Diário da Covid-19: Após 2 anos, a pandemia virou endemia?

Série para o #Colabora chega ao fim com as dúvidas dos especialistas se o mundo terá o terceiro ano da emergência sanitária ou haverá redução constante do número de casos e de óbitos

A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o mundo enfrentava uma emergência sanitária e elevou a classificação da “COrona VIrus Disease” (COVID) para o nível de pandemia no dia 11 de março de 2020, embora as primeiras infecções do novo coronavírus tenham sido identificadas no final de 2019. Após 2 anos, o mundo contabilizou, oficialmente, 455 milhões de pessoas infectadas (cerca de 6% da população mundial) e mais de 6 milhões de vidas perdidas (quase uma morte para cada 1 mil habitantes). Certamente, o número real é bem maior do que o oficial, embora seja difícil avaliar toda a subenumeração dos registros.

Mas cabe a pergunta: vamos iniciar o terceiro ano da emergência sanitária ou haverá redução do número de casos e de óbitos com a pandemia se transformando em endemia?

Não existe consenso entre os epidemiologistas sobre os desdobramentos futuros da doença e nem sobre o momento de definição do fim da pandemia. De fato, havia um arrefecimento da pandemia em outubro de 2021, mas o surgimento da variante Ômicron gerou o maior surto pandêmico em janeiro de 2022. Embora os números tenham diminuído em fevereiro e março, ainda permanecem em patamar elevado e novas variantes podem surgir, especialmente em um cenário de guerra, como acontece atualmente no leste europeu, já que o movimento de tropas e uma emigração em massa podem contribuir para a difusão de novas cepas do vírus.

O gráfico abaixo do site Our World in Data, com dados da Universidade Johns Hopkins, mostra que o número de pessoas infectadas no mundo continua acima de 1,5 milhão de casos diários (200 indivíduos infectados por milhão) e o número de vítimas fatais da covid-19 está na casa de 7 mil óbitos diários (0,8 óbito por milhão). Todo mundo quer o fim da pandemia, mas não será ignorando os números que isto ocorrerá e sim com o reforço das medidas de prevenção.

Sem dúvida, existe uma tendência de queda, especialmente, das mortes globais, mas o quadro internacional da pandemia é heterogêneo. O gráfico abaixo mostra que o número de casos está caindo nas Américas e na África, mas está subindo na Oceania, Europa e Ásia. As curvas de mortalidade estão caindo em todos os continentes. Mas existem países que estão passando por dificuldades. A Coreia do Sul, por exemplo, que conseguiu controlar a pandemia em 2020 e 2021 assiste atualmente a um grande surto de casos e, inclusive, um aumento das mortes, embora o coeficiente de mortalidade do país seja bastante baixo.

Uma doença pode ser endêmica e, ao mesmo tempo, mortal. A malária matou mais de 600.000 pessoas em 2020. Dez milhões de pessoas adoeceram com tuberculose no mesmo ano e 1,5 milhão morreram. Endêmico certamente não significa que a evolução de alguma forma domou um patógeno para que a vida simplesmente retorne ao normal

Aris KatzourakisEpidemiologista

Há uma diferença expressiva entre o número de óbitos registrados da covid-19 e o cálculo do excesso de mortes, que pode ser considerado uma estimativa mais realista do verdadeiro número de vítimas fatais da pandemia. O gráfico abaixo mostra o excesso de mortes no mundo e nos 10 países mais populosos até o dia 06 de março de 2022, segundo metodologia da revista britânica The Economist. Nota-se que o excesso de mortes no mundo foi estimado em 19,9 milhões de óbitos (contra 6,04 milhões registrados). Na Índia, o excesso de mortes ficou em 5,64 milhões (contra 516 mil registradas). Na Rússia 1,19 milhão de mortes (contra 352 mil registradas). Nos Estados Unidos 1,17 milhão de mortes (contra 967 mil registradas). No Paquistão 843 mil mortes (contra 31 mil registradas). Na Indonésia 826 mil mortes (contra 152 mil registradas). No Brasil 778 mil mortes (contra 656 mil registradas). No México 711 mil mortes (contra 321 mil registradas). Em Bangladesh 534 mil mortes (contra 29 mil registradas). Na China 284 mil mortes (contra 4,6 mil registradas) e na Nigéria 220 mil mortes (contra 3 mil registradas).

