Pandemia teve o efeito simultâneo de reduzir os casamentos, baixar a taxa de natalidade e aumentar o número de mortes
O mês de março foi o mais letal da pandemia, mas deve ser facilmente superado pelo enorme volume de vidas perdidas para a covid-19 em abril. Porém, o indicador mais dramático da tragédia brasileira da covid-19 é que o número total de óbitos pode ultrapassar o número de nascimentos, pela primeira vez na história, como indicam os dados do Portal da Transparência do Registro Civil para os primeiros 10 dias de abril. Os dados ainda são preliminares, mas esse fato é absolutamente inédito e reflete a gravidade da emergência sanitária atual, pois foram até agora 32.177 nascimentos e 31.506 óbitos, praticamente um empate, conforme aponta o gráfico abaixo do Portal da Transparência do Registro Civil, administrado pela ARPEN Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais). Nesse período, na região Sudeste, foram registradas quase duas mil mortes a mais do que o número de nascimentos.
Encontro das curvas de nascimentos e óbitos estava previsto para 2047
Nos primeiros 300 anos do Brasil, após a chegada dos portugueses, a população não nativa cresceu em ritmo lento. E a população indígena sofreu um grande genocídio devido à dominação europeia e em decorrência das epidemias exógenas que se espalharam pelo território de “Pindorama”. Mas a partir da chegada da Corte Portuguesa a população brasileira deu um salto fenomenal. O Brasil tinha 3,5 milhões de habitantes em 1808. Chegou a 213 milhões em 2021 (um aumento de 61 vezes em 213 anos).
O incremento anual foi crescente e ininterrupto entre 1808 e 1980. Mas, a partir das duas últimas décadas do século XX, os acréscimos anuais, embora sempre positivos, entraram em fase de desaceleração. Ou seja, com a transição demográfica as taxas de natalidade começaram a cair. E, com o envelhecimento populacional, o número absoluto de óbitos iniciou uma trajetória ascendente. Mas o encontro das duas curvas estava previsto para 2047, segundo as últimas projeções do IBGE, apresentadas no gráfico abaixo.
Em 1980, o número anual de nascimentos no Brasil era de 4 milhões de bebês. Este número caiu para cerca de 3 milhões em 2010. Em 2016, principalmente em decorrência da epidemia da Zika, o número de nascimentos caiu para 2,9 milhões. Mas subiu novamente, em 2017, para o patamar estimado da projeção populacional, em torno de 3 milhões. A estimativa é que o número de nascimentos chegue a 2,35 milhões em 2047. O número de mortes estava na casa de 1 milhão de óbitos em 1980. Subiu para algo em torno de 1,25 milhão de óbitos em 2010. As projeções do IBGE indicavam 1,7 milhão de óbitos em 2030 e 2,36 milhões de óbitos em 2047 (quando os óbitos passariam, definitivamente, o número de nascimentos).
Mas o que ocorreu na prática foi que a covid-19 não só aumentou o número de óbitos no país, como também diminuiu o número de casamentos e o número de nascimentos. Em março de 2020, quando as primeiras medidas de isolamento social e de quarentena foram decretadas, surgiram analistas dizendo que haveria um baby boom no país, pois os casais ficariam trancados dentro de casa. Sem ter outra coisa para fazer, aumentariam a frequência das relações sexuais e, inconsequentemente, haveria uma “explosão” de nascimentos no país. Contudo, este tipo de visão desconsidera que a população dos países avançados na transição demográfica sabe separar sexo de reprodução. E, em geral, usam métodos contraceptivos. No dia 16/03/2020 dei uma entrevista ao jornal Valor, que saiu com um título que já apontava para uma perspectiva diferente: “Demógrafo descarta ‘baby boom’ provocado pelo coronavírus”. Um ano depois, não resta dúvida de que houve redução da natalidade. Desse modo, a covid-19 teve o efeito simultâneo de reduzir os nascimentos e os casamentos e aumentar os óbitos.
