28 de março de 2024 12:18

Coronavírus chega a 80% das unidades prisionais

Angustiada, Regina* procura respostas desde o dia 6 de março sobre a situação de seu filho, que está no sistema prisional há dois anos. O jovem de 24 anos teve tuberculose e foi transferido na última semana para a penitenciária Tacyan Menezes de Lucena, de Martinópolis, cidade localizada na região oeste do interior de São Paulo.

Ela não vê seu filho, que preferiu não identificar na reportagem desde março de 2020, no início da pandemia. “Eu consegui a visita virtual uma vez no ano passado, o site sempre dá problemas, nos falamos só por email toda semana. Como eu tenho um problema no coração e sou do grupo de risco não posso ir ao presídio quando as visitas voltaram. Agora na última semana voltou a visita virtual e me negaram, disseram que meu filho foi transferido para Martinópolis e lá está com muitos casos de Covid-19, estou muito preocupada”.

Segundo informações do site do Sindicato dos Agentes de Segurança Penitenciária do Estado de São Paulo (Sindasp), em fevereiro, um preso do pavilhão 2 da penitenciária testou positivo para o coronavírus, e seis servidores foram afastados com suspeita de Covid-19. “A direção da unidade interditou três celas do raio que é o pavilhão de trabalho da penitenciária. Os sentenciados do raio 2 foram para o regime de observação para tentar evitar a proliferação do vírus nos demais presos e funcionários”, diz a notícia.

Regina diz que somente no dia 25 de março poderá retornar o contato com seu filho, que por ser recém chegado em uma unidade tem que passar pelo regime de observação. “A penitenciária não dá muita informação, ele está na inclusão e só pode falar comigo daqui 15 dias. Ele está curado, mas o pulmão dele está comprometido, não é mais o mesmo. O tratamento do preso, se morrer para eles é um favor. Ele foi transferido no sábado, a penitenciária disse que ele só sai dia 25, depois disso eu posso enviar a documentação para poder fazer a conexão virtual. Estou de mãos atadas”.

No momento em que o Brasil registra os piores índices de contaminações e óbitos por Covid-19 e vê o sistema público de saúde colapsar em quase todos os estados, histórias como a de Regina não são incomuns. A população do sistema carcerário de São Paulo também vêm sentindo os reflexos da rápida transmissão de casos do novo coronavírus no estado que já carrega 62.570 óbitos nas costas e mais de 2 milhões de casos confirmados desde março de 2020. 

De acordo com dados obtidos pela Ponte via Lei de Acesso à Informação (LAI), 80% das 178 unidades prisionais em SP já tiveram casos de
Covid-19. Além disso, 25 prisões tiveram mortes. Desde abril de 2020 até o dia 28 de fevereiro de 2021, ocorreram 38 óbitos, e 12.204 pessoas presas se recuperaram. 

Os casos seguem crescendo: de acordo com o boletim divulgado pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) desta quarta-feira (10), de dezembro de 2020 a março de 2021, houve um salto de cerca de mil casos para mais de 1.600 neste mês entre as pessoas presas.

No Brasil houve um aumento de 13,5% em casos confirmados nos últimos 30 dias, segundo os últimos dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 8 de março.

Os dados mostram que há 2.596 casos suspeitos, mais de mil se concentram na coordenadoria oeste e 951 na coordenadoria central, onde estão localizados o Centro de Detenção Provisória (CDP) de Hortolândia e as penitenciárias Guareí I e Sorocaba II. 

As três unidades são as que registraram mais casos durante a pandemia. O CDP de Hortolândia já teve 1.019 casos e um óbito, a penitenciária de Guareí I teve 960 casos, mas nenhuma morte relacionada à doença, e a penitenciária Sorocaba II teve 884 casos confirmados e 5 mortes.

A SAP registrou 12.204 casos confirmados entre pessoas presas desde março de 2020 (considerando a soma de testes rápidos e do tipo RT-PCR), cerca de quatro vezes o registro de servidores contaminados, que totaliza 2.730. 

Na visão da psicóloga e mestranda em Antropologia Social pela Unicamp e integrante do Infovírus, Catarina Pedroso, é provável que haja subnotificação no número de casos. “Há fortes indícios de subnotificação de casos de óbitos e de contaminação entre pessoas presas. Por exemplo, há mais casos registrados de óbitos entre servidores do que entre pessoas presas, sendo que há cerca de 10 vezes mais pessoas presas do que servidores no sistema e que os próprios dados da SAP indicam que há cerca de quatro vezes mais presos contaminados do que servidores”.