O fato é que a expectativa de vida ao nascer do mundo e da maioria dos países apresentou uma queda nos anos de 2020 e 2021. Porém, ainda não existem cálculos comparativos e sistemáticos para se avaliar o tamanho da queda. Mas essa lacuna será superada até junho de 2022, quando a Divisão de População da ONU divulgar as novas projeções populacionais apresentando os indicadores de mortalidade, natalidade e migração para o mundo, regiões e todos os países da comunidade internacional.


De qualquer forma, mesmo considerando apenas os dados oficiais do número de vidas perdidas para a covid-19, alguns países possuem um coeficiente de mortalidade (óbitos por milhão de habitantes) extremamente alto. O gráfico abaixo mostra o Peru com o maior coeficiente, com 6,3 mil óbitos por milhão, seguido da Bulgária com 5,2 mil óbitos por milhão. Bósnia e Herzegovina, Hungria, Macedônia do Norte e Geórgia possuem coeficientes entre 4 e 5 mil óbitos por milhão. O Brasil está em 13º lugar com um coeficiente de 3,1 mil óbitos por milhão. A média mundial no dia 11 de março de 2022 é de 766,5 óbitos por milhão. Abaixo do coeficiente global aparecem, dentre outros países, Vietnã, Índia, Coreia do Sul, Nova Zelândia e China.

Todos os dados apresentado acima mostram que o impacto da covid-19 tem sido muito grande no mundo, sendo que os países do leste europeu, de clima frio e estrutura etária muito envelhecida, apresentam os maiores coeficientes de mortalidade (além do Peru que lidera o ranking global). Mas também existem países, como a Nova Zelândia, que apresentam coeficientes de mortalidade muito baixos.

Todavia, tudo indica que o pior da pandemia já passou, pois a curva de mortalidade está em declínio na grande maioria dos países do mundo. Há quem diga que é o fim da pandemia. Diversos países já relaxaram as medidas de distanciamento social. No Rio de Janeiro, o secretário de Saúde, Daniel Soranz, disse que “a pandemia virou uma endemia”. Segundo ele, em um cenário de maior normalidade, a covid-19 deixou de ser vista como uma emergência de saúde e muitas das restrições foram revogadas, como o uso de máscaras, a proibição de aglomerações e a exigência do passaporte vacinal.

Mas como mostramos no “Diário da Covid-19: O mundo já tem mais infectados em 2022 do que em todo 2020”, aqui no # Colabora (30/01/22), a transformação da pandemia em endemia não significa que se deve abandonar as medidas de prevenção conhecidas e a universalização das vacinas. Como escreveu o epidemiologista Aris Katzourakis, no artigo “COVID-19: endemic doesn’t mean harmless”, publicado na revista acadêmica, Nature (24/01/2022): “Uma doença pode ser endêmica e, ao mesmo tempo, mortal. A malária matou mais de 600.000 pessoas em 2020. Dez milhões de pessoas adoeceram com tuberculose no mesmo ano e 1,5 milhão morreram. Endêmico certamente não significa que a evolução de alguma forma domou um patógeno para que a vida simplesmente retorne ao normal”.

Portanto, podemos comemorar a redução do número de casos e óbitos da covid, mas não parece estar na hora de ignorar totalmente a presença do SARS-CoV-2. No dia 12 de março de 2022, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) registrou 29,4 milhões de casos e 654,9 mil óbitos da covid-19 no Brasil. A média móvel de 7 dias ficou em 45,3 mil casos diários e 431 óbitos diários. Na virada do ano estes números eram cerca de 5 vezes menores. Portanto, todo cuidado é pouco e, mesmo que a pandemia seja reclassificada para endemia, os cuidados individuais e com a saúde pública precisam continuar fazendo parte do dia a dia das pessoas e das autoridades governamentais.

O fim do Diário da Covid-19

Assim como a pandemia, o Diário da Covid-19 está completando 2 anos. O primeiro texto publicado aqui no # Colabora foi escrito no final de março de 2020 e fazia uma projeção que o Brasil atingiria, no fim do primeiro semestre (30/06/2020), um total acumulado de no máximo 380 mil pessoas infectadas e 19 mil óbitos do novo coronavírus. A projeção foi considerada irrealista e muito pessimista. As críticas dos negacionistas foram fortes. Contudo, os dados oficiais do Ministério da Saúde, divulgados no dia 30/06, indicaram 1,4 milhão de casos e 59,8 mil óbitos. Ou seja, a realidade foi muito pior do que as hipóteses da projeção.

