Nas ladeiras antigas de Congonhas, onde o som dos sinos parece marcar não só a hora, mas o compasso do tempo sagrado, nasce a cada ano uma das mais emocionantes encenações da Paixão de Cristo do Brasil. Mas para Jacqueline Romero, a Semana Santa nunca é apenas tradição. É memória viva, arte pulsando – e maternidade sagrada.
“Eu dizia que ele já escutava o povo quando passávamos pelo Largo da Basílica. Eu estava grávida, e Guilherme já fazia parte do elenco.” Essas são palavras de Jacqueline, artista completa – atriz, dançarina, alma da cultura popular congonhense. Sua presença nas manifestações da cidade dos Profetas é tão frequente quanto o voo das andorinhas ao entardecer.
Ela não exagera quando diz que o filho nasceu no palco. O ventre era o camarim, o útero era coxia. Ainda não havia choro nem fala, mas havia arte. Guilherme Romero – hoje bailarino, ator e estudante de Música na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) – respirava o cheiro de figurino antes mesmo de dar seus primeiros passos.
Aleijadinho assiste, em pedra e eternidade
Tudo acontece sob os olhos imóveis – e ao mesmo tempo cheios de movimento – dos doze profetas esculpidos por Aleijadinho. Lá no alto do adro da Basílica do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, eles observam o espetáculo humano que desce e sobe as ladeiras. Mármore, suor e fé se misturam numa coreografia sagrada.
As cenas da Paixão ganham vida em meio à arquitetura barroca. O cenário é real: o morro, o céu da Semana Santa que sempre ameaça chuva e, ainda assim, é coberto por luz. E ali estão mãe e filho, Jacqueline e Guilherme, em papéis diferentes, mas unidos por uma missão comum: emocionar, tocar, fazer viver a Palavra através do gesto.
“É quando ele entra em cena que eu me calo por dentro. Como se o menino que carreguei voltasse a ser parte de mim. E eu me torno Maria, a mulher que assiste seu filho cumprir um destino que não escolheu.”


A voz de Jacqueline se embarga. Não é só teatro. É comunhão. Guilherme, com olhos brilhando e postura serena, completa:
“É mágico. A gente não ensaia só uma peça, a gente encena a história da fé do nosso povo. Eu não me lembro de quando comecei, porque na verdade… eu nunca parei.” Teatro é ventre. Fé é cordão. Congonhas é altar
A cada passo nas pedras irregulares das ruas de Congonhas, Guilherme revive os passos que trilha desde o útero. A cidade, com sua arquitetura colonial, suas escadarias e capelas, parece repetir com ele o mesmo ritual de nascimento: do silêncio ao grito, da dor à redenção.
Amaury Lorenzo, ator renomado e congonhense, dá corpo ao Cristo crucificado*, mas a dor da mãe que vê o filho no caminho do Calvário se revela verdadeira nos olhos de Jacqueline – e na emoção coletiva que toma conta da multidão. Quando a cruz é levantada, a arte atinge seu auge. Não é só performance. É sagrado. E quando Jacqueline chora, Congonhas chora com ela.
A cultura que gera, a fé que sustenta
O que acontece entre mãe e filho em Congonhas durante a Semana Santa é mais do que arte. É herança afetiva, é DNA cultural. É prova viva de que a cultura de um povo também se transmite pelo sangue, pelo olhar e pelo gesto.
Jacqueline gerou Guilherme no ventre. Mas foi no palco que ela o pariu para o mundo. E é ali, entre as pedras da cidade dos profetas, sob o olhar eterno de Aleijadinho e as bençãos do Bom Jesus que eles seguem contando a história mais antiga do mundo com o frescor de um amor que nunca morre.
*Guilherme Romero interpreta Jesus em vários momentos da Vida Crucis.