Por Luiz Otávio da Silva
“veja o mundo num grão de areia,
veja o céu em um campo florido,
guarde o infinito na palma da mão,
e a eternidade em uma hora de vida!”
De acordo com fé Cristã, a Semana Santa é a ocasião em que é celebrada a Paixão, a Morte e a Ressurreição de Cristo. Durante esse período de celebração vários fatos sobre os dias finais da vida de Cristo são, de várias formas, (re)lembrados. Tudo isso passou a acontecer a partir do ano 325 depois Cristo, quando foi realizado o Concílio de Niceia, presidido por Constantino I ou Constantino Magno, Imperador Romano. Esse Concílio foi organizado pelo Papa Silvestre I e teve como principal objetivo criar e consolidar, por meio de Assembleia, a Doutrina da Igreja Católica. Dentre outros pontos, decidiu-se que Semana Santa seria celebrada entre os Domingos de Ramos e de Páscoa e, portanto, cada dia alusivo a um “acontecimento”.
Celebrar a Semana Santa em Conselheiro Lafaiete é, sem dúvida, um momento de maior emoção para uma lafaietense – dona Cecília Machado, que há mais 80 anos interpretou com emoção d´alma, o contrito Canto da Verônica nas noites lastimosas da Semana Santa. Esse Canto é um trecho do Livro das Lamentações de Jeremias. Até o início do século XVIII era executado por um homem. Verônica vem do latim e grego: ‘vero icone’, que significa ‘verdadeira imagem’. O Canto da Verônica tinha como intuito proclamar que aquele homem que seria morto era o verdadeiro Filho do Pai.
Segundo a tradição, Verônica foi uma mulher que acompanhava a flagelação de Cristo. Ela portava um lenço enquanto Cristo carregava a pesada cruz. Essa mulher, ao se aproximar do Messias, que já estava como rosto coberto de suor e sangue, secou-lhe a face com o lenço. A figura do rosto de Cristo ficou estampada naquele tecido vindo a se chamar Véu de Verônica ou Sudário. Na página do Facebook do Museu da Música de Mariana, lê-se; “(…) em pleno século XVI já existia a exposição, durante a Procissão do Enterro, de um pano com a imagem de Jesus, denominado “Verônica de Cristo”, “Verônica do Senhor” ou, simplesmente, “Verônica”. Foi o jesuíta Fernão Cardim, escrivão do Padre Visitador Cristóvão de Gouveia, da Companhia de Jesus, quem apresentou a primeira notícia conhecida dessa prática no Brasil, na Sexta-feira Santa celebrada no Colégio Jesuítico de Salvador, em 30 de março de 1584: (…)”.
O vos omnes qui transitis per viam
(Ó vós todos que passais pelo caminho)
Cecília Machado do Nascimento é nascida em Conselheiro Lafaiete, no dia 24 de janeiro de 1929 (hoje com 92 anos). Filha de Silvério Dorotheu Machado e Maria Augusta Rodrigues, à época moradores da Rua Duque de Caxias, no bairro Chapada. A mãe era do lar. O pai, senhor Silvério, trabalhava como pedreiro no Morro da Mina e era músico da Sociedade Musical Santa Cecília, tocava bombardine e trombone e ensinava música em casa. Ao local de ensaio dessa Banda foi dado o nome dele.
Uma noite, ao ouvir o pai ensinar aos músicos, Cecília disse a ele que sabia o que estava ensinando, aprendera só de ouvir. A mãe dela ficou apreensiva, disse que música para mulheres, era apenas para aquelas da alta sociedade. Senhor Silvério então resolveu tomar a lição da filha, tocou várias notas alternadas, em um trombone e ela solfejou, com precisão cada uma delas. Então se constatou que Cecília havia sim, aprendido teoria musical. Ganhou de presente do pai um tradicional método de teoria musical – o P. Bona (Pasquale Bona). Começou ali a emocionante vida musical de Cecília Machado.
Certa vez, a menina Cecília cantava na Coroação de Maria na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, naquela época ainda não havia Coroação na antiga Capela do Cabo Verde (atual Basílica do Sagrado Coração de Jesus), a coordenadora do mês de Maria, Iria Biagioni, percebeu que aquela criança era demasiadamente afinada e sua voz se destacava das outras crianças. Então a pedidos, Cecília era levada todas as noites para cantar na Coroação de Maria nos meses de maio. Aos sete anos começou a cantar no Coro Regina Coeli regido pelo maestro José Alexandre Ramos. Nesse tempo as missas ainda eram celebradas em latim. Com o pai ela aprendeu o Canto da Verônica.