Mas escrever sobre uma pandemia não é um exercício de tiro ao alvo. O objetivo das projeções não é acertar na mosca, mas sim fornecer parâmetros para a atuação das pessoas e das políticas públicas, visando proteger os indivíduos e salvar vidas. Como a pandemia da covid-19 era um evento novo e, no máximo, podia ser comparado com a pandemia da Influenza de 100 anos atrás, os desafios eram enormes. Existem modelos estatísticos que podem ser aplicados para fazer previsões. Mas a pandemia, embora sendo um evento global, acontecia de forma heterogênea nos vários países e continentes e se desenrolava com certa defasagem temporal nas diversas regiões. Portanto, era preciso conhecer os diferentes padrões nacionais e conhecer as realidades intranacionais.

Para dar conta desta tarefa percebemos que seria necessário análises diárias para acompanhar a abrangência e a rapidez da pandemia. Desta forma, do início de abril até 15 de julho, durante 100 dias o # Colabora disponibilizou todas as manhãs informações gerais e material quantitativo e qualitativo sobre a propagação do novo coronavírus, trazendo os fatos nacionais e internacionais mais relevantes para a compreensão da emergência sanitária. Neste esforço, nos associamos à Associação Latino Americana de População (ALAP) para conhecer a situação regional e entrevistamos demógrafos, com amplo conhecimento de epidemiologia, de todos os países da América do Sul e também da Costa Rica e do México. Adicionalmente também entrevistamos duas moradoras de dois países que tiveram grande sucesso no controle da pandemia no Vietnã e na Nova Zelândia.

Os 100 dias ininterruptos de descrição, reflexão e acompanhamento do avanço da pandemia no Brasil e no mundo envolveram muito trabalho, mas também muito aprendizado e a certeza que, dentro do nosso campo de atuação, fizemos o melhor possível para informar, dialogar e debater soluções para reduzir os casos, os óbitos e o sofrimento das pessoas. Durante algumas semanas, foi um prazer compartilhar a elaboração do Diário com companheiros tão ilustres e gabaritados como Agostinho Vieira, Oscar Valporto e Aydano Motta que ampliaram a análise da complexa situação global e local e apresentaram novos olhares e novos saberes que enriqueceram a abordagem sobre a crise sanitária.

A partir do dia 19 de julho de 2020, após o número 100, o Diário da Covid-19, manteve o nome mas se tornou semanário, com novos textos sendo disponibilizados todos os domingos. No total, foram publicados 185 artigos em dois anos de pandemia. Neste momento, o Diário chega ao fim. Mas enquanto o coronavírus estiver presente, o tema da pandemia continuará na pauta do # Colabora, mesmo a covid-19 sendo classificada como epidemia ou endemia.

O ciclo do Diário se fecha, mas uma nova coluna será criada para tratar de questões demográficas, econômicas e do meio ambiente. Afinal, o mundo está cada vez mais complexo e desigual e precisamos estar sempre usando as bússolas para ajustar a navegação real e virtual. Afinal, “navegar é preciso, viver não é preciso”.

FONTE PROJETO COLABORA

O que muda na prática se covid virar endemia?

Ao longo das últimas semanas, países como Reino Unido, França, Espanha e Dinamarca decidiram que a covid-19 não será mais encarada com uma pandemia e começará a ser tratada como uma endemia em seus territórios.

Com isso, a doença provocada pelo coronavírus deixará de ser vista como uma emergência de saúde e muitas das restrições — uso de máscaras, proibição de aglomerações e exigência do passaporte vacinal — cairão por terra.

Embora anúncios do tipo fossem esperados, eles causaram muita confusão: em alguns casos, a endemia foi interpretada como o fim da covid — quando, na verdade, estamos muito longe disso (e é bem possível que essa doença nunca desapareça).

Mas, afinal, o que uma endemia significa na prática? Os países europeus acertaram na decisão? E será que o Brasil também vai chegar nessa mesma etapa logo mais?

Uma palavra, múltiplas interpretações

Para começo de conversa, vale esclarecer que uma endemia não é necessariamente uma boa notícia.

Embora anúncios do tipo fossem esperados, eles causaram muita confusão: em alguns casos, a endemia foi interpretada como o fim da covid — quando, na verdade, estamos muito longe disso (e é bem possível que essa doença nunca desapareça).

