Relatório sobre os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU mostra 82,8% das metas em retrocesso, ameaçadas ou estagnadas
Das 169 metas analisadas estabelecidas pela ONU (Organização das Nações Unidas) em seus 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, mais de 80% delas estão em retrocesso, estagnadas ou ameaçadas no Brasil. A quinta edição do Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030, lançada nesta segunda-feira (12), em audiência pública no Congresso Nacional, mostra um país andando para trás: o Brasil terminou 2020 com 113 milhões de brasileiros e brasileiras em situação de insegurança alimentar – quase 60% da população passaram os últimos 13 meses sem saber se teriam o que comer no dia seguinte ou já com o comprometimento da qualidade para manter a quantidade de alimentos necessária à família.
Pelo menos, 19 milhões de pessoas vivenciaram situação de fome em 2020. “Apesar de não ter sido oficialmente declarado pela ONU, todos os indicadores apontam que o Brasil voltou ao Mapa da Fome. Além da crise provocada, tivemos uma série de fatores que levaram mais e mais brasileiros à situação de insegurança alimentar”, enfatizou o economista Francisco Menezes, analista de Políticas e Programas da ActionAid, que participou da elaboração do Relatório Luz.
Os dados mostram que a porcentagem de brasileiros em situação de insegurança alimentar grave (9%) e de insegurança alimentar moderada (11,5%) voltou a patamar semelhante aos registrados em 2004. “É um retrocesso terrível: a fome ronda mais da metade dos brasileiros”, lamentou Menezes. O índice de pessoas em situação de insegurança alimentar grave – fome mesmo – saltou de 5,8% em 2018 para 9% em 2020. A insegurança alimentar leve saltou de 20,7% para 34,7%. “Isso indica o medo da fome. São as pessoas que não sabem se vão comer amanhã, não sabem como vão conseguir alimentar os filhos”, explicou.
O analista da ActionAid acrescentou que o agravamento da pobreza, desde a crise de 2015, não foi acompanhado de ações para amparar os mais vulneráveis. Ao contrário. “A partir da emenda que estabeleceu o teto de gastos, no fim de 2016, os programas de proteção social tiveram drásticos cortes orçamentários”, disse Menezes, citando o programa de aquisição de alimentos, com produtos da agricultura familiar; o programa Cisternas, que levava ao semiárido água necessária para agricultura básica; e até mesmo o Bolsa Família. “Quando a pandemia começou, havia mais de um milhão de famílias na fila do programa”, lembrou o economista.
O relatório aponta ainda que 27 milhões de pessoas passaram a viver em situação de extrema pobreza, com menos de R$ 246 ao mês, diante de uma inflação que oficialmente cresceu 4,52% (IPCA) – no mesmo período, a alta de preços dos alimentos foi de 14,09% em relação a 2019. “Ao menos desde 2017, mas em particular a partir da extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em 2019, é contínuo o aumento da fome e também do empobrecimento da população”, destaca o documento.
Francisco Menezes destacou ainda que a pandemia só veio agravar essa situação de fome e pobreza. “O número de desempregados cresceu muito e houve a precarização do trabalho, com uma redução dramática da renda das famílias”, afirmou. Ele frisou ainda que a política francamente antiambiental do governo também contribuiu para a insegurança alimentar. “Os pequenos agricultores, aqueles que consomem o que produzem, vêm sendo impactados pela mudança no regime de chuvas, pelo desmatamento, pelas queimadas – sem que haja qualquer ação para protegê-los”, disse o analista da ActionAid.
Mais pobreza e mais desigualdade
Intimamente ligados ao fim da fome, os ODS 1 (erradicação da pobreza) e 10 (redução da desigualdade) também registraram grave retrocesso em 2020. O Relatório Luz aponta “o agravamento do quadro de pobreza extrema e ampliação da miséria no território nacional”, destacando que a população desocupada no país teve um crescimento de 16,9% em relação ao ano anterior, alcançando 14,4 milhões de pessoas. “A estagnação de outras políticas sociais de distribuição de renda, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a redução das pensões e aumento dos requisitos para obtenção de aposentadorias também impactam negativamente a meta de erradicação da pobreza”.
O Brasil retrocedeu ainda mais no cumprimento das metas do ODS 10 – a desigualdade crescente provocada pela pandemia chegou a ser amenizada pelo auxílio emergencial de 2020 (entre R$ 600 e R$ 1.200). Mas o documento enfatiza que estimativa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostrou que, que durante o período de suspensão do benefício, de agosto de 2020 a janeiro de 2021, 18 milhões de pessoas passaram a viver em situação de extrema pobreza.
