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No sertão de Minas, há lugares em que é o fogo que apaga a água

Em uma espécie de contradição trágica, fogo vem extinguindo nascentes nas veredas do grande sertão de Guimarães Rosa, matando por baixo vegetação e minas

Noroeste e Norte de Minas Gerais, Trijunção Minas, Goiás e Bahia – O fogo em brasa sorrateiro, que consome por baixo o solo das veredas, é o maior responsável por dizimar esse ecossistema de onde fluem as águas que abastecem parte do Rio São Francisco e de seus afluentes. Sem a vereda, o cerrado é condenado, o clima muda, o calor vem em ondas, a seca aumenta, as tempestades ficam mais fortes.

Somados, são fatores apontados por especialistas e ambientalistas como capazes de levar o sertão a não mais se recuperar, deixando de ser o ambiente rico retratado pelo escritor e imortal João Guimarães Rosa na obra-prima “Grande sertão: veredas”. É o que mostra o segundo dia reportagem da série “Veredas mortas”, que toma emprestado o título originalmente pensado pelo autor, mineiro de Cordisburgo, para o livro que se tornaria sua maior referência e, hoje, assustadoramente condizente com as ameaças a esse bioma vital.

A cada cinco hectares queimados em florestas mineiras, um desaparece no sertão onde se passa o romance de Rosa. “Os incêndios são o pior inimigo das veredas. Uma vereda, depois que queima, pode morrer sem recuperação”, destaca o chefe do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, Alberto Peterson de Almeida. A unidade de conservação integral entre Minas Gerais e a Bahia é um paredão verde criado para refrear o desmatamento do cerrado e o avanço de plantações, e que serve de refúgio para a fauna, abriga diversas nascentes, mas também é vítima de incêndios criminosos.

Não há dados atuais, abrangentes e sistematizados, sobre as condições das veredas no estado. O Inventário Florestal (2009) do Instituto Estadual de Florestas de Minas Gerais (IEF-MG) é o levantamento mais recente, e soma 406.037,8 hectares de formação, respondendo por 3,38% do cerrado nativo.

Como a vereda representa uma vegetação primária, a equipe de reportagem do Estado de Minas compilou dados de satélites utilizados pela plataforma internacional de monitoramento de florestas Global Forest Watch (GFW) para mostrar a pressão sobre esse ecossistema nos 55 municípios entre Minas Gerais (50), Goiás (3) e da Bahia (2) que são identificados como o sertão retratado por Guimarães Rosa.

Peterson Almeida, Chefe do Parque Nacional Grande Sertão Veredas
Peterson Almeida, Chefe do Parque Nacional Grande Sertão VeredasMateus Parreiras/EM/D.A Press

De 2013 a 2023, os dados indicam que Minas Gerais perdeu 1.133.600 hectares (ha) de cobertura florestal natural, enquanto do sertão de Guimarães Rosa desapareceram 174.088 ha, sendo a perda da área sertaneja mineira correspondente a 165.798 ha, ou 15% da derrubada de árvores estadual.

Mas o fogo é ainda mais destrutivo para a região das veredas. Enquanto de 2001 a 2023 Minas Gerais perdeu 349.000 ha de cobertura florestal por incêndios, o sertão rosiano teve 80.191 ha queimados. Apenas em território mineiro, 74.484 ha (21,3%) se tornaram carvão e cinzas. É como se a cada cinco hectares de floresta queimada em Minas Gerais, o cerrado das veredas de Guimarães Rosa perdesse um hectare para as chamas.


No solo, uma bênção e a maior fragilidade


“O solo da vereda é uma turfa. Tem muita matéria orgânica. Quase não tem terra: são entremeados de raízes em um solo permeável. Na época da chuva, a água infiltra com facilidade e abastece o lençol freático, alagando a vereda como se fosse uma esponja”, descreve o chefe do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, Alberto Peterson.

Mas essa característica que faz da formação um oásis é também sua maior fragilidade. “Quando tem um incêndio, esse material orgânico pode ficar queimando no subterrâneo por meses, consumindo a vereda toda por baixo. Às vezes aparece uma labareda, e o fogo sobe de novo. O único jeito de combater é lançando muita água. Um trabalho longo e que pode ter uma nova ignição a qualquer momento, por causa das brasas no subsolo. Já tivemos de cavar trincheiras de três metros de profundidade para deter o fogo”, conta o gestor do parque nacional.

Um ciclo agravado pelo desmatamento, que provoca maior seca na região, remove a cobertura vegetal do solo e não permite a absorção das chuvas pelas áreas de recarga de nascentes e das veredas. “Às vezes chove na cabeceira das nascentes e a vereda enche sem receber chuva diretamente. Só que, com essa seca provocada pelo desmatamento, a vereda fica seca por mais tempo e o incêndio de turfa, no subterrâneo, também dura mais tempo. E é isso o que mata uma vereda”, conta Alberto Peterson.

Em uma das veredas onde a equipe do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) conseguiu extinguir as labaredas superficiais, ainda havia fogo de turfa, como mostrou o chefe da unidade de conservação. O resultado é que, por cima, restou um cenário de devastação, com árvores esturricadas e palmeiras de buritis típicas das veredas tombadas e fumegando. Muitas das raízes dessas árvores já se encontram expostas, correndo risco de desabar com o vento e novos incêndios.

Incêndio na zona rural de Pirapora, no cerrado mineiro
Incêndio na zona rural de Pirapora, no cerrado mineiro
Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Com os dedos das mãos, Alberto Peterson arranca parte do solo que parece saudável, revelando um caminho de brasas vermelhas vivas, que qualquer vento ou sopro podem se avivar, tornando-se labaredas de um novo incêndio de superfície.


Barreira limitada

Nos períodos de 8 a 12 de abril e de 12 a 18 de maio deste ano, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, em conjunto com a Polícia Militar e o Ministério Público, realizou as Operações Adsumus II e III, que tiveram como alvos polígonos de desmatamento no Noroeste de Minas, especificamente nos municípios de Formoso, Chapada Gaúcha, Bonito de Minas e Januária, locais onde há grande desmate e que possuem ainda muitas áreas de veredas.

“Essa região se encontra próxima ao Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Durante as operações foram constatadas diversas irregularidades, inclusive por intervenção em vereda, porém em poucos casos”, informou a secretaria.

Acompanhe a série

Esta reportagem integra a série “Veredas mortas”, do Estado de Minas, que toma emprestado o título inicialmente pensado por Guimarães Rosa para sua obra-prima, depois batizada “Grande sertão: Veredas”. As reportagens começaram a ser publicadas no domingo (14) e a íntegra das reportagens, galerias de fotos e vídeos estão disponíveis em nosso site.

FONTE ESTADO DE MINAS

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