incluindo serem espancadas e açoitadas – e apedrejadas até a morte se fossem consideradas culpadas de adultério. O Afeganistão tinha a maior taxa de mortalidade materna do mundo.

Com a queda do Taleban em 2001, a situação das mulheres e meninas melhorou muito, embora esses ganhos tenham sido parciais e frágeis.

As mulheres passaram a ocupar cargos como embaixadoras, ministras, governadoras, policiais e integrantes das forças de segurança militares. Em 2003, o novo governo ratificou a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da ONU, que exige que os países incorporem a igualdade de gênero em sua legislação interna.

A Constituição afegã de 2004 afirma que “os cidadãos do Afeganistão, homens e mulheres, têm direitos e deveres iguais perante a lei”. Enquanto isso, uma lei de 2009 foi introduzida para proteger as mulheres do casamento forçado ou quando ainda menores de idade, e também da violência doméstica.

De acordo com a ONG Human Rights Watch, a lei provocou aumentos no número de denúncias, investigações e, em menor medida, de condenações por crimes violentos contra mulheres e meninas.

Embora o país tenha passado de quase nenhuma menina na escola para dezenas de milhares na universidade, o progresso tem sido lento e instável. Relatórios da UNICEF apontam que, dos 3,7 milhões de crianças afegãs fora da escola, cerca de 60% são meninas.

Família em fuga de Cabul, capital do Afeganistão: mulheres e meninas temem violência do Talibã (Foto: Haroon Sabawoon / Anadolu Agency / AFP)
Família em fuga de Cabul, capital do Afeganistão: mulheres e meninas temem violência do Talibã (Foto: Haroon Sabawoon / Anadolu Agency / AFP)

Retorno a dias sombrios

Oficialmente, os líderes do Talibã têm afirmado que querem garantir os direitos das mulheres “de acordo com o Islã”. Mas isso foi recebido com grande ceticismo, inclusive por lideranças femininas no Afeganistão. Na verdade, o Talibã deu todas as indicações de que irá reimpor seu regime repressivo.

Em julho, a ONU relatou que o número de mulheres e meninas mortas e feridas no Afeganistão nos primeiros seis meses de 2021 quase dobrou em comparação com o mesmo período do ano anterior.

Nas áreas novamente sob controle do Talibã desde o começo do ano, as meninas foram proibidas de ir à escola e sua liberdade de movimentos foi restringida. Também houve relatos de casamentos forçados.

Diante do avanço do movimento fundamentalista, as mulheres afegãs estão colocando as burcas novamente e falam em destruir evidências de sua educação e vida fora de casa para se proteger do Talibã.

“Eu não esperava que fôssemos privados de todos os nossos direitos básicos novamente e viajaríamos de volta para 20 anos atrás. Que depois de 20 anos lutando por nossos direitos e liberdade, deveríamos estar caçando burcas e escondendo nossa identidade”, escreveu uma mulher afegã, protegida pelo anonimato, no jornal britânico The Guardian.

Muitos afegãos estão irritados com o retorno do Talibã e com o que consideram seu abandono pela comunidade internacional. Houve protestos nas ruas nas últimas semanas. As mulheres até pegaram em armas em uma rara demonstração de desafio. Mas isso por si só não será suficiente para proteger mulheres e meninas.

O mundo desvia o olhar do drama das mulheres afegãs

Atualmente, os EUA e seus aliados estão envolvidos em operações frenéticas de resgate para retirar seus cidadãos e funcionários do Afeganistão. Mas e quanto aos cidadãos afegãos e seu futuro?

O presidente dos EUA, Joe Biden, permanece praticamente indiferente ao avanço do Talibã e ao agravamento da crise humanitária. “Uma presença americana interminável no meio do conflito civil de outro país não era aceitável para mim”, disse Biden no fim de semana.

Mesmo assim, os EUA e seus aliados foram ao Afeganistão há 20 anos com a premissa de remover o Talibã e proteger os direitos das mulheres. No entanto, a maioria dos afegãos não acredita que experimentou paz em alguma época de suas vidas.

À medida que o Taleban reafirma o controle total sobre o país, as conquistas dos últimos 20 anos, especialmente aquelas feitas para proteger os direitos das mulheres e a igualdade, estão em risco se a comunidade internacional mais uma vez abandonar o Afeganistão.

Mulheres e meninas imploram por ajuda enquanto o Talibã avança. Esperamos que o mundo ouça.

*Azadah Raz Mohammad é doutora em Filosofia e PhD em Legislação Criminal Internacional pela Universidade de Melbourne (Austrália); Jenna Sapiano é doutora em Relações Internacionais e pesquisadora do Centro de Gênero, Paz e Segurança da Monash University (Austrália)

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