O impacto da covid-19 nos eventos demográficos no Brasil: mais óbitos, menos nascimentos
A transição demográfica é um fenômeno de longo prazo e as taxas de natalidade e mortalidade não costumam mudar repentinamente no curto prazo. Porém, eventos excepcionais podem afetar momentaneamente os componentes da dinâmica demográfica, embora as curvas possuam uma resiliência em suas tendências seculares, como mostrei nos artigos: “Apesar do coronavírus as tendências do envelhecimento populacional vão continuar” (01/05/2020) e “O impacto da pandemia da covid-19 na dinâmica demográfica brasileira” (12/03/2021).
O gráfico abaixo, com dados do Portal da Transparência do Registro Civil, mostra que o número de nascimentos estava em torno de 2,8 milhões e o número de casamentos em torno de 960 mil em 2018 e 2019. Mas com a pandemia o número de nascimentos caiu para 2,6 milhões e a quantidade de casamentos diminuiu para 709 mil. Ao mesmo tempo, o número de óbitos subiu de 1,2 milhão em 2018, para 1,3 milhão em 2019 e 1,45 milhão em 2020. O crescimento vegetativo (nascimentos – óbitos) foi de 1,6 milhão em 2018, de 1,5 milhão em 2019 e de 1,2 milhão em 2020. Portanto, a pandemia acelerou a transição demográfica brasileira. Mas acelerou da pior maneira possível, pois aumentou as mortes e fez muitas pessoas adiarem o casamento e postergarem suas decisões reprodutivas em função dos constrangimentos pandêmicos.
Número de nascimentos, casamentos e óbitos no Brasil: 2018-2020
Fonte
ARPEN, Portal da Transparência do Registro Civil (visitado 10/04/2021)
A covid-19 teve impacto não somente na área da saúde, mas também na área econômica e social, com aumento da pobreza, da insegurança alimentar e do desemprego. Desta forma, com o isolamento social e as dificuldades de sobrevivência muitas pessoas adiaram o casamento. Ao mesmo tempo, o número de divórcios consensuais realizados pelos cartórios de notas aumentou em todo o país durante as quarentenas.
Por conseguinte, o número de nascimentos diminuiu. Não só em função da redução do número de casamentos e do aumento das separações, mas porque muitas mulheres e casais perceberam que há enorme risco em levar à frente uma gravidez e um parto no meio de uma pandemia e com o sistema de saúde sobrecarregado ou em colapso. O resultado das decisões das pessoas que optaram por adiar a gravidez de junho a agosto de 2020 (auge da primeira onda da covid-19) aparece nas estatísticas agora nos meses de março e abril de 2021, que também são os dois meses mais letais de toda a pandemia.
Fato inédito: Rio Grande do Sul tem redução da população em março de 2021
A tabela abaixo mostra o impacto da covid-19 no número de nascimentos e de óbitos no Brasil e Unidades da Federação (UFs) para o mês de março de 2021. Nota-se que, para o Brasil como um todo, o número de nascimentos ficou acima do número de óbitos em 47.049. Houve crescimento vegetativo em todas as UFs, com exceção do Rio Grande do Sul (RS) que neste período de covid-19 teve 11.951 nascimentos e 15.789 óbitos, havendo assim decrescimento vegetativo de 3.838 pessoas. Ou seja, mesmo que de forma temporária, o RS teve uma redução da população no mês de março de 2021. Este fato é inédito na história rio-grandense.
Com o impacto da covid-19, os óbitos superaram os nascimentos no Rio Grande do Sul em março. Mas este acontecimento histórico deve se generalizar para a maior parte do Brasil no mês de abril. A tabela abaixo, também com dados do Portal da Transparência do Registro Civil, para os primeiros 10 dias de abril, mostra que as regiões Sul e Sudeste apresentam decrescimento vegetativo. A região Centro-Oeste apresenta empate entre nascimentos e óbitos neste período de covid-19. As regiões Norte e Nordeste apresentam crescimento vegetativo.
Ou seja, aqueles estados e aquelas regiões que possuem uma estrutura etária mais envelhecida apresentaram o número de óbitos acima do número de nascimentos em abril. Aqueles e aquelas com uma estrutura etária mais rejuvenescida apresentaram a quantidade de nascimentos acima da cifra de óbitos neste período de covid-19. Desse modo, a maioria das cidades das regiões Sul e Sudeste apresentaram redução da população nos primeiros 10 dias de abril de 2021.
