27 de abril de 2024 20:07

Garimpando – Uma rua encantada verdadeiramente encantada 3

Avelina Maria Noronha de Almeida

                                                      avelinaconselheirolafaiete@gmail.com

O SERVO DE DEUS

TERCEIRO CAPÍTULO

Imagem da Internet

Depois que a neta Joaquina e as outras escravas foram deitar, Joana sentou-se perto do fogão, apanhando aquele calorzinho gostoso nas pernas. As lembranças foram chegando, chegando, doendo, doendo… Ela é que tinha sido ama de leite de sinhazinha Francisca e a havia criado porque a sinhá Cândida era muito doente. Quinze anos já se tinham passado, mas não dava para esquecer.

            Era dia de São Bartolomeu, que diziam ser o dia que mais ventava no ano. As crianças, filhas dos escravos, que naquela época eram muitos, brincavam alegres, ignorantes do que se passava:

“Hoje é dia de São Bartolomeu,

Quem tem roupa vai à Missa,

Quem não tem faz como eu…”

            Ventava muito. As bananeiras parecia que tinham endoidecido.

       Um grito de criança cortou o espaço. Um grito de criança que nascia. O filho de sinhazinha Francisca.

             Um susto interrompeu as recordações de siá Joana.

            – Minha Nossa Senhora! O doce garrô…

         Joana se levantou e, correndo, pegou uns panos e outro tacho. Com cuidado, foi entornando as laranjas até chegar nas que ficaram agarradas no fundo.

            – Bem feito pra mim!…  Ficá pensano sem prestá atenção nu sirviço…

             A escrava pegou outro tacho. Esse estava cheio de azinavre. Jogou nele um punhado de sal, levou o tacho ao fogo e, quando a vasilha esquentou, foi passando limão com sal até ficar tudo lindo, com aquela cor rosada do cobre.

           – Agora é só fazê otra calda e jugá pru cima. Ninguém vai notá qui quemô.

              Enquanto a calda entranhava nas laranjas, Joana continuava com suas lembranças.

            “Dia mais triste… Coroné Bento mandô tirá a criança da sinhazinha e sumiu cum ela. Uns acha qui foi dada pros cigano qui tava pur perto e qui foro imbora no dia siguinte. Otros acha qui foi colocada numa cestinha narguma porta ou nargum muru, cum dote ô cum dinherinhu, um ‘exposto’, cumo é custume fazê pur aqui quando a criança num é fia de casamento. Num sei… Só Deus sabe. Nunca mais si ouviu falá daquela criança. E nem do pai dela. Ele sumiu qui nem fumaça. Moisés era um moço tão bão! Pusero ele, quando nasceu, na porta da casa do Coroné lá na vila. Até andaro dizeno qui divia ser filho dele com arguma escrava ou com arguma muié qui num pudia aparecê. Ou dum cumpade dele qui tava sempre cum ele… Mas ninguém provô nada… Moisés cresceu aqui na fazenda. Fazia de tudo. Era bem mandado. Todo mundo gostava dele. Deve tê fugido pra esse mundo de Deus com medo do Coroné.”

           Lá de fora vinha o barulho do vento. Às vezes, um uivo de lobo era ouvido. Mas vinha de muito longe. Os cachorros latiram, mas pararam logo.

             “Deve de sê argum gambá quereno cumê as galinha…”

            A escrava levantou-se, ajeitou as achas de lenha que estavam quase caindo. Esquentou as mãos perto das chamas e sentou-se outra vez. Já estava quase cochilando, por isso levantou-se e começou a andar para espantar o sono.

              Uma coruja piou lá fora. O vento sibilou mais forte.

             No fogão, a madeira estalou e as cinzas deram uma voada. As chamas do fogo desenharam figuras grotescas na parede.

             Barulho de passos arrastados…

             Um arrepio começou nos pés e percorreu todo o corpo de Joana.

             – Minha Nossa Sinhora! É as arma! Mi acode, Mãe de Deus!

             – Nhá Joana…

               Era a voz da Belarmina. Joana se acalmou….

              – Qui qui é, Belarmina?

        – Perciso contá um segredu. Uma coisa terrivi qui aconteceu nu dia qui nasceu a criança da sinhazinha Francisca. Num guento mais guardá issu sozinha. Tenhu qui disabafá. Só eu vi i nun contei pra ninguém inté hoji.

             – Pió do que a gente sabe num tem jeito.

             – Tem sim, Joana. Muitu pió.

                Joana ficou paralizada de medo, pensando no que poderia ser esse segredo…

            O silêncio ficou pesado. As sombras na parede pareciam cada vez mais diabólicas. O passado como que sangrava.

                                                                                               (Continua)

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