Mas, afinal, o que uma endemia significa na prática? Os países europeus acertaram na decisão? E será que o Brasil também vai chegar nessa mesma etapa logo mais?

Ela apenas significa que há uma quantidade esperada de casos e mortes relacionadas a uma determinada doença, de acordo com um local e uma época do ano específicas. E esses números nem aumentam, nem diminuem.

A infecção pelo herpes simples, que provoca feridas na boca e na região genital, é uma endemia. Estima-se que pelo menos dois terços da população mundial com mais de 50 anos já tiveram contato com esse vírus. Apesar de incômodo, esse quadro não está relacionado a grandes complicações ou risco de óbito.

Por outro lado, outras doenças bem mais sérias e mortais, como tuberculose, aids e malária, também são endêmicas. Só na malária, estima-se que cerca de 240 milhões de casos e 640 mil mortes aconteçam todos os anos, segundo as estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS).

A questão, portanto, tem a ver com a estabilidade nas estatísticas relacionadas com aquela enfermidade. Quando esses números fogem do controle, a situação evolui para uma epidemia (se o problema for localizado numa região) ou para uma pandemia (caso a crise se alastre por vários continentes).

Mosquito Anopheles
Legenda da foto,Os mosquitos Anopheles são os transmissores do protozoário causador da malária, doença considerada endêmica em partes da África e das Américas

Num evento do Fórum Econômico Mundial realizado no final de janeiro, representantes de várias instituições discutiram todos esses conceitos e debateram quando a covid-19 poderia ser realmente classificada como uma endemia.

Na visão do imunologista Anthony Fauci, líder da resposta à pandemia dos Estados Unidos, endemia significa “uma presença não disruptiva sem a possibilidade de eliminação [de uma doença]”.

De acordo com a avaliação do especialista, o coronavírus não será extinto e passará, aos poucos, a afetar os seres humanos de forma similar a outros agentes causadores do resfriado comum.

Na mesma ocasião, o médico Mike Ryan, diretor executivo do Programa de Emergências em Saúde da OMS, também bateu nessa tecla. “Nós provavelmente nunca vamos eliminar esse vírus. Depois da pandemia, ele se tornará parte de nosso ecossistema. Mas é possível acabar com a emergência de saúde pública.”

Ele também reforçou que endemia não é sinônimo de coisa boa. “Ela só significa que a doença ficará entre nós para sempre. O que precisamos é diminuir a incidência, aumentando o número de pessoas vacinadas, para que ninguém mais precise morrer [de covid]”, completou.

Retrato de Anthony Fauci
Legenda da foto,Para Anthony Fauci, a covid caminha para se tornar uma endemia e nunca deixará de existir

A hora e a vez da covid?

De um lado, os cientistas se mostram reticentes em já encarar a covid-19 como uma endemia, pela falta de parâmetros e de uma estabilidade nas notificações por um período mais prolongado.

“Isso ainda não foi bem estabelecido. Quais são os números de casos, hospitalizações e mortes pela doença aceitáveis, ou esperados, todos os anos?”, questiona a epidemiologista Ethel Maciel, professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo.

Por outro, é inegável que o avanço da vacinação e os recordes de novas infecções impulsionadas pela ômicron nos últimos dois meses garantiram um alto nível de proteção, especialmente contra as formas mais graves da doença.

Até o momento, 53% da população mundial já recebeu ao menos duas doses da vacina. E as projeções publicadas no periódicoThe Lancet pelo Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos EUA, indicam que, dado o alto grau de transmissibilidade da nova variante, metade das pessoas do planeta terão sido infectadas entre novembro de 2021 e março de 2022.

“É muita gente com imunidade”, avalia o infectologista Julio Croda, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).

Esse aprimoramento das defesas do organismo garante uma proteção contra as complicações da covid, relacionadas à hospitalização e morte, ao menos por alguns meses.

“Graças à imunidade obtida pela vacinação e, em menor grau, pelo alto número de infecções, a doença se tornou menos letal”, diz Croda, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.

A covid chegou a ter uma taxa de letalidade de 1 a 2%. Atualmente, esse número está em 0,25%, segundo alguns registros nacionais e internacionais.

Croda explica que essa taxa de 0,25% ainda é o dobro do que ocorre na gripe (que fica em 0,1%). Mesmo assim, houve uma diminuição de praticamente dez vezes na mortalidade por covid que era observada há poucos meses.

E isso, mais uma vez, tem a ver com a imunidade adquirida ao longo desse tempo.