Catarina ainda diz que o estado de São Paulo não apresenta em detalhes seu plano de vacinação, apesar de os servidores do sistema prisional e dos detentos serem um grupo considerado prioritário pelas condições às quais estão expostos. “Inclusive, as pessoas idosas, que já poderiam estar sendo vacinadas, não estão sendo e não há qualquer informação a respeito”.

Para a psicóloga, ainda falta transparência nesses dados. “Não sabemos os nomes das pessoas que faleceram, seus perfis como idade, gênero, cor. As unidades prisionais onde os óbitos e as contaminações ocorreram, como está sendo feita a testagem de pessoas presas e servidores, dentre outros”.

De acordo com o CNJ, até o dia 8 de março deste ano, 48.143 presos foram infectados por Covid-19 em todo o Brasil. Desse total, São Paulo corresponde a 25%. Entre o total nacional infectados, 39,3% estavam na região Sudeste, 21,8% no Centro-Oeste, 16,8% no Sul, 15% no Nordeste e 7,1% no Norte. 

Ao todo, 147 detentos morreram no país por conta da contaminação pelo vírus até este mês, ainda segundo o CNJ. A taxa de óbitos em presídios de São Paulo por Covid-19 também se mantém em 25% quando comparada com o restante do país.

Soltura de presos não superou superlotação

Com a disseminação do novo coronavírus, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a recomendação nº 62, que reitera a responsabilização do poder Judiciário e dos órgãos penitenciários pelo respeito a normas sanitárias e garantia à saúde coletiva. O texto abre a possibilidade de revisão de processos para decisões adequadas a cada caso e aponta orientações ao Judiciário para evitar contaminações em massa da Covid-19 dentro do sistema prisional e socioeducativo. 

Entre outras medidas, a recomendação serviu de apoio para pedidos de soltura de pessoas pelas defensorias, como aponta a advogada e pesquisadora do Projeto Gênero e Drogas do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), Cátia Kim. “Houve casos isolados de movimentações do Judiciário, mediante pedidos das defensorias públicas dos Estados e de advogadas e advogados. Muitos foram embasados na Recomendação nº 62 do CNJ, mas também de casos específicos envolvendo mulheres gestantes e com filhos menores de 12 anos, pessoas idosas e acometidas por doenças crônicas e outras questões de saúde graves”. 

Para a advogada, a redução da população carcerária, especialmente do regime semiaberto, ainda é muito baixa. “Entendemos que essa redução representa um percentual muito pequeno quando observada o número global da população carcerária no Brasil, 748.009 de julho a dezembro de 2019 e 702.069 de janeiro a junho de 2020. Além disso, tal redução não indica, necessariamente, que foram aplicadas medidas alternativas ao encarceramento”.

Segundo o painel do Tribunal de Contas do Estado, São Paulo soltou 7.348 pessoas em função da pandemia até o dia 31 de janeiro deste ano, o que significa cerca de 3% da população prisional, que é de 216 mil pessoas, como mostrou o jornal Folha de S.Paulo em setembro de 2020. 

Na mesma linha, a psicóloga do Infovírus também diz que o índice é ínfimo. “Em um cenário de superlotação, em que celas abrigam duas, três, quatro vezes mais pessoas do que as vagas disponíveis, esse índice de soltura é irrisório. Além disso, temos notícias de pessoas idosas e/ou que tinham comorbidades que estavam presas e faleceram por Covid-19, o que mostra que o Estado, notadamente o sistema de justiça, poderia ter atuado para evitar essas mortes e não atuou”, diz Catarina. 

Insalubridade e contágio nas prisões

Relatos de familiares preocupados com a pandemia dentro do cárcere, dificuldades de contato e pioras na alimentação foram alguns dos problemas que a líder do movimento Mães do Cárcere, Andreia MF vem se deparando desde o início da pandemia. A organização presta atendimento a mais de 4 mil famílias de pessoas presas e de egressos do sistema penitenciário.

Andreia aponta que muita coisa piorou com a pandemia. “Piorou muita coisa, eles não têm direito à máscara, álcool gel. Com a Covid-19 eu venho recebendo relatos de preocupação das famílias, que não têm notícias dos familiares que testaram positivo no sistema, alguns que morreram e têm que trazer o corpo, que o Estado não se responsabiliza. Demora nas cartas, que melhorou agora com a videoconferência, ainda que as famílias reclamem que é pouco tempo. Escutei muitos casos de que o preso foi falar com alguém, passou alguém atrás ouviu a conversa e o preso foi pro castigo”. 

