Avelina Maria Noronha de Almeida
O SERVO DE DEUS
QUINTO CAPÍTULO
Coronel Bento mergulhou o corpo alquebrado debaixo das cobertas.
E, como sempre, vieram as lembranças.
Desta vez lembrou-se do compadre Joaquim, que um dia viera visitá-lo. Conversa vai, conversa vem, ele se queixara, ao compadre, das dores, dos pruridos, das dificuldades para dormir e para andar. Falou até das manchas esquisitas e das feridas que estavam aparecendo por todo o corpo.
– Mas compadre Bento, vosmecê devia ter chamado o cirurgião…
– Ele já veio muitas vezes, compadre. Receitou um mundão de remédios… não valeram nada! Vários benzedores tentaram me curar. Até um pajé que mora pros lado da Paraopeba veio aqui. Já desisti. Só me resta morrer!
– Compadre, eu soube de um homem santo, que mora lá no Redondo. Ele já curou gente que estava bem pior que vosmecê, com chás e rezas, em nome de Deus. Vá lá vosmecê atrás dele! Quem sabe vai encontrar a cura pros seus males?
No dia seguinte, partiram o Coronel e sinhazinha Francisca, agora companheira constante do pai. Até padrinhos de batizados eram juntos.
Conversavam muito. Só uma coisa ela nunca tinha tido coragem de perguntar: “– Onde está meu filho?”
Quando chegaram ao Redondo foram, primeiramente, à igreja de Nossa Senhora da Ajuda. Depois saíram à procura do curandeiro.
Triste decepção! Perderam tempo!
O homem ficara lá muito tempo numa fazenda, mas já havia ido embora. Uns diziam que era para o antigo Tejuco, que passara a chamar-se, não havia muito tempo, Diamantina. Outros, que tinha enfiado pelo sertão a dentro, sem rumo. Mas o dono da fazenda garantiu que o Servo de Deus, alcunha pela qual era conhecido, tinha ido trabalhar no garimpo.
Na penumbra do quarto, aquele homem outrora poderoso, arrogante e empedernido chorava como se fora uma criança. A filha procurava consolá-lo, mas não adiantava.
– Nem ao menos o nome dele conseguimos saber, minha filha! E eu tinha tanta esperança de encontrar a cura para essa minha doença que ninguém descobre o que é…
– Senhor meu pai, ficamos sabendo pelo menos uma coisa: que ele atende pelo apelido de “Servo de Deus”. Já é alguma coisa.
– De que adianta, se ele sumiu?
– Nós vamos atrás dele.
– Eu não aguento, Francisca. Sofri demais só pra ir no Redondo que é aqui perto, que dirá ir até Diamantina?
– Mas eu aguento. Vou procurar o Servo de Deus – falou decida a filha.
No dia seguinte, Francisca partiu para Diamantina. Coronel Bento tudo fez para dissuadi-la da idéia, mas na adiantou. Ela estava irredutível.
– Senhor meu pai, eu não volto sem o Servo de Deus.
O Coronel mandou o capataz Teodoro verificar se a carruagem estava em condições de viagem tão longa; escolhesse um escravo mais forte para dirigi-la e fosse também com Francisca para protegê-la em viagem tão perigosa.
– Pode ficar tranquilo, Coronel. Eu trago a sinhazinha sã e salva.
Naquele rosto antigamente sempre endurecido, as lágrimas correr
O Coronel tinha razão. Aquela viagem era muito perigosa. O que aconteceu nela provou isso.
O capataz achou mais seguro que se ajuntassem a uns tropeiros que iam para a mesma direção que eles. Mas que engano! Após algumas horas de viagem a tropa, que carregava mercadoria valiosa, foi cercada por um bando de salteadores. Os tropeiros reagiram valentemente, mas os salteadores eram ferozes.
O tiroteio estava cerrado. Francisca e Teodoro se esconderam atrás das ruínas de muro de pedras. Dali observavam os tropeiros, embora reagindo bravamente, serem mortos um a um. Quando eles viram que a luta estava perdida, tentaram fugir levando suas mochilas, mas foram vistos.
Embrenharam-se pela mata e corriam desesperadamente. Chegando a um barranco, deitaram-se no chão e ficaram imóveis. O barulho de pisadas nas folhas secas anunciava a chegada dos malfeitores que os haviam seguido.
Por sorte os passos se afastaram. Francisca e Teodoro se levantaram cautelosamente. Respiraram aliviados, mas a tranquilidade durou pouco. De repente dois braços agarraram a moça, e dois outros, o homem que a acompanhava.
Foram levados por entre as árvores até chegarem a uma clareira, onde o bando se arranchara. Suas mochilas foram pegas e jogadas lá num canto, junto com outras coisas que tinham apreendido lá na tropa.
A noite desceu. O bando se reuniu em volta de uma fogueira. Teodoro e Francisca foram amarrados e encostados em uma árvore um pouco distante, tremendo de frio. Os salteadores confabulavam entre si e, de vez em quando, lançavam olhares na direção dos dois. E riam. Que maldade estariam arquitetando em relação aos prisioneiros? Isso era muito comum entre os salteadores que confabulavam entre si e, de vez em quando, lançavam olhares na direção dos dois. E riam. Que maldade estariam arquitetando em relação aos prisioneiros? Isso era muito comum entre os salteadores.
Enquanto os homens do bando bebiam e cantavam, Francisca e Teodoro conversavam baixinho, tentando descobrir um meio de se livrarem.
– Sem jeito de escapar! Sinto dizer isso, sinhazinha. Os nós estão muito apertados, tanto os das mãos quanto os dos pés.
Francisca já aprendera muito tem a sofrer e a enfrentar dificuldades com resignação e força, mas podia se ver que ela estava agoniada. Teodoro sabia que muitos sofrimentos os aguardavam, porque os bandoleiros do sertão eram muito cruéis e tinham prazer em torturar. O que mais o preocupava era o que estava reservado a sinhazinha, por ser mulher. Isso fazia o coração dele doer mais. Ficou muito tempo pensativo. Tinha que tomar uma decisão muito important
– Sinhazinha Francisca, a gente pode ter pouco tempo de vida. Sinto dizer isso a vosmecê, mas é mais a pura verdade.
– Eu sei, seu Teodoro, mas não tenho medo da morte. Para quem sofreu tanto na vida, vai ser até um descanso.
Pairou um silencio dorido como o latejamento de um espinho inflamado, fincado profundo na carne.
– Sinhazinha, como eu disse, podemos não estar vivos amanhã de manhã. Eu preciso contar umas coisas pra vosmecê, uns segredos que eu guardo há muito tempo. É muito difícil contar. Mas Nossa Senhora vai me ajudar.
Os bandoleiros continuavam com a bebedeira.
Teodoro começou o difícil relato:
(Continua)