Transição religiosa está entre as principais mudanças ocorridas no país nestes 200 anos de Independência
O Brasil está passando por um processo de transição religiosa que se desdobra em quatro movimentos: declínio absoluto e relativo das filiações católicas; aumento acelerado das filiações evangélicas; crescimento do percentual das religiões não cristãs; aumento absoluto e relativo das pessoas que se declaram sem religião. Portanto, o século XXI, em termos da configuração religiosa, será completamente diferente dos 500 anos anteriores.
O Brasil foi concebido no seio das conquistas das grandes navegações da Europa cristã. Como mostrou Celso Furtado na primeira frase do livro Formação Econômica do Brasil: “A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa” (Furtado, 2005, p. 10). Mas, além dos interesses econômicos, é preciso destacar que o Brasil nasceu e cresceu umbilicalmente ligado à religião católica, especialmente ao catolicismo da Península Ibérica.
O projeto colonizador português estabeleceu como uma de suas metas prioritárias a conquista espiritual do Novo Mundo. Por exemplo, o capitão-mor, Pedro Alvares Cabral, era cavaleiro da Ordem de Cristo:
“Na véspera da partida da armada de Cabral, dia 8 de março de 1500, domingo, na capela da Ermita de São Jerônimo, à margem do rio Tejo, em Lisboa, houve uma cerimônia religiosa, na qual o bispo Diogo Ortiz benzeu a bandeira da Ordem de Cristo, passando-a em seguida para Dom Manuel I e este para Pedro Álvares Cabral. Estavam presentes a Corte, os banqueiros que financiariam grande parte do empreendimento e os capitães da frota. Como acontecia em todas as viagens marítimas portuguesas, havia capelães a bordo. No caso de Cabral, vieram oito franciscanos e o frei Dom Henrique Soares de Coimbra, um frade para cada 150 tripulantes” (César, 2000, p. 19-20).
As velas das naus de Pedro Alvares Cabral estampavam a Cruz de Malta (cruz de oito pontas na forma de quatro “Vs”, cujo desenho é baseado em cruzes usadas desde a Primeira Cruzada). O primeiro nome do Brasil foi Ilha de Vera Cruz. Após novas explorações, descobriu-se que se tratava de um continente e o nome foi alterado para Terra de Santa Cruz. Foi também aos pés de uma cruz e com uma plateia luso-ameríndia, que foi oficializada a Primeira Missa, rezada por Frei Henrique de Coimbra, no domingo, 26 de abril de 1500.
A Igreja Católica foi uma Instituição onipresente no processo de colonização brasileira e não deixou de se apresentar portadora de uma Missão em relação à Sociedade. O Brasil colônia era uma possessão portuguesa e católica. Assim, a tentativa de implantar a França Antártica, no Rio de Janeiro, entre 1555 e 1560, liderada por Nicolas de Villegagnon (de filiação protestante e que foi colega de João Calvino na universidade em Paris), mobilizou os comandos portugueses para impedir a chegada de forças concorrentes em termos nacionais e religiosos (Alves et. al. 2017).
Em 1548 chegaram os primeiros missionários Jesuítas e iniciou-se a catequese no Brasil. Os padres José de Anchieta e Manoel da Nobrega foram os principais jesuítas missionários que vieram ao Brasil neste período. Para viabilizar o processo de catequização dos indígenas no Brasil, foram organizados aldeamentos, que também eram chamados de missões ou reduções. Além dos jesuítas, também vieram com o objetivo de catequizar a população nativa, padres de outras ordens religiosas como os franciscanos, os beneditinos e os carmelitas. A cidade de São Paulo, por exemplo, foi fundada na Aldeia de Piratininga, em 25 de janeiro de 1554, sendo que o Pátio do Colégio dos Jesuítas é o marco inicial do nascimento da maior cidade do Brasil.