Os vírus e nosso sistema de defesa fazem um verdadeiro cabo de guerra. Quando surge uma doença infecciosa nova, a corda pende com mais frequência para o patógeno, já que nossas células imunes não fazem a menor ideia de como combater a ameaça.

Com o passar do tempo — e a disponibilidade de vacinas seguras e efetivas — o jogo começa a virar, e o sistema imunológico “aprende” a lidar com o inimigo. Nessa situação, mesmo que o agente infeccioso consiga invadir o organismo, suas consequências tendem a ser menos preocupantes.

Ilustração do coronavírus
Legenda da foto,Imunidade obtida contra o coronavírus por infecções anteriores e pela vacinação garante uma covid menos grave na maioria dos casos

É justamente isso que parece estar acontecendo com a covid: dois anos e poucos meses depois dos primeiros casos, o número de indivíduos com algum nível de proteção é suficientemente alto para que não ocorra mais um aumento na demanda por leitos no mesmo patamar das outras ondas, em que o sistema de saúde chegou a entrar em colapso.

Resumindo, pelo observado até agora, a covid ainda não pode ser comparada com a gripe e está longe de ser um resfriado comum, mas parece caminhar para chegar mais próximo disso algum dia no futuro.

O que muda na prática?

Os países europeus que já classificam a covid-19 como uma endemia em seus territórios acabaram (ou acabarão em breve) com a maioria das restrições que marcaram os últimos 24 meses.

De forma geral, não haverá mais necessidade de uso de máscaras em locais fechados, não será preciso mostrar o comprovante de vacinação e as aglomerações estarão completamente liberadas.

Num discurso recente no Parlamento do Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson disse que, “conforme a covid se tornar endêmica, nós precisaremos substituir as requisições da lei pela orientação, de modo que as pessoas infectadas com o vírus sejam cuidadosas umas com as outras”.

Boris Johnson
Legenda da foto,No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson defende que as restrições legais para conter a covid sejam substituídas por conselhos e orientações

Maciel entende que alguns cuidados devem permanecer mesmo assim, ainda que a situação fique menos grave.

“O vírus vai continuar circulando. Mesmo que as medidas não sejam mais obrigatórias, é importante que todos tomem alguns cuidados quando necessário”, orienta.

A epidemiologista avalia que é preciso empoderar e ensinar as pessoas, para que elas avaliem o risco de cada situação e tomem as medidas para proteger a si e a todos ao redor.

Um sujeito com sintomas de gripe ou covid, por exemplo, deve trabalhar de casa, se possível, para não colocar em risco os demais colegas. E, caso tenha que sair, ele pode usar máscara para, assim, evitar a transmissão do vírus para os contatos próximos.

“É a mesma coisa que acontece com a infecção pelo HIV. Ter uma relação sexual sem preservativo te coloca numa situação de risco, mesmo que essa doença seja considerada hoje uma endemia”, compara.

Que fique claro: o alívio nas políticas restritivas não significa que elas foram inúteis ou não deveriam ter sido adotadas no passado. É consenso entre os especialistas que todas essas medidas salvaram muitas vidas num momento em que não existiam outros meios para barrar a infecção e suas complicações.

Hoje em dia, possuímos ferramentas testadas e aprovadas — vacinas e remédios — para lidar com a covid e torná-la menos ameaçadora para a grande maioria da população.

E, claro, caso surja uma nova variante agressiva e com capacidade de escapar da imunidade, será preciso instaurar novamente muitos desses cuidados preventivos que começam a ser abandonados em certas partes do mundo.

Além das questões relacionadas à prevenção, outra mudança significativa da endemia envolve a vigilância: a forma como os casos são detectados e notificados é bem diferente.

Durante os últimos dois anos, muitos países fizeram uma busca ativa de infectados, mesmo aqueles que nem apresentavam sintomas típicos da covid. Foram montadas tendas de testagem em diversos locais e kits de diagnóstico eram distribuídos gratuitamente (ou vendidos por um preço baixo) para os cidadãos — no Brasil, foram poucas as cidades ou os Estados que lançaram uma política nesses moldes.

Aqueles indivíduos que testavam positivo eram então monitorados e orientados a ficar em quarentena. Na sequência, as pessoas com quem eles tiveram contato próximo nos dias anteriores eram comunicadas a também buscar os exames.

