Por Jurema Werneck, Bruna Benevides, Daniel Canavese e Luis Eduardo Batista *
Ygona Moura, 22 anos, influenciadora digital, travesti, negra entrou para as estatísticas da população trans e negra. À covid-19, ela não resistiu e morreu na noite de quarta-feira, 27 de janeiro. Internada há 10 dias, o agravamento do seu quadro clínico confirma dados do Ministério da Saúde: 55% dos pretos e pardos internados pelo coronavírus morrem. A notícia da partida de Ygona ocorre na semana do Dia Nacional da Visibilidade Trans (29 de janeiro) e escancara um fator que ainda está longe de ser resolvido: bem-estar e saúde dessas pessoas
A história de Ygona é muito mais do que seu vídeo dizendo que “iria aglomerar mesmo”, contrariando os protocolos de segurança durante a pandemia da covid-19. Sua fala viralizou nas redes sociais e promoveu uma enxurrada de posts com mensagens de ódio contra a influenciadora. O que quase ninguém sabe ou procurou saber, é que Ygona há pouco tempo estava sem lugar para morar, foi expulsa de casa por ser travesti e foi morar num abrigo, em São Paulo. Essa é a realidade de outras muitas mulheres e homens trans que não são acolhidos por suas famílias e também não encontram amparo e proteção em políticas públicas. Ygona enquanto influenciadora, neste período de pandemia, conseguiu visibilidade e era convidada para participar de festas e “aglomerações” que pagavam por sua presença. Fazia o que dava e como dava. Se tivesse assistência e proteção social, ela não precisaria se expor para sobreviver.
Um dia no ano não basta para romper barreiras imensas e cessar a constante violência que impede a população trans e as travestis de usufruírem de seus direitos e, sobretudo, de viverem com segurança e qualidade de vida no Brasil. O caso Ygona precisa ser lembrado hoje e sempre, para não virar apenas mais uma estatística. Trazemos à luz as ausências diárias que essa população se depara com o propósito de alertar as autoridades públicas que basta. E 2021 não pode ser palco de mais transfobia e mais racismo.
Mudanças estruturais urgentes precisam acontecer e aqui elencamos algumas:
– A formação profissional na área de saúde precisa ser pautada pelo respeito aos direitos humanos, com enfoque nos direitos sexuais e reprodutivos, na diversidade de gêneros, no cuidado integral e nas especificidades de corpos marginalizados, como os corpos de pessoas trans e travestis. As pessoas que se profissionalizam hoje e no futuro devem estar aptas a atender a população trans, respeitando suas diferentes características e pertencimento de raça ou etnia, de classe social e origem, enfrentando e eliminando estigmas e discriminações. Sabemos que falta muito para chegarmos lá, mas já passou da hora de começarmos a mudar.
Há décadas, pesquisadoras(es) em saúde pública, como as (os) que fazem parte do Grupo Temático de Racismo e Saúde, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), alertam que o racismo adoece de forma significativa a população negra. São altas as taxas de doenças crônicas como diabetes, pressão alta, problemas respiratórios e acesso inadequado a medicamentos e prescrições. A população trans e as travestis negras e indígenas enfrentam o racismo e a transfobia no seu cotidiano, encontram dificuldades no acesso à assistência de saúde adequada, o que reforça o sofrimento e a violência estrutural a que estão submetidas. Não será coincidência, portanto a baixa expectativa de vida deste grupo, que atualmente é metade da média nacional que é de 75,5, estando em 35 anos apenas, segundo estatísticas oficiais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
As políticas de equidade no SUS são importantes conquistas dos movimentos sociais, e os movimentos LGBTQIA+ e o movimento negro estiveram na linha de frente no estabelecimento de tais políticas e direitos. No entanto, encontram resistências e incompetências por parte de gestores e de profissionais que têm responsabilidades em sua implementação e não o fazem. Nesse sentido, é urgente, para a redução de violências e melhoria da qualidade de vida das pessoas trans e travestis, o investimento na implementação da Política Nacional de Saúde Integral LGBT e da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, além da ampliação do processo transexualizador para questões de saúde específica da população trans;
– Falta de acolhimento e apoio matam;
Segundo levantamento de pesquisadores(as) do Grupo Temático de Saúde LGBTI+, da Abrasco, a maioria dos Planos Estaduais de Saúde não contempla ações específicas para as pessoas trans e as travestis. Portanto, as ações de saúde e de cuidado como a atenção a demandas hormonais, o processo de cirurgias para modificações corporais ou a prevenção combinada ao HIV, são direitos negados, sobretudo quando se trata de pessoas negras e pobres.
O racismo, a transfobia e o cissexismo precisam ser debatidos, enfrentados e superados urgentemente. O cissexismo é a condição de privilégio de gênero de quem tem o corpo biológico em conformidade com seu gênero, principalmente masculinos.
A Anistia Internacional Brasil lançou em novembro de 2020 a iniciativa Toda Friday é Black. A partir dela, todas as sextas-feiras convidaremos você ao debate e à reflexão para que possamos propor e construir as mudanças necessárias para que o Brasil se torne, de fato, e de direito um país diverso, plural e aberto a todes.
E como diz o lema da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) é preciso “resistir para existir, existir para reagir”. Contamos com você para que a população trans e as travestis sejam plenas em direitos e com ainda mais visibilidade. E que o Brasil deixe o posto de país que mais mata a população trans no mundo e assegure a todes o direito à vida.
*Jurema Werneck é diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil
* Bruna Benevides é Militar da Marinha do Brasil, feminista, Transativista, consultora de gênero e diversidade e autora da pesquisa sobre violencia e assassinato de pessoas trans brasileiras pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)
*Daniel Canavese é sanitarista, vice-coordenador do Grupo Temático Saúde da População LGBTQIA+ da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e professor de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
*Luis Eduardo Batista é sociólogo, coordenador do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva e pesquisador da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo (CCD/SES-SP)