Caro leitor,
Fiquei honrado diante do convite feito pelo amigo Guilherme, diretor-chefe do conceituado Correio de Minas para integrar o “time” de colunistas e levar até você a minha coluna intitulada “Congonhas do Campo” que se inicia hoje contando um pouco da história da “cidade dos profetas”.
Início com um relato sobre a presença dos estrangeiros durante o século 19 e como alguns deles relataram em seus diários de viagens o que viram em Congonhas e região.
Espero que gostem. Boa leitura.
Congonhas e os visitantes estrangeiros no século 19
O Brasil colonial vivia a passos lentos em seu desenvolvimento e progresso como determinava o domínio português cujo objetivo maior era extrair da colônia suas riquezas minerais e leva-las para o reino além mar.
Os portos eram fechados. Só entravam na colônia quem os portugueses autorizavam. Tudo era restrito e mesmo com o intenso comércio com a Inglaterra e o constante tráfico de pessoas escravizadas da costa africana, a presença de estrangeiros em terras brasileiras era restrita e muito bem controlada.
Esse cenário só iria mudar após a vinda da corte portuguesa para o Brasil no ano de 1808. Dom João VI ao se estabelecer em terras tupiniquins passou a exigir melhorias na condição de vida das províncias, principalmente no Rio de Janeiro.
E uma de suas ações foi promover a abertura dos portos à nações amigas de Portugal, principalmente a Inglaterra.
Assim inicia-se a vinda para cá dos viajantes europeus ávidos em desbravar e conhecer melhor o Brasil, atraindo pesquisadores e naturalistas ingleses, alemães e franceses desejosos em pesquisar nosso modo de viver.
E por estar localizada em uma região que durante o século 18 produziu uma estrondosa riqueza mineral em ouro e pedras preciosas, Congonhas foi de imediato o destino de alguns desses estrangeiros no qual compilamos vários relatos destes intrépidos viajantes que aqui passaram durante o século 19.
A vinda da Corte Portuguesa ao Brasil trouxe consequências não esperadas para a história de Congonhas, onde as reservas de ferro já haviam sido notadas por diversos naturalistas como o inconfidente José Álvares Maciel e pelo naturalista Vieira Couto, tornou-se possível a elaboração de um projeto vultuoso para a superação da condição colonial. Congonhas recebeu grande influência dos progressos desse período com destaque para, próximo de seu centro, a instalação de uma das fábricas de ferro que iniciaria a siderurgia industrial no Brasil do século 19.
Barão de Eschwege
Dom João VI contratou diversos profissionais para auxiliá-lo no desenvolvimento da então colônia brasileira. Um desses profissionais foi o geólogo e metalúrgico alemão Wilhelm Ludwig von Eschwege, também conhecido como Barão de Eschwege.
Ele chegou ao Brasil em 1811 e aqui permaneceu até o final de 1821 quando retornou à Alemanha. Sua missão inicial era pesquisar o solo da região das minas de ouro.
Em 07/08/1811 ele chegou ao povoado do Redondo, o atual distrito do Alto Maranhão, onde descreveu a vila como um lugar decadente e abandonado. Seguiu pelo caminho real e logo avistou a Basílica do Bom Jesus deparando-se com a monumental obra de Aleijadinho, anotando em seu diário de viagem que as esculturas eram bem trabalhadas, porém feias e foram produzidas por um aleijado. Era de fato o primeiro olhar de um europeu às obras de Aleijadinho em Congonhas.
O barão de Eschwege permaneceria por quase 11 anos instalado entre Congonhas e Ouro Preto. Realizou um grande estudo sobre potencial mineral da então colônia para reanimar a decadente mineração de ouro e para trabalhar na nascente indústria siderúrgica. Ainda em 1811 Eschwege iniciou em Congonhas os trabalhos de construção de uma fábrica de ferro, denominada “Patriótica”, um empreendimento privado sob a forma de sociedade por ações, cujo sócio principal era Romualdo José Monteiro de Barros – o Barão do Paraopeba. Em 1812 sua siderurgia já produzia em escala industrial e é considerada a pioneira do gênero na américa latina colonial.
A fábrica é responsável não só pela introdução de novo método siderúrgico, o método catalão, mas também foi palco de atração de viajantes e introduziu os primeiros alemães a se estabelecerem em Congonhas. E como consequência beneficiou a economia local além de aumentar o impacto da produção de carvão na destruição das matas da região, que já eram usadas para isso, inclusive porque ali existiram algumas forjas pequenas, do modelo de cadinhos e produção artesanal, que produziam algum ferro antes da Fábrica Patriótica.
Auguste de Saint-Hilaire
Pouco depois chegava ao Brasil o botânico e naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire em 1817. Sob a influência do Conde de Luxemburgo, embaixador da França, Saint-Hilaire explorou as regiões do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Goiás, São Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. O principal interesse desse viajante em suas excursões recaia em estudos botânicos, chegando a reunir um herbário de 30.000 espécimes, que abrangia 7.000 espécies, muitas das quais até então avaliadas como desconhecidas. Além disso, coletou material de origem zoológica e forneceu impressões sobre aspectos econômicos, políticos e culturais da sociedade em geral. Percorreu quase todo o interior de Minas Gerais.