Durante uma pandemia ou uma epidemia, essa estratégia permite cortar as cadeias de transmissão do vírus na comunidade e evita que a situação cresça e gere uma bola de neve, que desemboca em um aumento massivo de hospitalizações e mortes.

Com a endemia, todo esse amplo programa de testagem, isolamento e rastreamento de contatos deixa de fazer sentido.

“Passa-se então para um modelo de vigilância sentinela, em que não é necessário testar todo mundo que apresenta sintomas de infecção respiratória”, explica Croda.

“Um sistema que concentre os testes nos hospitais ou nos ambulatórios de atenção primária é custo-efetivo e ajuda a identificar padrões no número de casos.”

Testagem de covid-19 no Rio de Janeiro
Legenda da foto,Durante a endemia, nem todos os casos suspeitos precisam necessariamente de testes

“Se a vigilância notar um novo crescimento em determinada região, é possível intervir cedo, antecipando campanhas de vacinação ou disponibilizando mais testes para aquele local”, completa o especialista.

Ainda nesse contexto endêmico, a ciência ainda não sabe ao certo como será o futuro da vacinação contra a covid. Será que todos deverão tomar uma quarta dose? Ou haverá a necessidade de reforços anuais, a exemplo do que ocorre com a gripe?

“É possível que precisemos de vacinas adaptadas de acordo com o surgimento de novas variantes, para proteger principalmente os grupos mais vulneráveis, como idosos, pacientes imunossuprimidos e crianças”, antevê Croda.

É cedo para decretar uma endemia?

As decisões tomadas por alguns países europeus geraram algumas controvérsias no meio acadêmico.

Num artigo publicado na revista especializada Nature, o pesquisador Aris Katzourakis, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, criticou o que ele considera um “otimismo preguiçoso”.

“Como virologista evolutivo, fico frustrado quando gestores públicos invocam a palavra ‘endemia’ como uma desculpa para fazer pouco, ou não fazer nada. Existem mais coisas que podem ser feitas do que aprender a conviver com rotavírus, hepatite C ou sarampo endêmicos”, escreveu.

Katzourakis também diz que é um erro pensar que a evolução dos vírus sempre os tornam mais “bonzinhos”.

“Lembre-se que as variantes alfa e delta são mais virulentas que a versão original detectada em Wuhan, na China. E a segunda onda da pandemia de gripe espanhola em 1918 foi muito mais mortal que a primeira”, argumenta.

“Pensar que a endemia é leve e inevitável não é apenas errado, mas perigoso: deixa a humanidade à mercê de muitos anos da doença, incluindo ondas imprevisíveis e novos surtos. É mais produtivo considerar o quão ruim as coisas podem ficar se continuarmos a dar ao vírus oportunidades de nos enganar. E daí então podemos fazer mais para garantir que isso não aconteça”, finaliza.

Para Croda, só o tempo dirá se a decisão dos países europeus foi certa ou errada. “Isso depende muito de fatores que não controlamos. Nesse meio tempo, pode surgir uma nova variante extremamente contagiosa, com escape imunológico e maior risco de hospitalização e óbito”, especula.

“É justamente para evitar que isso aconteça que precisamos ofertar vacinas para todos, especialmente para aqueles que ainda não tomaram nenhuma dose. Essa deveria ser a prioridade número um do mundo inteiro”, acrescenta.

CoronaVac sendo aplicada em criança chilena
Legenda da foto,Vacinação é primordial para diminuir o risco de complicação da covid

Maciel concorda. “Quando a transmissão está muito alta, tudo pode acontecer, inclusive o surgimento de novas variantes.”, alerta.

“E o Brasil, além de seguir com a vacinação, precisa ampliar o acesso aos tratamentos contra a covid, como os anticorpos monoclonais e os antivirais, que já são usados em outros países”, complementa.

Onde o Brasil se encaixa nesse debate?

Por ora, ainda é muito cedo para falar de endemia no nosso país, explicam os especialistas. Estamos na crista da onda da ômicron, com recordes no número de casos e um aumento expressivo nas hospitalizações e nas mortes por covid durante os últimos dias.

O Instituto de Métricas em Saúde da Universidade de Washington, nos EUA, projeta que o Brasil deve atingir o pico de óbitos relacionados a essa nova variante no meio de fevereiro. A partir daí, os números devem cair novamente e se estabilizar durante o mês de março.

Portanto, estamos alguns passos atrás do que é observado em outras partes do mundo, onde os números já estão se estabilizando.