A queda da esperança de vida no Brasil
A alta longevidade é uma conquista recente e excepcional da humanidade, pois a esperança de vida ao nascer sempre foi baixa na maior parte da história do Homo sapiens. Durante cerca de 200 mil anos a média de vida das pessoas estava abaixo de 30 anos. Todavia, com os avanços no padrão alimentar, as melhorias no saneamento e na higiene e com os avanços da medicina a esperança de vida começou a subir no século XIX. Chegou a 32 anos no mundo em 1900. Sem embargo, o grande salto ocorreu nos anos 1900, quando a vida média dos habitantes do Planeta mais que dobrou em um século, chegando a 66,3 anos no ano 2000. Isto nunca tinha ocorrido no passado. Os ganhos continuaram até 2019, quando a esperança de vida ao nascer do mundo chegou a 72,6 anos (Our World in Data).
No Brasil, a esperança de vida ao nascer era de 29 anos em 1900. Passou para 70,1 anos em 2000 e alcançou 75,9 anos em 2019. Portanto, a longevidade mais do que dobrou no século passado e, no século XXI, o Brasil continuou ganhando 0,3 ano a cada 12 meses. O aumento da esperança de vida é fundamental para o desenvolvimento humano dos indivíduos, das famílias e da nação. Pois o aumento do capital humano é tanto mais elevado quanto maior for a longevidade. Contudo, a pandemia da covid-19 deixou 194.949 vítimas fatais em 2020 (segundo o Ministério da Saúde) e provocou uma redução da esperança de vida do Brasil, constituindo um retrocesso sem precedente nos 200 anos da Independência do país.
O artigo “Reduction in the 2020 Life Expectancy in Brazil after COVID-19”, publicado no site Medrxiv (09/04/2021), e elaborado por pesquisadores de renome internacional, encabeçado pela demógrafa Marcia Castro (da Universidade de Havard), estima que houve uma redução média de 1,94 ano na expectativa de vida ao nascer da população brasileira, voltando aos níveis de 2013. Considerando a expectativa de vida aos 65 anos, a queda foi de 1,58 ano, fazendo a sobrevida da população idosa voltar ao nível de 2009. A queda da esperança de vida ao nascer foi maior entre os homens e os habitantes da região Norte.
No Brasil, a esperança de vida ao nascer era de 29 anos em 1900. Passou para 70,1 anos em 2000 e alcançou 75,9 anos em 2019. Portanto, a longevidade mais do que dobrou no século passado e, no século XXI, o Brasil continuou ganhando 0,3 ano a cada 12 meses. Contudo, a pandemia da covid-19 deixou 194.949 vítimas fatais em 2020 (segundo o Ministério da Saúde) e provocou uma redução da esperança de vida do Brasil, constituindo um retrocesso sem precedente nos 200 anos da Independência do país.
Cinco motivos que vão atrasar a recuperação do tempo médio de vida no país
Choques exógenos podem derrubar a esperança de vida. Mas, em geral, ela se recupera rapidamente. Como ocorreu no Japão, quando Fukushima foi atingida por terremoto, tsunami e acidente nuclear, ao mesmo tempo, em 2011. Porém, no caso brasileiro, os autores consideram que a atual queda no tempo médio de vida não deve se recuperar de imediato, por cinco motivos.
Primeiro, o Brasil continua batendo recordes de vidas perdidas em 2021. Apenas os 4 primeiros meses de 2021 devem repetir o número de mortes da covid-19 de 2020. O país se tornou um berçário de novas cepas do novo coronavírus.
Em segundo lugar, a sobrecarga do sistema de saúde e o colapso hospitalar prejudicam o atendimento dos serviços de atenção primária no Brasil.
Terceiro, aumenta a morbidade em decorrência da covid-19. Há evidências de que as sequelas da pandemia podem encurtar a vida de parte dos milhões de brasileiros que foram infectados pelo SARS-CoV-2.
Quarto, o Brasil já vinha sofrendo com a recessão econômica que começou em 2014. Mas o declínio da economia em 2020 e todo o impacto da pandemia veio agravar a situação de pobreza, insegurança alimentar e desemprego. O que deve ter impacto na sobrevivência da população mais pobre do país.