Saint-Hilaire passou por Congonhas em 1819 vindo de Ouro Preto pelo caminho entre Cachoeira do Campo e antiga fazenda do Pires no qual anotou: “as encostas dos morros rasgadas e reviradas de todos os modos atestam o trabalho de maior vulto: o garimpo do ouro. Congonhas cai então em decadência, como tantas outras aldeias, vendo-se grande número de casas mal conservadas ou mesmo abandonadas”. Encantou-se pelas obras sacras da Basílica do Bom Jesus descrevendo-as detalhadamente. Seguiu viagem passando pelo Alto Maranhão. Saint-Hilaire ficou no Brasil até 1822.
John Luccock
John Luccock, um comerciante Inglês também visitou o Brasil entre os anos de 1817 e 1818. Relatou em seu diário a hospitalidade do povo mineiro e beleza das serras e montanhas fazendo um especial destaque da peculiar culinária. Em Congonhas percorreu as igrejas barrocas passando por último pela igreja dedicada à Nossa Senhora do Rosário dos Pretos onde logo à frente seguiria pelo caminho primitivo que o levaria à Ouro Preto.
Luccock anotou em seu diário: “o povoamento da margem oposta a Congonhas, Matozinho, é uma pequena vila, bonita, animada e limpa, composta de cerca de cento e cinquenta casas e muitas igrejas. Dependura-se à barranca setentrional do rio Paraopeba, defronte de Caacunha (Congonhas)”. Sobre Congonhas deixou anotado: “Caacunha, situada sobre as íngremes barrancas do rio, apresenta agradável aspecto, quando contemplada pelo norte. Contém cerca de duzentas casas e algumas igrejas. Uma delas, posto que diminuta em tamanho, rivaliza por seus esplêndidos ornatos com os mais admirados dos edifícios eclesiásticos do Brasil. Constituía ela o objeto principal da minha vista à localidade, ocupando-me quase a totalidade da permanência ali. Sob mais um ponto de vista, merece considerar-se como a Loretto deste país”.
Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Phillipp von Martius
Os alemães da bavária Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Phillipp von Martius também passaram por Congonhas em 1817 e anotaram apenas uma breve descrição da paisagem e alguns morros e cadeias de montanhas da região.
Alexander Caldcleugh
Outro inglês, agora Alexander Caldcleugh, visitou Congonhas em 1820. E ao chegar topou com uma festividade religiosa que tornou difícil até mesmo achar um local para se hospedar.
Era o dia 12 de setembro quando acontecia as celebrações do Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos. Caldcleugh e seus companheiros chegaram por volta das 14h e se depararam com as ruas apinhadas de gente. Anotou em seu diário: “todas as casas se encontravam ocupadas e pessoas estendiam colchões pelas ruas. Sequer encontravam abrigo contra o sol forte. Apenas mais tarde é que conseguimos pouso em uma pequena cabana bem periférica, um pouco mais distante da cidade”.
Durante toda a tarde ele vira os fiéis entrarem e saírem de uma igreja a outra para ouvir sermões, até que por volta das 21h a cidade silenciou por completo.
Charles James Fox Bunbury
Charles James Fox Bunbury, também inglês, passou por Congonhas em janeiro de 1835 e quase nada registrou. Não permaneceu mais que um pernoite.
Richard Francis Burton
Tempos depois passaria por Congonhas e Alto Maranhão o inglês Richard Francis Burton no ano de 1867. Burton era Geógrafo e Diplomata e baseando-se nos escritos do barão de Eschwege e do naturalista Auguste de Saint-Hilaire, teve um olhar especial sobre Congonhas admirando exaustivamente a obra de Aleijadinho. Burton ficou em Congonhas por 2 dias e chegou a se banhar nas águas ainda límpidas do rio Maranhão numa manhã fria do mês de agosto para espanto das mulheres e homens que ali estavam a realizar suas tarefas diárias. E deixou anotado em seu diário que as margens do rio Maranhão ainda tinham as marcas das explorações de ouro feitas no século 18.
Ainda sobre o rio destacou que o mesmo era o divisor natural de Congonhas e Matosinhos que, em sua opinião, eram lugares completamente diferentes. Burton anotou em seu diário a primeira visão que teve da paisagem entre Congonhas e Ouro Branco: “cerca de três horas da tarde, quando a viagem se tornara uma delícia, chegamos à crista de um morro e, de repente, avistamos Congonhas, como Trieste é avistada, ou melhor, como Trieste era avistada, outrora, de uma velha diligência. A localidade se situa na parte meridional de um lindo vale, em oval, cujo longo diâmetro, de nordeste para noroeste, é formado pelo rio Maranhão. A água corre em uma terra coberta de verdura esmeraldina em rico terreno de prados, raro em Minas, onde as depressões são estreitas. Corte e entalhes de argila branca, vermelha e amarela na parte superior do leito são os únicos vestígios das minas de ouro, outrora ricas. Para o norte, fica a vasta e fragosa serra, reta e semelhante a um paredão; é chamada Serra de N. Sra. da Boa Morte, nome de uma aldeia e uma capela dessa invocação; seu ponto culminante é o pico do Itabira, que avistamos então, e, naquele ponto, ela forma um semicírculo que se estende até as montanhas de Congonhas, um maciço a oeste. Para leste, fica a grande cadeia de Ouro Branco, cujo aspecto varia muito, de acordo com os diferentes ângulos em que é observada”.