Para garantir uma situação mais tranquila por aqui, também é preciso ampliar a cobertura vacinal com a terceira dose. No momento, 23% dos brasileiros tomaram o reforço, número muito aquém do ideal. Vários estudos já mostraram que essa aplicação do imunizante é essencial para proteger contra a ômicron e seus efeitos mais graves no organismo.

Croda entende que, com o passar do tempo, vários países devem seguir os passos dos europeus e começarão a encarar a covid sob uma nova ótica.

“E a América do Sul pode até ter uma vantagem nisso, já que é o continente com a maior cobertura vacinal contra a covid do mundo”, compara.

“Assim que a onda da ômicron passar, podemos ficar numa condição muito melhor para diminuir as restrições”, diz.

Profissional de saúde olha pra paciente em leito
Legenda da foto,Piora nos números de hospitalização e óbitos por covid acende o sinal de alerta no Brasil

Para entender como os gestores públicos enxergam essa discussão e se já há algum planejamento para que o país entre nessa fase de transição, a BBC News Brasil entrou em contato com o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (Conass) e com o Ministério da Saúde.

Por meio de uma nota de esclarecimentos, o Conass declarou que “o avanço da vacinação no Brasil, que hoje já alcança mais de 75% do público-alvo vacinado com as duas doses, é o primeiro passo para que o país caminhe para superar a pandemia da covid-19, porém, a introdução da variante ômicron mostrou a complexidade do enfrentamento do vírus e sua alta capacidade de mutações.”

“A rápida transmissão desta variante criou uma nova pressão na rede assistencial e o aumento de óbitos. Não é possível considerar de caráter endêmico uma doença que traz esse peso na assistência e que tenha essa alta morbimortalidade. Superar a pandemia não quer dizer que não teremos mais casos e óbitos pela covid-19, mas não temos parâmetros ainda para saber o quanto de casos e óbitos serão considerados esperados e, dessa forma, tratados como endêmicos”, continua o texto.

“As atenções e os esforços atuais devem estar voltados para garantir a ampliação e manutenção dos leitos clínicos e UTI covid, além da intensificação das campanhas de incentivo para que todos os brasileiros completem o esquema vacinal, incluindo a dose de reforço. Ainda não é o momento para baixar a guarda e decretar o controle da pandemia no Brasil”, conclui o Conass.

O Ministério da Saúde não enviou resposta até a publicação desta reportagem.

FONTE BBC NEWS

COVID-19: surgimento da ômicron pode fazer pandemia se tornar endemia

Apesar do avanço da ômicron, setores da comunidade científica trabalham com o panorama de que o surgimento dessa variante pode significar a transição da pandemia para uma endemia. Embora não haja consenso sobre isso, a característica menos agressiva da nova cepa pode representar o primeiro passo para a transformação da COVID-19.“A variante é bem mais contagiosa, mas menos agressiva do que as versões originais do vírus, e tem uma característica de suplantar as outras variantes. Pode ver que em todos os lugares que a ômicron invadiu, não há mais circulação de variantes anteriores. Além disso, tudo sugere que essa onda da variante será muito rápida: assim como está subindo rápido, vai descer rápido”, explicou o epidemiologista Pedro Hallal.O biólogo Átila Iamarino, porém, enxerga que ainda há fatores nas variantes do novo coronavírus que não são controlados e, por isso, devem ser observados.“Acho que não temos uma base para afirmar isso de fato. O que temos, até aqui, é uma evidência da última variante que surgiu: o vírus conseguiu fazer um escape imune o suficiente para ter transmissão, mas não o suficiente para causar casos tão graves quanto a gente teria sem a vacina. Isso é comparável. Então, dá para atribuir parte da redução de hospitalização e mortes à ômicron pela mudança de preferência do vírus que pode ter acontecido. Ainda é preciso ter mais evidências científicas disso, mas pode-se atribuir muito ao que a vacinação fez”, salientou.

Já o infectologista Hemerson Luz explicou que a evidência de endemia surgiu porque o caminho feito pelo coronavírus está identificado com pontos como letalidade menor e capacidade de transmissão maior. “Porém, alguns fatores podem interferir nesse caminho, como a distribuição desigual de vacinas pelo mundo. Isso pode facilitar o surgimento de novas variantes que sejam com transmissibilidade maior e com uma virulência maior, o que será perigoso. Porém o nosso caminho parece estar estabelecido”, salientou.

Informações: Hoje em Dia

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