Avelina Maria Noronha de Almeida
O SERVO DE DEUS – 7
SÉTIMA PARTE
Teodoro também fechou os olhos e, como um relâmpago, brilhou na mente uma prece entregando a alma a Deus. Mas espantou-se, a bala não chegara a ele mas, sim, ao seu agressor, que se estatelou no chão.
Ouviram-se mais tiros e uma gritaria infernal.
Os dois prisioneiros estavam perplexos. Na escuridão da noite que envolvia a mata ao redor, no meio da cena alumiada pelo clarão das chamas, viam os homens se contorcendo e caindo. Não estavam entendendo nada…
A fogueira continuava indiferente ao drama, seguindo seu destino de paulatina consupção.
Passados uns minutos, surgiram os autores da carnificina. Eram também salteadores, mas de outro bando.
A esperança que surgira no coração de Teodoro se desmanchou como fumaça lançada ao vento, pois pensaRa que fossem soldados. Mas os acontecimentos posteriores fizeram renascer a esperança.
Teodoro e Francisca foram desamarrados. O chefe do bando lhes falou:
– Vosmecês estão com sorte! Acabamos de matar esses miseráveis que estavam atrapalhando os nossos assaltos nestas bandas. Como eu estou muito feliz, vou deixar vosmecês irem embora. Peguem suas mochilas e sumam! Depressa antes que eu mude de idéia e mate vosmecês!
Teodoro e Francisca se espantaram com a magnanidade do malfeitor. Agradeceram e saíram correndo receosos de que ele se arrependesse. Foram tropeçando nas raízes grossas que saíam das árvores, Francisca agarrou a saia num espinheiro custando a soltá-la, Teodoro caiu em cima de um galho caído e esfolou o braço, esbarravam com força nos troncos das árvores, uma loucura! Só quando chegaram ao caminho pararam, já quase sem forças, “pondo a alma pela boca”. De repente começaram a rir, aquele riso nervoso que costuma acontecer quando uma tensão muito forte chega ao fim.
Vencida a luta pela sobrevivência, a aflição de Francisca para saber o que seu pai mandara fazer voltou a desorientar a moça:
– O que o meu pai mandou vosmecê fazer com meu filho e com Moisés? Me diz depressa, Teodoro!
O pai de vosmecê me mandou matar o filho de vosmecê, meu filho Moises e que eles fossem enterrados pelos escravos que iam com a gente. Depois eu matasse os dois escravos e os enterrasse, para não ficar nenhuma testemunha do crime.
Foi uma espada atravessada no coração da moça. Era como se ela mergulhasse no inferno. Uma onda de ódio inundou a moça, apesar da advertência de Teodoro. O corpo de Francisca estremecia preso de uma descarga nervosa. Um grito lancinante foi ecoando entre as árvores da mata, um grito de animal ferido, um grito inumano.
– Não é meu pai! É um monstro, um miserável!
Teodoro ficou estático e sem voz. A pressão a que estivera sujeito desde algumas horas afetara seu corpo e sua alma. Via que a dor queimava as fibras do coração de Francisca, assim como a larva do vulcão queima o que está à sua frente. Francisca explodiu em manifestações de desespero e ódio.
Mas o homem não deixou que a explosão de dor permanecesse por muito tempo. Reagiu e conseguiu falar:
– Sossegue, sinhazinha. Calma! Perdoe o pai de vosmecê. Ele já pagou caro os pecados dele.
– Como vou ficar calma? Como vou perdoar? Ele mandou matar meu filho, meu filho! E vosmecê também é um monstro! Matou o seu filho e o meu filho!
Francisca avançou sobre o capataz gritando, sem ouvir o que ele tentava desesperadamente falar.
A dor que sentia ao presenciar tanto sofrimento transparecia no rosto do capataz. De repente, teve que cometer uma ousadia. Sacudiu com força a jovem para acalmar a histeria que a dominava e conseguiu falar:
– Calma, sinhazinha, eu não cumpri as ordens. Eu não podia matar meu filho e meu neto!
Francisca lançou-se nos braços de Teodoro, ainda presa daquela crise emocional:
– Que foi que vosmecê fez? Me conte!
O homem começou o relato:
– Eu fui até bem longe. Lá para os lados de Guarapiranga. O tempo todo caminhamos calados. Soltei primeiro os escravos. Disse a eles que, se voltassem a Queluz, seriam mortos pelo Coronel Bento. Em seguida entreguei a criança a Moisés, dei para ele umas economias que eu tinha guardado para uma precisão. Recomendei que fosse o mais longe possível e não voltasse nunca mais a Queluz, que a ordem do Coronel era que matasse ele e a criança. Moisés me olhou de um modo estranho, como se não entendesse o que estava acontecendo…
Francisca estava emocionada.
– Então Moisés e meu filho podem estar vivos? Vosmecê contou pra ele que era seu pai? Onde eles estão agora?
Teodoro até riu da confusão dela. Funcionou como um desafogo à tensão emocional que o velho sofria nos últimos tempos.
– Sinhazinha, é muita pergunta de uma vez só… Fique tranquila. Com a graça de Deus eles estão vivos, mas onde? Só Deus sabe… Não contei a Moisés que ele era meu filho. Não sabia como reagiria… Com uma lágrima escorrendo pelo rosto, ele me disse:
“– Deus pague vosmecê!”
E partiu. Fiquei olhando até que ele sumisse no meio do mato. Depois ajoelhei no chão e chorei como uma criança ou uma mulher..
(Continua)