Burton teve dificuldades de conseguir alojamento devido à quantidade de peregrinos em romaria ao Senhor Bom Jesus. E sobre a religiosidade observou: “À primeira vista, Congonhas parece ser toda uma igreja e um convento. Logo, porém, aparece um segundo templo, mais para o vale ribeirinho; tem duas torres e é pintado de branco e preto…”.
Não deixou de observar as casas “caiadas, ofuscantes à luz solar, espalham-se formando uma linha no eixo transversal entre os dois santuários. Descemos uma ladeira rochosa e calçada, de uma inclinação excessiva, e em breve, nos vimos sob o teto do Alferes Gurgel de Santana…”. Burton se referia à pensão do Alferes Gurgel na ladeira Bom Jesus onde atualmente funciona a secretaria de Cultura.
James Wells
E em 1875 o engenheiro inglês James Wells permaneceu alguns dias em Congonhas ficando também hospedado na pensão do Alferes Gurgel. Wells anotou em seu diário que “a hospedaria era um local limpo e agradável e as refeições servidas deliciosas”.
Descreveu Congonhas como pitoresca e interessante povoação: “no primeiro plano, à esquerda, ficam os prédios espalhados, de considerável pretensão e tamanho, da igreja, convento e colégio, tornando as casas da cidade bem inferiores em comparação; no terreno côncavo a nossos pés ficam os telhados vermelhos e paredes brancas reluzentes das casas e lojas. O rio Maranhão, um curso de águas claras no fundo do vale, meandra sobre cascalho e matacões, por entre margens de relva verde; além dele, na elevação, ficam as casas da vila e a igreja Matozinhos…”.
Não deixou de observar que ainda havia em Congonhas a procura pelo ouro por todos os lados: “ao cruzarmos o rio Maranhão vemos as lavadeiras trabalhando, batendo nas pedras chatas as roupas molhadas e perto delas homens com bateia na mão, cheia de cascalho do leito do rio, garimpando ouro”.
Wells veio para Congonhas com o objetivo de realizar os estudos técnicos para a construção de um ramal férreo que margeasse o rio Paraopeba até sua foz no rio São Francisco estando a serviço da companhia belga de estradas de ferro investidora no Brasil imperial de Dom Pedro II. Wells fez um trabalho primoroso que culminou na construção do ramal férreo do Paraopeba com mais de 140 km de extensão partindo onde atualmente é o bairro de Joaquim Murtinho, passando por Congonhas até chegar em Belo Horizonte.
“Império das festas”
O Brasil durante o século 19 recebeu a visita de muitos outros viajantes estrangeiros que percorreram o interior do país cujo teor era, sobretudo, científico. Paralelamente, vivia-se, em Minas Gerais, uma espécie de “império das festas” como muitos desses viajantes anotaram em seus diários.
Colocando um olhar mais atento aos seus relatos vemos que realizaram um o trabalho de análise arqueológica e cartográfica, destacando a geografia local, a diversidade biológica e os recursos minerais, além de realçarem o rico calendário festivo que engendrava a sociedade mineira nesse período.
Encontramos em seus diários de viagem relatos sobre as festas aqui praticadas destacando as religiosas (missas, procissões, romarias, cavalhadas e celebrações), cívicas (celebrações ao poder político constituído), públicas (carnaval e ano-novo), domésticas (batizados, casamentos e jantares), negras (alforria, coroação, entre outras), indígenas (colheitas, danças e funerais), divertimentos públicos (jogos, teatro e fandangos), divertimentos domésticos (bailes, saraus e almoços), hospitalidade (eventos de acolhimento, gentileza, polidez e despedida) e suspensão do trabalho (lazer, dia de descanso e momento de liberdade para os negros).
Apesar desses relatos narrarem o comportamento afetivo do povo mineiro, vê-se que a sociedade daquele período não se traduzia necessariamente por elementos pacificadores. A opressão também foi relatada pelos viajantes como muito mais cruel em Minas, provocando a rebeldia que culminou na Inconfidência Mineira, fazendo emergir a figura de Tiradentes. O viajante Burton descreve esse movimento classificando-o como uma embrionária tentativa de estabelecer a república além de terem observado o modo cruel como eram tratados e explorados os escravizados.
Os viajantes europeus do século 19 estabeleceram uma estreita relação com o povo mineiro e através de seus relatos é possível conhecer mais a fundo como vivia a nossa sociedade nesse período.