São dados oficiais estarrecedores e que mostram um Brasil cada vez mais distante do desenvolvimento sustentável, violando princípios constitucionais, violando direitos e desconstruindo políticas fundamentais para superação das desigualdades que marcam o país
Alessandra NiloCoordenadora técnica do Relatório Luz
As violações de direitos humanos em geral também cresceram no Brasil da pandemia. As violências contra mulheres e meninas foram objeto de mais de 105 mil denúncias em 2020 – 12 registros a cada hora. Os registros de violações contra crianças e adolescentes passaram de 95 mil; contra pessoas idosas, somaram quase 88 mil. Também no ano do retrocesso de 2020, 175 mulheres travestis e transexuais foram assassinadas no país, aumento de 29% em relação a 2019. Casos de intolerância religiosa somaram 500 registros (1.056 violações) no primeiro semestre de 2020, um crescimento de 41,2% em relação ao mesmo período de 2019 e de 136% no comparativo com os dados de janeiro a junho de 2018. As violências contra pessoas com deficiência totalizaram 4.866 denúncias (26.510 violações) no primeiro semestre de 2020, aumento de 105,5% em relação ao mesmo período de 2019.
Para Francisco Menezes, o Relatório Luz revela, em meio ao panorama geral de retrocesso, quatro verdadeiras tragédias. “Há a tragédia da crise sanitária, alimentada por um governo que sabotou medidas de prevenção e não combateu a pandemia; há a tragédia da fome e da pobreza que avança sobre os brasileiros em todas as partes do país; há a tragédia da destruição ambiental, e há a tragédia da violência, crescente e impulsionada pelas outras tragédias”, afirmou o analista da ActionAid.
Retrato de um país em retrocesso
O Relatório Luz foi elaborado pelo Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para a Agenda 2030 (GT Agenda 2030), coalizão de 57 organizações e fóruns de todo o país. Foram reunidos 106 especialistas, nas mais diversas áreas, para elaborar publicação, hoje a única no Brasil que oferece um panorama do andamento da implementação dos 17 ODSs, uma vez que o último Relatório Nacional Voluntário apresentado pelo governo brasileiro ao Fórum Político de Alto Nível sobre Desenvolvimento Sustentável (HLPF), órgão da ONU encarregado de acompanhar os ODS, foi apresentado em 2017.
Foram analisadas todas as 169 metas definidas na Agenda 2030. Dessas, 92 (ou 54,4%) estão em retrocesso – eram 60 no relatório 2020. Outras 27 (16%) estão estagnadas e 21 (12,4%) ameaçadas – no total, 82,2% das metas estão em retrocesso, estagnadas ou ameaçadas. Há ainda 13 (7,7%) com progresso insuficiente e 15 metas (8,9%) que não foram ranqueadas por falta de dados.
Este ano, pela primeira vez, não há uma meta sequer com avanço satisfatório. “São dados oficiais estarrecedores e que mostram um Brasil cada vez mais distante do desenvolvimento sustentável, violando princípios constitucionais, violando direitos e desconstruindo políticas fundamentais para superação das desigualdades que marcam o país, hoje mais agravadas pelas crises de governança e pela pandemia. A fotografia é trágica e as consequências do retrocesso que está acontecendo deverão ser sentidas por muito tempo”, afirmou Alessandra Nilo, coordenadora técnica do relatório.
Com as próprias conclusões do Relatório Luz da Sociedade Civil sobre a Agenda 2030, seguem avaliações sobre a involução e o retrocesso do Brasil em cada um dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
ODS 1 Erradicar a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares
“A epidemia da Covid-19 trouxe de imediato o agravamento do desemprego e expôs a vulnerabilidade das pessoas, já obrigadas a assumirem condições cada vez mais precárias de trabalho”.