Contra os “indígenas hostis”, foi aplicada a ideia das “guerras justas”. Para tanto se recorreu ao imaginário de práticas indígenas bárbaras, tais como o canibalismo, a poligamia etc. A difusão da cruz e da mensagem bíblica entre as populações indígenas era uma necessidade essencial na legitimação da conquista do selvagem vivendo em uma sociedade dita “sem fé, sem lei e sem rei”. De acordo com Oliveira e Freire (2006):
“O projeto colonial português envolveu uma política indigenista que fragmentava a população autóctone em dois grupos polarizados, os aliados e os inimigos, para os quais eram dirigidas ações e representações contrastantes (…) Os povos e as famílias indígenas que se tornavam aliados dos portugueses necessitavam ser convertidos à fé cristã, enquanto os ‘índios bravos’ (como eram chamados nos documentos da época) deviam ser subjugados militar e politicamente de forma a garantir o seu processo de catequização. Este tinha por objetivo justificar o projeto colonial como uma iniciativa de natureza ético-religiosa preparando a população autóctone para servir como mão-de-obra nos empreendimentos coloniais” (p. 35).
A Igreja Católica também foi cúmplice do sistema escravocrata. O Brasil foi o maior território escravista da América, com quase 5 milhões de cativos africanos, o que representa 40% do total de africanos escravizados que embarcaram para o Novo Mundo. Foi o país que mais tempo demorou para acabar com o tráfico negreiro, em 1850, e o último a acabar com a própria escravidão, em 1888. Como mostrou Laurentino Gomes:
“Há toda uma ideologia construída, inclusive de fundo religioso, para dizer que os africanos eram selvagens, bárbaros, pagãos, praticantes de religiões demoníacas, e que, portanto, a melhor coisa que poderia acontecer com o africano era ser escravizado para se incorporar a suposta civilização europeia que se instalava nos trópicos. Era muito comum nas discussões do parlamento brasileiro a ideia de que a escravidão era a redenção dos escravos. O Padre Antônio Vieira, no final do século 17, defendia a ideia de que era uma graça divina que os escravos tivessem tido a oportunidade de serem escravizados para se incorporar a Igreja Católica” (Gomes, 20/11/2019).
Tudo isto deixou marcas profundas na história brasileira, marcando as desigualdades e os preconceitos que persistem até os dias atuais. Após a Independência, a Constituição brasileira de 1824 reafirmou o catolicismo como religião oficial do Estado brasileiro. Somente após a Proclamação da República, em 1889, foi decretada a separação entre Igreja e Estado e foi reconhecido o caráter laico do Estado, com garantia da liberdade religiosa. O monopólio religioso começou a se enfraquecer a partir do século XX.
Terremoto nos 500 anos de hegemonia católica
O catolicismo se tornou uma das principais marcas identitárias do Brasil. Existia quase um monopólio perfeito no país, pois a Igreja Católica era a única instituição religiosa reconhecida oficialmente até o início da República e se manteve amplamente hegemônica durante a maior parte do século XX. Ser brasileiro era, praticamente, sinônimo de ser católico.
Em termos quantitativos, a Itália era o país com o maior contingente de católicos do globo até 1950. Mas, na segunda metade do século XX, o Brasil se tornou a principal joia do Vaticano, com o maior número de pessoas filiadas ao catolicismo. Ainda no ano de 2022, dos dez países mais populosos do mundo (China, Índia, EUA, Indonésia, Paquistão, Brasil, Nigéria, Bangladesh, Rússia e México), apenas os dois países latino-americanos professam de forma majoritária a religião católica apostólica romana. Sem embargo, em termos absolutos, o Brasil supera o México e é o maior país católico do mundo.
O primeiro censo demográfico ocorrido no Brasil foi realizado em 1872 (cinquenta anos após a Independência) e indicou que 99,7% da população de 9,9 milhões de habitantes eram católicas. Nota-se que a maioria dos escravos e dos indígenas foi classificada como católicos. Apenas 0,1% (cerca de 10 mil pessoas) foram registradas como evangélicas (especialmente migrantes europeus que vieram para o Brasil originários de países protestantes).
