Avelina Maria Noronha de Almeida
O SERVO DE DEUS
DÉCIMA TERCEIRA PARTE
Onde estaria Francisca? E se tivesse morrido nos caminhos tão perigosos?
Bandoleiros, animais ferozes, índios… Meu Deus!
Como pude deixar minha filha partir?…
Na fazenda, o barulho do pilão se misturava ao do machado batendo na lenha. A porta do quarto do Coronel estava aberta e deixava entrar a fumaça que vinha da cozinha. A lenha devia estar verde.
Desde a aurora, de sua cama, o velho acompanhava os ruídos da casa. Às vezes cochilava, mas logo acordava.
Nos últimos dias, uma grande calma se apoderara dele. Mas a mudança já havia começado antes, desde que Francisca partira naquela empreitada de amor filial. Desde então seu pensamento estava todo centrado na filha, o último bem que lhe restava de um passado de riqueza e poder.
O Coronel conseguia até raciocinar, sem parcialidade, sobre certos acontecimentos. Francisca o fizera sofrer, fizera. Ela o desonrara. Porém ele a fizera sofrer também. Sempre fora prepotente. Ela vivia trancada com a mãe naquela roça, sem convivência constante com o povo da vila. Ele arrancara de seus braços o filho recém-nascido e mandara matá-lo. Francisca compensara o seu erro cuidando da mãe doente com desvelo e depois cuidando dele, mostrando seu perdão, chegando ao ponto de pôr-se ao mundo em busca de alívio para o sofrimento dele.
Onde estaria Francisca? E se tivesse morrido nos caminhos tão perigosos? Bandoleiros, animais ferozes, índios… Meu Deus! Como pude deixar minha filha partir?…
O Coronel Bento, que antes zombava de Deus, passou a rezar muitas vezes ao dia no oratório da falecida sinhá Cândida pedindo perdão a Deus e proteção para Francisca.
Um dia, Belarmina chegara espantada na cozinha, pondo a alma pela boca:
– Gente do céu! Ceis num querdita o qui vi agora! Fui vê se Coroné quiria arguma coisa. Qui vale qui abri a porta divagarinho i ele nem mi viu. Ceis querdita qui ele tava rezano ajuelhado no chão, perto do oratório de Sinhá Cândida?
Ninguém queria acreditar. Mas era uma verdade cada vez mais frequente desde um dia em que passara um padre por lá. Ele estava indo para uma fazenda da região para celebrar o casamento da filha de um fazendeiro. Não sei por que cargas d’água deu com o lombo na fazenda das Paineiras Velhas. A velha Belarmina, ao ouvir as palmas que denunciavam algum visitante, vendo que era um padre, mandou que ele entrasse, usando de toda a reverência.
Depois de servir para ele um bom café, com broinhas de fubá e bolo de mandioca, levou a mochila do padre para o melhor quarto. O sacerdote não podia seguir viagem porque já era bem de tardinha. Antes de deitar-se, ele foi agradecer ao Coronel pela acolhida.
Após se cumprimentarem e baterem um papo sobre trivialidades, de repente o Coronel começou a chorar. O padre tentava consolá-lo quando o velho lhe falou:
– Senhor Padre, vosmecê chegou na hora certa! Foi Deus que me enviou vosmecê. Eu quero me confessar!
Foi uma longa e demorada confissão. O Coronel contou todas as maldades que cometera durante a sua vida. Estava arrependido.
Além de dar a absolvição, padre Antônio, assim se chamava, trouxe paz à pobre alma com suas palavras sábias e bondosas.
A vida tem dessas coisas… Às vezes não somos nós que buscamos o caminho, mas às vezes é ele que passa por nós. Um caminho abençoado passou na frente do Coronel Bento. No dia seguinte, uma espantosa mudança transparecia forte naquela manhã, até no trato com as escravas.
O velho acabara de almoçar. Comera bem, como não fazia havia muito tempo. A confissão da véspera tinha feito dele um novo homem, cheio de fé e esperança. Foi-se arrastando para o quarto.
– Um milagre de Nosso Sinhô! – dissera Belarmina, com as mãos postas.
O velho sentia uma grande paz, uma confiança de que Deus traria sua filha de volta. Nem se importava mais que ela trouxesse o Servo de Deus. Ele queria é que ela voltasse sã e salva.
De repente, a porta do quarto se abriu, rangendo levemente.
– Pai, estou de volta!
– Ah, minha filha! Me abraça! Deus seja louvado! Eu não aguentava mais ficar sem vosmescê!
– Eu também estava com muita saudade de vosmecê, senhor meu pai. Mas vosmecê nem perguntou se encontrei o Servo de Deus…
– Filha, isso nem importa mais para mim. Eu queria era vosmecê nesta casa! – falou chorando o velho Coronel.
– Mas eu trouxe o Servo de Deus. Ele vai curar vosmecê, meu pai.
O quarto estava em penumbra, com a janela meio fechada. Mas o velho, de todo jeito, não tinha por onde reconhecer Moisés, porque a doença lhe afetara a vista. Os olhos estavam sempre embaçados. Além disso, aquela barba cerrada, já começando a ficar grisalha, a voz mudada e a certeza de que o moço estava morto, nem por sombra deixariam que o Coronel desconfiasse da identidade do curandeiro.
Foram dois meses de tratamento. Eram mezinhas diversas. Havia um bálsamo que era passado todo dia no corpo doente. No final, as feridas da perna secaram, a pele tornou-se lisa, sem enrugados nem pruridos. As dores do corpo desapareceram e até o embaçado da vista estava melhorando.
Moisés viu que podia suspender o tratamento a que se submetera o antes angustiado enfermo.
Passaram-se uns dias. O Coronel estava na varanda. Seus olhos estavam presos ao movimento das folhas de bananeiras impelidas pelo vento suave que soprava. Estava feliz porque sempre gostara de ver essa paisagem próxima ao terreiro. Acontece que ficara muito tempo sem ter esse prazer, mergulhado na escuridão da cegueira. Pensou: “Sofri tanto, até que chegou esse homem abençoado, o Servo de Deus, que sarou minha perna e me deu um remédio milagroso que me fez voltar a enxergar. Hoje, então, tudo está mais claro e posso ver o verde tão belo das bananeiras…”
Nesse momento, chegaram Francisca, Teodoro e Moisés e o rodearam. Preparavam-se para a grande revelação. Na sala próxima estava o jovem Teodoro, que havia chegado de Redondo; o pai o havia buscado na véspera.
(Continua)