Avelina Maria Noronha de Almeida
O SERVO DE DEUS
DÉCIMA PARTE
Ele se sentia, naquele momento, encostado à janela, como aquela figura do Antigo Testamento. Quase tivera uma vida de amor plenamente realizada. Quase pudera ser um pai que guiasse o filho pelos caminhos da vida.
A música ficava cada vez mais próxima.
– Que cantoria é essa, seu Teodoro?
– É o escravo queixando-se do serviço duro – lambá – e pede a morte.
– Coitado! – condoeu-se Francisca.
Até que, enfim, chegaram até um dos maiores garimpos da região. Quando perguntaram sobre o Servo de Deus, um minerador informou:
– Ele foi embora ontem.
– Para onde o Servo de Deus foi? – perguntou a desolada Francisca.
Ninguém sabia.
Foram até a vila. Iam batendo de porta em porta, até que, numa estalagem, disseram que ele tinha passado a noite lá, mas saíra cedo porque ia viajar.
– E para onde ele ia?
– Ele não falou, mas disse que ia para bem longe…
Teodoro então resolveu:
– Sinhazinha, temos que voltar. É inútil prosseguir nesta procura.
Francisca não teve argumentos contra a resolução de Teodoro. Dali mesmo pegaram a Estrada Real de volta a Quel
Foram mais vários dias de dificultosa viagem. Os primeiros, de chuva intensa. Dormiam em estalagens à noite. Durante o dia iam pelos caminhos, perguntando aos que vinham em direção oposta se tinham encontrado o Servo de Deus. Não. Ninguém tinha visto.
Já estavam a um dia e uma noite de Ouro Branco quando pernoitaram em uma estalagem. Na hora em que se levantou, ao encontrar-se com Teodoro, Francisca se assustou ao ver cair de sua roupa uma aranha escura e cheia. Teodoro matou-a e tranquilizou Francisca.
Prosseguiram a viagem. Já se aproximavam de Ouro Branco quando Francisca começou a sentir uma dor violenta no braço. Calvagaram algum tempo com a moça desatinada de dor. Ao passar pela estalagem da Varginha, Teodoro viu que, embora já bem perto de Queluz, não havia condições de prosseguir.
A mulher do estalajadeiro teve muito cuidado com a hóspede. Ajudou-a a deitar, deu-lhe uma mezinha e, depois, pensou em tirar a roupa da moça e dar-lhe uma de suas camisolas para dormir. Assim o fez e teve um susto. O braço da moça tinha uma terrível mancha escura.
Além da dor, a moça agora estava com febre e prostrada.
Teodoro foi para o quarto da moça e ficou cuidando dela a noite toda.
De manhã o homem levantou-se do banco, onde passara a noite sentado vigiando a doente. A manhã o pegara ali, tão acordado quanto estava ao cair a noite. De tempos em tempos verificava se Francisca estava com febre. Quando isso acontecia, mergulhava um pano na bacia, depois torcia bem e colocava na testa da moça. Pelo menos por algum tempo esse comportamento funcionara.
O estalajadeiro prometera ver se conseguia um cirurgião, mas não havia nenhum em Ouro Branco. Mas Deus havia de ajudar que passasse algum em viagem. Ele ficaria atento.
Teodoro hegou à janela, que dava para um terreno inculto. Um matinho rasteiro, umas flores raquíticas, plantas espinhentas e, mais adiante, um emaranhado de arbustos. Além do mais, embora a chuva da noite houvesse amainado, o dia estava cinzento, e aquela melancolia parecia acentuar-se naquele lugar. Uma visão desoladora.
Desoladora como sua vida.Seu filho se chamava Moisés. Porém Moisés era ele.
Lembrou-se do padre de quem era coroinha. Um dia o bondoso sacerdote contou a história de Moisés. Suas lutas como homem de Deus. Sua fé e persistência ao livrar os judeus do cativeiro no Egito. Achou a história bonita, mas dela lhe ficou uma impressão amarga, como se ele sentisse o sentimento de frustração daquele homem ao contemplar de tão perto a Terra Prometida e saber que não entraria lá.
Ele se sentia, naquele momento, encostado à janela, como aquela figura do Antigo Testamento. Quase tivera uma vida de amor plenamente realizada. Quase pudera ser um pai que guiasse o filho pelos caminhos da vida. Estivera a pouco de encontrar o Servo de Deus para curar o Coronel. Estava quase chegando de uma viagem tão longa e quase entregando ao patrão a filha dele sã e salva.
(Continua)