No sábado (6/3), o Tribunal de Justiça de São Paulo suspendeu novamente as visitas presenciais nas unidades prisionais por 15 dias e retornou com o agendamento das videoconferências aos finais de semana.

A idealizadora do movimento Mães do Cárcere também diz que a vacinação deveria chegar de forma mais rápida às pessoas que estão em situação de restrição de liberdade. “Já que tem alguma vacina os presos deveriam tomar, eles vivem amontoados. A visita presencial veio quando o Estado precisou de votos, para calar a boca dos familiares liberou a visita. Deveriam vacinar os funcionários, presos idosos, acamados e baleados, por exemplo”.

Já a pesquisadora do ITTC revela que em muitos relatos a piora na alimentação chama a atenção. “Segundo relatos recebidos por organizações da sociedade civil como a nossa e movimentos pelo desencarceramento, a alimentação foi um dos aspectos de grande piora dentro dos sistemas prisionais do país, com redução de quantidades e qualidade dos alimentos. Além das restrições de consultas e tratamentos de saúde externos, realização de exames de detecção da Covid-19 e maior restrição a entrada de insumos enviados pelas famílias através dos Correios (sedex)”.

“Outro ponto que merece destaque foi a demora para o uso das visitas por videoconferência e/ou a não utilização deste meio de visitas em muitas unidades do país. Em relação à necessidade de testagens em massa, vemos o mesmo reflexo dentro e fora do cárcere, ou seja, ainda não podemos afirmar que foram realizadas”, relata Cátia Kim do ITTC. 

Além do mais, Catarina Pedroso lembra que, em muitos casos, pessoas presas com sintomas de Covid-19 não foram atendidas. “O risco de contágio é coletivo, e os relatos que chegam são de pessoas preocupadas com companheiros de cela que estão há dias apresentando sintomas e nada é feito, por exemplo. Abundam relatos de pessoas com sintomas típicos de Covid-19 que não são atendidas dentro das unidades prisionais, ou que demoram a ser atendidas ou não são adequadamente tratadas, podendo ter um agravamento do quadro, sem falar em todo o sofrimento implicado nessa espera”. 

O que diz a SAP

Ponte questionou a assessoria de imprensa da Secretaria da Administração Penitenciária a respeito de qual protocolo é feito quando há um caso de Covid-19 confirmado nas unidades. Sobre isso a SAP afirmou:

“Nos casos suspeitos entre os presos, o paciente é isolado e a Vigilância Epidemiológica local é contatada. Os servidores em contato com o paciente devem usar mecanismos de proteção padrão, como máscaras e luvas descartáveis. Se confirmado o diagnóstico, além de continuar seguindo os procedimentos indicados, o preso será mantido em isolamento na enfermaria durante todo o período de tratamento”.

A nota ainda diz que todo servidor com suspeita de diagnóstico de Covid-19 está devidamente afastado sob medidas de isolamento em sua residência, conforme orientações do Comitê de Contingência do coronavírus, e que a Secretaria acompanha seu quadro clínico, fornecendo todo o suporte necessário para sua recuperação.

Sobre quais medidas a SAP está tomando para evitar a contaminação nas unidades prisionais, a nota informa que “a pasta implementou, em junho de 2020, um amplo programa de testagem em massa de servidores e presos sob custódia da pasta por meio de ações conjuntas com a Secretaria de Estado da Saúde, Instituto Butantan, prefeituras e outras instituições”. 

Sobre as medidas de higiene e distanciamento, a pasta afirmou que “foram aplicadas e as atividades coletivas suspensas; a limpeza das áreas foi intensificada; a entrada de qualquer pessoa alheia ao corpo funcional foi restringida; foi determinada a quarentena para os presos que entram no sistema prisional; realizado o monitoramento dos grupos de risco; ampliação na distribuição de produtos de higiene, álcool em gel e sabonete e distribuição de Equipamentos de Proteção Individual”.

Sobre as visitas, a SAP apontou que “retomou no último dia 3 os agendamentos das Visitas Virtuais – 2ª Fase do Programa Conexão Familiar nos 178 presídios do estado. A volta das chamadas à distância entre presos e seus familiares ocorreu após a Justiça suspender as visitas presenciais. Somente pode usufruir da ferramenta o familiar que estiver cadastrado no rol de visitas dos reeducandos”. 

Em relação ao plano de vacinação a pasta não comentou nada.

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