Nos 98 anos seguintes, a população total brasileira passou para 93,1 milhões de habitantes em 1970, sendo 85,5 milhões de católicos (91,8%), 4,8 milhões de evangélicos (5,2%), 2,1 milhões de outras religiões (2,3%) e 702 mil de sem religião (0,8%), conforme a tabela abaixo. Observa-se que todos os grupos religiosos cresceram em termos absolutos, mas só os católicos diminuíram em termos relativos, passando de 99,7% para 91,8%, uma perda de cerca de 1% por década.
Todavia, a lenta redução do percentual de católicos brasileiros se acelerou bastante nas décadas seguintes. O número de católicos era de 121,8 milhões (83%) em 1991, 124,9 milhões (73,6%) em 2000 e 123,3 milhões em 2010. Percebe-se que o número absoluto de católicos atingiu o valor máximo no ano 2000 e, pela primeira vez na história brasileira, o número absoluto de católicos caiu na década inaugural do século XXI. Além disto, o decrescimento relativo que estava em 1% por década, passou para 1% ao ano. Concomitantemente, entre 1991 e 2010, os evangélicos passaram a crescer 0,63% ao ano, as outras religiões cresceram 0,38% ao ano e os sem religião cresceram 0,43% ao ano. Portanto, o Brasil está ficando mais diversificado em termos religiosos e o monopólio católico está sendo substituído, pelo menos por enquanto, por uma maior pluralidade.
A queda das filiações católicas é um fato histórico sem precedentes entre os grandes países do mundo e a rapidez da queda surpreende muitos estudiosos. É certo que a Igreja Católica tem uma tremenda dívida com diversos setores da sociedade brasileira, particularmente com os indígenas, os negros e as mulheres que sempre foram excluídas das estruturas misóginas da hierarquia eclesiástica. As práticas, os rituais e os ensinamentos do catolicismo tinham boa receptividade junto à população quando o Brasil era um país pobre, rural, tradicional, com baixas taxas de escolaridade e com restrita mobilidade social e espacial. O declínio católico ocorreu concomitantemente à aceleração de três mudanças estruturais que transformaram a sociedade brasileira.
A primeira está relacionada com as alterações no âmbito econômico. O Brasil abandonou a estrutura primário-exportadora, com um grande setor de subsistência e com o predomínio de relações informais de trabalho, baixa monetarização da economia e reduzida integração regional. Especialmente após a Segunda Guerra Mundial, o Brasil se transformou em uma economia industrial e de serviços, com ampliação do leque ocupacional, com incorporação da mulher no mercado de trabalho, com avanços quantitativos na educação e ampliação e diversificação do consumo. Houve também avanço das telecomunicações e do acesso à informação (rádio, televisão, telefone/celular, internet etc.). A política social deixou de ser “questão de polícia” (como era a regra na República Velha) e foi construído, mesmo com limitações, um sistema amplo de proteção social (Previdência, legislação trabalhista, seguro-desemprego, ensino público, SUS, Bolsa Família etc.). Com a Constituição de 1988, o sistema institucional de assistência social, em grande parte, substituiu as práticas do clientelismo e da caridade, garantindo uma maior autonomia para as camadas excluídas da sociedade.
A segunda grande mudança na configuração da sociedade brasileira aconteceu com a transição urbana, pois a maioria da população que estava atada aos condicionantes da vida agrária e rural se deslocou progressivamente para o meio urbano e para as grandes cidades. A população rural que representava 63,8% da população total em 1950 caiu para 15,7% em 2010, enquanto a população urbana passou de 36,2% para 84,3% no mesmo período. Ademais, o meio urbano era muito influenciado pela sociabilidade rural antes da Segunda Guerra, mas a modernização do campo e o crescimento cultural das cidades, cada vez mais globalizadas, mudaram a dinâmica de formação da opinião pública e os parâmetros da convivência interpessoal.
