Sob as emoções que afloram na hora do voto, esconde-se uma infinidade de temas decisivos para a sociedade. Tem que lembrar deles!
Um sortido coquetel de sentimentos envolve as odisseias eleitorais da vacilante democracia brasileira. Tem o pessoal da raiva, que vai votar contra alguém, “para mudar tudo isso que está aí”; outros dedilham o teclado preto e grande por paixão pelo risonho que aparece na foto; uns poucos se decidem a partir de temas específicos; e uma turma numerosa simplesmente ignora o processo, sabotando por obtusa desobediência o tal voto obrigatório.
Mas muita gente, de todas as tribos, atravessa o clímax da democracia sem se dar conta dos vários envolvimentos e consequências da própria escolha. Deixa-se levar pela emoção para escolher um candidato – em especial do Executivo – e, no bojo, concede a ele poderes que podem mexer com a sociedade por décadas, ou para sempre.
As letras pequenas do contrato eleitoral guardam itens decisivos para a vida no país. Algumas resoluções sobrevivem muito além dos quatro anos de um mandato – e normalmente são ignoradas na viagem ao indevassável da urna eletrônica, a conclusão de uma saga pontilhada de irracionalidade.
Falta, para usar uma palavra da moda, letramento eleitoral.
A começar, claro, pelo presidente da República. O conjunto de nomeações que está nas atribuições do inquilino do Planalto dura muito além de seu mandato e afeta rigorosamente toda a população. E nenhuma escolha é mais importante do que os ministros do Supremo Tribunal Federal. A mais alta corte de Justiça vigia o cumprimento da Constituição – e toma decisões que vão do casamento gay à demarcação de terras indígenas; da aplicação da Lei de Cotas à quebra de patentes de medicamentos; do afastamento de presidentes, ministros, governadores, senadores, deputados a pesquisas com células-tronco. Uma infinidade de temas essenciais à vida nacional.
Pois o eleito em 2022 irá nomear – no mínimo – dois ministros para compor os 11 titulares do time mais poderoso do Judiciário. Começa por um com nome de centroavante: indicado por Luiz Inácio Lula da Silva em 2006, Ricardo Lewandowski se aposentará compulsoriamente em maio de 2023, aos 75 anos. Cinco meses depois, Rosa Weber, escolhida por Dilma Rousseff em 2011, vai pendurar a toga. Outros ainda podem parar por vontade própria – como fez Joaquim Barbosa em 2014.
Pouco afeito à independência dos poderes (como de resto aos outros pilares da democracia), Jair Bolsonaro nomeou dois ministros, os obedientes Kássio Nunes Marques, em 2020, e André Mendonça, em 2021. Costuma tratá-los como empregados, mensageiros de suas bizarrices na Corte. Se tiver poder de escolher mais dois (no mínimo), sabe Deus – ou belzebu – o que pode aparecer. Indicou, é para sempre, ou quase: os filhos de papai Jair só deixarão suas cadeiras em 2047!
Ah, mas os indicados passam por uma sabatina no Senado, argumentará um mais ingênuo. Nos 132 anos do sistema atual, apenas três foram rejeitados, todos nos turbulentos tempos do presidente Floriano Peixoto, no alvorecer da República. As idiossincrasias da política nacional transformaram o rito em desimportante formalidade. “Alguns órgãos podiam agir com mais atenção”, observa Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Uerj.
Por tudo isso, ele defende mandato de 10 anos para os ministros do STF, como acontece em alguns países da Europa. E, como argumento, invoca o retrocesso na lei do aborto nos Estados Unidos, por decisão recente da Suprema Corte, dominada por ultraconservadores nomeados pelo surrealista Donald Trump.
Nos cargos com prazo de validade, Sarmento ainda lembra o constrangimento da recondução de outro nomeado presidencial que precisa de referendo: Augusto Aras, o subserviente procurador-geral da República. Com alegre aval do Senado, ele fica no cargo até setembro de 2023, praticando o “liberou geral” na (não) vigilância do Executivo, sua missão conceitual.
“Toda a estrutura precisa ser pensada na hora do voto”, ensina Sarmento, citando Funai, Ibama e Fundação Palmares, além de todos os ministérios, entre os cargos na mão do presidente. “A estratégia do atual governo é pôr o inimigo no órgão que cuida de um setor”, constata o professor, acrescentando que os mandatários das 11 agências reguladoras também são nomeados pelo presidente. “Ele pode escolher pessoas contrárias às missões das agências”, explica, falando de setores como petróleo, mineração, vigilância sanitária, saúde, transportes, energia elétrica e aviação civil.
O professor da Uerj defende, assim, a conjugação da qualificação do eleitorado com a atuação menos flácida dos outros poderes. De qualquer jeito, o pessoal precisa carregar mais racionalidade e menos emoção na hora da urna – para todos os cargos. Não dá para votar no candidato a governador porque ele se vende como “ex-juiz federal” ou promete “dar tiro na cabecinha” dos outros. A eleição estadual, aliás, funciona, normalmente, como um plebiscito da segurança – com a vitória, quase sempre, do discurso da brutalidade contra o povo pobre e preto.
As campanhas nos estados ignoram, de caso pensado, temas decisivos para a vida cotidiana. Na Amazônia Legal, o meio ambiente jaz esquecido durante os debates e a propaganda eleitoral. No Rio de Janeiro, não se fala do transporte público, das urgências dramáticas na habitação ou na despoluição da Baía de Guanabara. São Paulo ignora a poluição do ar. O Rio Grande do Sul invisibiliza a destruição do pampa. Crise climática? Esquece.
Saudade do tempo em que era só ir lá votar, sem toda essa informação para processar, né minha filha? Democracia que funciona é assim mesmo, dá trabalho. Mas vale a pena.
FONTE PROJETO COLABORA