Quinto, as reduções no orçamento da saúde e as mudanças no modelo de financiamento tendem a reduzir o acesso e a cobertura da atenção primária e aumentar a mortalidade infantil e outras mortes evitáveis.
Em síntese, a queda inédita da esperança de vida que ocorreu em 2020 pode se repetir com maior intensidade em 2021. Especialmente porque não há um planejamento por parte do Governo Federal para aliviar o Brasil desta situação catastrófica.
Brasil passa a ter o maior coeficiente de mortalidade da América Latina
Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil chegou a 13.445.006 pessoas infectadas e a 351.334 vidas perdidas no dia 10 de abril, com uma taxa de letalidade de 2,6%. As médias móveis de 7 dias se mantiveram em altíssimo patamar e ficaram em 70,2 mil casos e 3.020 óbitos. Tudo indica que o mês de abril pode bater todos os recordes de mortalidade da pandemia, chegando a 90 mil óbitos em apenas 30 dias.
O Brasil tem apresentado números diários de mortes em patamar tão elevado que o país ultrapassou o coeficiente acumulado de mortalidade do México e do Peru, assumindo a triste liderança do ranking geral de óbitos da América Latina. O posto do topo do ranking pertenceu ao Peru durante a maior parte do período pandêmico. O México assumiu a liderança durante um período curto. E agora o Brasil tem o maior coeficiente de mortalidade da América Latina, com 1.672 óbitos por milhão de habitantes. O Uruguai possui o menor coeficiente entre os 12 países mais impactados pela pandemia. Mas o nosso vizinho do sul tem passado por momentos de extrema dificuldade, batendo todos os recordes diários de mortalidade.
No continente americano, o Brasil, atualmente, está atrás apenas dos Estados Unidos. Mas como possui taxas diárias de mortalidade muito acima das taxas americana, dentro de aproximadamente 10 dias o Brasil assumirá o topo do ranking do coeficiente de mortalidade das Américas. Estará entre os 11 países mais afetados pela mortandade da covid-19 no mundo. Assim, entre os países com mais de 100 milhões de habitantes, o Brasil é destaque internacional inconteste. Não precisava ser assim, se as autoridades federais não tivessem cometido tantos equívocos.
A CPI da pandemia
Para avaliar as “ações e omissões do governo federal no enfrentamento à pandemia e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas, com a ausência de oxigênio para os pacientes internados”, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) protocolou, no início de fevereiro, um requerimento no Senado para instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia. O documento com a assinatura de 32 senadores, mais que o mínimo exigido, de 27 assinaturas, prevê a composição da CPI por 11 membros titulares e sete suplentes e um limite de despesas de R$ 90 mil, com um prazo inicial de 90 dias, que pode ser prorrogado.
Como a CPI não foi encaminhada pela presidência do Senado, os senadores Alessandro Vieira e Jorge Kajuru (ambos do Cidadania) entraram com um mandado de segurança no STF, argumentando que o requerimento apresentado cumpria todas as exigências para a abertura da CPI, mas que não foi tomada medida para instalação da comissão. Então, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, determinou que o Senado deve providenciar a instalação da CPI da Pandemia.
Assim, o presidente da “Câmara Alta”, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), confirmou que vai instalar na próxima semana a CPI para apurar as ações do governo federal no combate à pandemia de covid-19. Evidentemente, a Comissão vai avaliar as razões para o alto coeficiente de mortalidade no Brasil, o atraso no plano de imunização e os gritantes erros cometidos pelo Ministério da Saúde. Quando o trabalho da CPI for concluído, a comissão enviará um relatório e as conclusões à Mesa do Senado. Em seguida, as conclusões serão remetidas ao Ministério Público para que promova a responsabilização civil e criminal dos infratores.
Quando os trabalhos da CPI forem concluídos o Brasil, provavelmente, já terá algo em torno de 500 mil e 600 mil vidas perdidas para o SARS-CoV-2. As famílias e amigos deste enorme montante de vítimas demandam uma explicação para a tragédia ocorrida no país. A sociedade brasileira quer impedir a continuidade deste sofrimento e requer a criminalização dos responsáveis por este verdadeiro genocídio.
Fonte Projeto Colabora