Perto de completar oito anos, a ainda criança Cecília Machado subiu ao púlpito e divinamente fez sua primeira apresentação com Verônica na igreja de Nossa Senhora da Conceição. A apresentação causou tamanha emoção que, ainda que de forma subjetiva, decidiu-se que a partir daquela apresentação seria ela, a Verônica de todos os próximos anos na Matriz. Desde então Cecília não parou de cantar. Na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, um dos grandes admiradores do talento de Cecília foi o Monsenhor Moreira, sacerdote com quem ela manteve uma grande amizade de longos anos. Era chamada para todas as festividades na Matriz. Durante muitos anos também cantou no Coral São Sebastião, da Paróquia homônima, onde também se apresentava como Verônica. O maestro Cândido Lana compôs, especialmente, para ela cantar na Semana Santa a Quinta Palavra.
Cecília Machado iniciou os estudos no Colégio Nossa Senhora de Nazaré e concluiu O Normal na Escola Napoleão Reis. Estudou no Conservatório Estadual de Música Padre José Maria Xavier, em São João Del-Rei. Posteriormente formou-se em Letras na FAFIC (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras – LAVRAS ). Sua vida profissional como Professora se iniciou no ano de 1973, nas comunidades de Santa Quitéria e Lobo Leite em Congonhas, em seguida transferiu-se para a sede daquele Município. Tempos depois conseguiu transferência para Lafaiete. Trabalhou nos Grupos Escolares Geraldo Bittencourt e Castello Branco e também nas Escolas Narciso de Queirós e Monsenhor Horta.
Mesmo com toda responsabilidade em lecionar, Cecília sempre se esforçou para não deixar de cantar quando era preciso e fosse solicitada. O esposo de dela, senhor José do Nascimento (Deco), antigo operário da Central do Brasil era responsável para cuidar dos filhos para que ela fosse cantar nas solenidades na Matriz. Caso não fosse, Monsenhor Moreira e os Padres Antônio e Hermano se dirigiam até a casa do casal para solicitar que ela estive presente às celebrações. Assim ela ia com autorização do marido, visto o grande respeito que mantinham os casais da época.
Qual aquele(a) que nunca se emocionou ao ouvir o desgostoso Canto da Verônica nas Sexta-feira Santas, na voz de dona Cecília Machado? Se alguém perguntasse, ela própria responderia: Attendite et videte si est dolor sicut dolor meus (Vinde e vede se existe dor tão grande quanto a minha dor). Por mais de 80 anos e diante de milhares de pessoas reunidas nos locais onde aconteciam as celebrações, dona Cecília cantou o tradicional Canto da Verônica. Todo esse tempo ela emprestou-nos sua voz e tornou as celebrações na Matriz de Nossa Senhora da Conceição ainda mais contritas e comoventes. Por mais de três quartos de séculos, dona Cecília soube, de maneira impar, colocar em seu canto todas as nossas mais profundas emoções religiosas e devocionais durante a Semana Santa aqui em Conselheiro Lafaiete.
Dona Cecília Machado cantou por muitos anos no Setenário das Dores, Benção dos Ramos, Lava-pés, Sete Palavras, Adoração da Cruz, Vigília Pascoal, Domingo da Ressurreição e muitas outras cerimônias religiosas em várias igrejas da cidade. O Padre Luiz Gonzaga, de Catas Altas da Noruega, vinha para Lafaiete contribuir com a Semana Santa e, com ela, cantava o Oficio de Trevas.
Cantou também ao lado de João Salgado. Foi muito admirada também pelos músicos/maestros Gilmar José Batista e Allex de Assis Milagre e pelo Monsenhor Antônio. Hoje um de seus grandes admiradores é o Padre Osni dos Santos. Um dos momentos mais marcantes na vida de Cecília Machado enquanto cantora na Matriz de Nossa Senhora da Conceição, foi quando o Monsenhor Moreira, enfermo, acamado e recuperando-se de uma cirurgia cardíaca conseguiu ouvi-la cantar no adro da igreja. Então abriram a porta do quarto para que ele pudesse ouvir com mais facilidade. Era Sexta-feira da Paixão.
Outro marcante na vida dela foi cantar, à convite de Gilmar Batista, na missa no Santuário do Sagrado Coração de Jesus, quando aquele templo foi elevado à Basílica. Na ocasião foi acompanhada ao órgão por Allex Milagre, dia em que Padre Rocha se encantou pela voz dela. Dona Cecília também cantou nas ordenações dos padres Dom Raimundo, Marco Túlio, José Luiz e também em Brasília na ordenação do padre Evandro, sobrinho do Dom Raimundo. Com início das encenações bíblicas na Matriz de Nossa Senhora da Conceição ela passou a fazer parte da figuração bíblica também.
Se no mais sublime dos gestos, Verônica secou com seu véu o suor e o sangue do rosto do Salvador, o cantar de dona Cecília Machado na mais profunda das emoções trouxe, do nosso interior, as mais sentidas emoções durante as Semanas Santas de Conselheiro Lafaiete.
PARABÉNS, DONA CECÍLIA MACHADO!