ODS 2 Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável
“Entre 2018 e 2020 a insegurança alimentar aumentou 28%, com impactos mais sentidos de acordo com os marcadores de gênero, raça e etnia, renda, condição de deficiência, escolaridade, contextos regionais e territoriais, denunciando o cenário grave de retrocesso”
ODS 3 Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades
“A piora em índices de saúde e bem-estar se intensificou com o não reconhecimento da gravidade da Covid-19 pelo governo federal. A promoção de aglomerações; as campanhas contra o uso de máscaras; a aquisição e disseminação de medicamentos sem comprovação científica, como a hidroxicloroquina e a ivermectina; a tese de ‘imunidade de rebanho’ e a opção reiterada de não comprar vacinas desde 2020, agravaram a crise sanitária”
ODS 4 Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos
“A indicação de criacionistas, fundamentalistas, defensores da privatização e de pessoas indicadas por militares para o Conselho Nacional de Educação (CNE) coloca em risco todos os parâmetros educacionais, especialmente o direito à memória, à verdade e reparação no âmbito educacional e o ensino com respeito à diversidade, raça, religiosidade, territorialidade e região”
ODS 5 Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas
“O negacionismo científico e a misoginia estruturam o perfil de alto escalão do governo federal e impedem a interseccionalidade de gênero, raça, etnia e classe na implementação de políticas públicas, aumentando a violência e o trabalho infantil dentro e fora do ambiente doméstico, a evasão escolar e as múltiplas jornadas de trabalho comuns a todas as mulheres. O resultado é devastador: as mulheres e meninas a cada dia ficam mais para trás, perdendo seus direitos e suas vidas”
ODS 6 Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos
“O acesso à coleta de esgoto cresceu apenas 8,7% de 2010 a 2019 e a taxa tem reduzido desde 2016. Só 7,4% da população rural dos municípios com rede pública de abastecimento de água acessam serviços públicos de esgoto. Na área urbana o atendimento chega a 61,9%”
ODS 7 Assegurar acesso confiável, sustentável, moderno e a preço acessível à energia para todas e todos
“Apesar das medidas aprovadas para proibir o corte de energia por inadimplência, as pessoas de baixa renda continuam afetadas de maneira mais profunda, com muita dificuldade para pagar as tarifas e comprar gás de cozinha (GLP), que aumentaram ainda mais, após reajustes sucessivos ao longo de 2020”
ODS 8 Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos
“A necessária paralisação de atividades econômicas para contenção do contágio pelo novo coronavírus, sem as devidas medidas de proteção social para amparar trabalhadores e trabalhadoras, ampliou o desemprego e a miséria”
ODS 9 Construir infraestruturas resilientes, promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação
“O país não foi capaz de criar condições para que a indústria investisse em inovação e tecnologia. A estagnação atual do setor também explica, em parte, a lenta retomada do mercado de trabalho no país, que, em 2020, chegou a uma taxa de 14,1% de desocupados”
ODS 10 Reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles
“As desigualdades se mostraram também na letalidade do SARS-Cov-2. O coronavírus atinge duas vezes mais os pobres do que os ricos, as regiões Norte e Nordeste têm maior incidência proporcional ao número de habitantes e a população negra tem maior taxa de mortalidade”
ODS 11 Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis
“A redução dos investimentos da União em saneamento básico e transporte público, o encolhimento dos programas de habitação de interesse social a um patamar praticamente inexistente, além da extinção de programas e incentivos, como a gratuidade do transporte público para idosos, são exemplos do ano de 2020 para o ODS 11”
ODS 12 Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis
“A política do governo federal impactou negativamente todas as metas e indicadores deste ODS: tentativas de alterar o Código Ambiental, flexibilização do ordenamento jurídico e enfraquecimento dos órgãos de controle, redução da fiscalização e ausência de dados atualizados sobre o contexto da produção e consumo consciente”
ODS 13 Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos
“Em 2019, o governo executou uma série de medidas de desconstrução da política ambiental nacional e, em particular, da política de clima. Em 2020, a situação piorou drasticamente. O orçamento federal sofreu novos cortes e reduções, materializando as ameaças de extinção não somente de políticas, como as do Ibama, mas também de órgãos inteiros, como é o caso do ICMBio”
ODS 14 Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável
“Preocupa em especial o debate sobre “favorecimento ao ambiente de negócios” não sustentáveis referentes à alimentação, pontuada na Portaria nº 53, de 23 de março de 2021, que alargou as regras de licenciamento ambiental para permitir a pesca de grupos taxonômicos antes proibidos, muitos deles já ameaçados de extinção”
ODS 15 Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade
“Meta segue em retrocesso, com a perda de 10% de área de vegetação nativa entre 1985 e 2019, o equivalente a cerca de 870.000 km2. O desmatamento da Amazônia Legal cresceu 9,5% de 2019 para 2020 (11.088 km2) e segue avançando em 2021, inclusive sobre a Mata Atlântica. O Cerrado, depois de uma leve queda no desmatamento em 2019, registrou aumento de 13% em 2020 (7.340 km2) no comparativo com o ano anterior, em especial na região de expansão da fronteira agrícola conhecida como Matopiba”
ODS 16 Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis
“Diminuíram a transparência e circulação de informações públicas, com o aparelho estatal sendo usado contra pessoas que criticam o governo. A crescente e constante violência policial, resultante em óbitos decorrentes de operações policiais, principalmente de jovens negros, é outro tema que impacta negativamente o ODS”
ODS 17 Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável
“O Brasil tem se afastado cada vez mais da cooperação internacional: recuou mais de dezesseis anos na quantidade de projetos de cooperação técnica com outros países em desenvolvimento. A perda de credibilidade internacional configura em retrocesso, já que o Brasil não é mais considerado um ambiente seguro para investimento estrangeiro devido ao aumento da polarização política e ao desarranjo dos fundamentos da economia, que se torna cada vez mais primária exportadora, com baixo valor agregado”
FONTE PROJETO COLABORA