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Uma rua encantada verdadeiramente encantada – 1

                                                        Avelina Maria Noronha de Almeida

                                                              [email protected]

                Não sei se vai agradar, se estou arriscando, mas será uma rua verdadeiramente encantada porque ela não tem existência física para ser localizada…

                      No início do século XIX, um estilo de literatura tornou-se muito popular na Europa, principalmente na França, e logo depois foi importado para o Brasil, fazendo muito sucesso na segunda metade daquele século: o folhetim, que era publicado, de forma parcial e sequenciada em jornais e revistas, principalmente em jornais da capital do Império, o Rio de Janeiro.

               Na França, um dos romances lançado em jornal foi “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas.  Mas o primeiro romance-folhetim nesse país foi, em 1836,  La vieille fille (“A velha moça”) de Balzac, publicado em doze episódios no jornal “La Presse”, de Émile de Girardin.

               Também no Brasil, vários escritores da época utilizaram essa forma literária. Assim, como folhetins nasceram, por exemplo, “Quincas Borba”, de Machado de Assis; “Senhora”, de José de Alencar, “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo…

                Não sei se vai agradar, se estou arriscando, mas será uma rua verdadeiramente encantada porque ela não tem existência física para ser localizada: é uma rua histórica, que se estende durante um espaço de tempo nos primeiros tempos do século XIX em um lugar chamado Queluz, com uns e outros atalhos que saem da rua mas a ela continuam presos e voltam sempre.

               O escritor Soulié dizia que o folhetim “deveria ser uma narrativa histórica na linha de Walter Scott, na qual os personagens concentrassem em si os interesses, as paixões, os costumes e os preconceitos de uma época”. Estou tentando seguir os diretivos de Soulié e, em “O Servo de Deus” estou reunindo, com a maior fidelidade possível, advindas principalmente de livros de escritores estrangeiros que percorreram o Brasil naquele período, como episódios, localizações geográficas, inclusive detalhes dos caminhos, dos costumes, do lugar onde se desenrolam os fatos e das idéias da época. Coloco também personagens ou histórias inspiradas em antigos acontecimentos envolvendo antepassados, trocando nomes e floreando com ficção. Aí vai, assim:

O SERVO DE DEUS

“LEMBRA-TE DO TEU CRIADOR ANTES QUE SE QUEBRE O CORDÃO DE

PRATA, E SE RETIRE A FITA DE OURO, E SE QUEBRE O CÂNTARO SOBRE A FONTE, E SE DESFAÇA A RODA SOBRE A CISTERNA, E O PÓ VOLTE À TERRA DONDE SAIU, E O ESPÍRITO VOLTE PARA DEUS QUE O DEU.”

                                                   Eclesiastes 12,6-7

 

PRIMEIRO CAPÍTULO

Imagem da Internet

      – Vassuncê inda há de pagá essa mardade!..

       Havia um desespero lancinante na voz da velha escrava. Quando terminou de falar, estremeceu o corpo e caiu pesadamente no chão.

       Acabava-se uma vida de trabalho, sofrimento e humilhação.

       O Coronel murmurou, indiferente, olhando o corpo caído no chão:

       – Menos uma imprestável…

       À noite, todos os tambores da senzala marcaram seu compasso dorido de triste resignação.

     A cena acontecera no ano de 1823.

       Fora um dia atormentado. Dia de sofrimento na fazenda.

       Um homem poderoso e prepotente tinha sido ferido em seu orgulho.

       A mulher, submissa, como erva rasteira calcada pelos pés inclementes do marido, silenciosamente se entregava às lágrimas.

       Uma jovenzinha de quatorze anos jazia no leito, dilacerada pela dor, porque seu filho recém-nascido fora arrancado de seus braços.

       A senzala pranteava a morte da escrava Luzia.

Imagem da Internet

Passaram-se quinze anos…

     Um galo cantou cortando o silêncio. Outro respondeu ao longe. A madrugada estava chegando.

     No quarto, o escuro era palpável, como se um manto mágico ocultasse as formas.

     O silêncio apenas quebrado pelo barulho das palhas do colchão quando o velho se revirava no catre, procurando o sono que não vinha.

     Uma frase lhe veio à memória:

    –  Vassuncê inda há de pagá essa mardade!…

     – Velha maldita! Praguejadora dos infernos!

     O velho sacudia a cabeça desesperadamente, tentando afugentar as lembranças que agarravam sua noite indormida.

     Mas a madrugara chegara e ainda o encontrava mergulhado em aflitivas recordações.

     Depois daquele dia malfadado, tudo dera para trás. Não havia pensado antes, mas, de repente, teve a visão do declínio caranguejando ano após ano, sugando a força dos seus poderes, de seus bens e de sua vida.

     – Velha maldita! Praguejadora dos infernos!!!

     A manhã chegou espalhando o sol, primeiro no cume dos montes… depois foi deslizando pelo vale e, enfim, ele reinou soberano.

     Coronel Bento se arrastou até a janela. Desejou ver, como em outros tempos, o milharal verde, as folhas balançando ao vento, como um mar de verdura. Imaginou o bando numeroso de escravos saindo para o trabalho na roça e, lá no pasto, o rebanho a perder de vista.

     Mas o que tinha à sua frente era a realidade, a dura realidade. Os pés de milho mirrados, morrendo devido à seca. Não havia roça praticamente. Mais era o pasto ressequido. Um pasto sem reses. Somente havia cinco escravos, já não tão novos, remancheando pachorrentamente no terreiro…

     O  fazendeiro foi-se encostando aqui e ali, escorando-se nas paredes de pau-a-pique, passou o corredor, atravessou a sala e chegou à varanda.

     Sentou-se no banco com dificuldade

     Ficou olhando o vazio, olhos perdidos na sua decadência.

     Um bando ruidoso de maritacas passou voando.

     Os passarinhos cantavam nas árvores próximas à casa da fazenda, as quais, apesar da falta de chuva, ainda ostentavam um desbotado colorido verde. Mais ao longe, as quaresmeiras pintavam o céu com seu roxo da Paixão.

     Nada daquilo interessava ao velho. Nada enxergava.

                                                                                                          (Continua)

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