A terceira grande mudança no comportamento de massa no Brasil está relacionada com o aprofundamento da transição demográfica. As mortes precoces, que eram consideradas inevitáveis (e justificadas pelo fatalismo religioso), diminuíram significativamente e a expectativa de vida ao nascer, que estava abaixo de 30 anos no final do século XIX, chegou a 76 anos em 2019. A Taxa de Fecundidade Total que era de mais de 6 filhos por mulher na maior parte da história brasileira, começou a cair depois de 1970 e chegou a 1,7 filho por mulher (abaixo do nível de reposição). As pessoas e as famílias passaram a ter mais controle sobre a vida e a morte, minimizando as adversidades do ciclo de vida.
Mas, a doutrina oficial da Santa Sé, expressa na encíclica Humanae Vitae, publicada pelo Papa Paulo VI, em 1968, defende a família tradicional, proíbe o divórcio e a união de pessoas do mesmo sexo, condena os métodos contraceptivos modernos, recomenda o ato sexual apenas com base na finalidade procriativa. Estas orientações têm provocado um distanciamento dos fiéis, em especial, o afastamento dos jovens que anseiam por maior liberdade na definição das práticas sexuais e reprodutivas.
Transição religiosa: Brasil mais plural e os evangélicos ultrapassando os católicos
A Igreja Católica não conseguiu acompanhar o ritmo das mudanças do novo Brasil, pois tem uma estrutura centralizada, hierarquizada, lenta e muito avessa às inovações. Em um mundo se expandindo em acelerado movimento, o Vaticano continuou olhando para o retrovisor sem conseguir responder os novos desafios à frente. Por exemplo, os católicos possuem igrejas no centro de praticamente todas as cidades do país, mas não conseguem marcar presença forte na expansão demográfica da periferia das grandes metrópoles. A falta de padres e a distância em relação aos fiéis dificulta a propagação da doutrina católica e inviabiliza a agregação de amplas parcelas da população nas atividades cotidianas da igreja. O clericalismo atua em detrimento do contato dos padres com a sua base religiosa e, juntamente com as denúncias de corrupção e os escândalos de pedofilia, contribui para deslegitimar a autoridade católica e para afastar um número crescente de fiéis.
Já os evangélicos começaram a crescer no Brasil pós-transicional. Enquanto a Igreja Católica é tratada no singular, os evangélicos são analisados no plural, pois existem dezenas de denominações sem uma estrutura centralizada e com mensagens e práticas diferenciadas. Seguindo as regras do marketing, os evangélicos customizam a pregação, adaptando a mensagem ao perfil do público a ser conquistado. Os evangélicos têm conseguido alcançar multidões mais amplas na medida em que possuem grande descentralização e autonomia, rápida formação de pastores, cultos dinâmicos, musicais e alegres e a combinação de mega templos em grandes avenidas, com a abertura de mini templos perto das comunidades. Um marco do crescimento evangélico no Brasil tem sido o uso intensivo das diversas mídias (jornais, rádios, televisão, internet, redes sociais, WhatsApp etc.) e a presença atuante na política (especialmente na Frente Parlamentar Evangélica).
O sociólogo Max Weber é famoso, dentre outras coisas, por evidenciar que a ética protestante se encaixa melhor com o espírito do capitalismo. Assim, as transformações estruturais da economia brasileira foram na contramão dos ensinamentos católicos, ao mesmo tempo em que criam uma afinidade eletiva com as correntes nacionais de cunho protestante. Sem dúvida, as diversas denominações evangélicas brasileiras tendem a ser mais liberais e mais favoráveis à iniciativa privada do que os católicos, além disto, uma grande parte dos evangélicos pentecostais professa a teologia da prosperidade, uma doutrina que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus e que a fé, o discurso positivo e as doações para os ministérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material dos fiéis e das igrejas.
Os contrastes entre católicos e evangélicos no engajamento com os compromissos da igreja são marcantes. Pesquisa do Instituto Datafolha (21/07/2013) mostrou que 28% dos católicos costumavam ir à missa uma vez por semana e 17% costumavam ir à missa e outros serviços religiosos mais de uma vez por semana. Entre os católicos, 34% tinham o hábito de contribuir financeiramente com a Igreja, com um valor médio mensal de R$ 23. Todavia, entre os evangélicos pentecostais (que em média são mais pobres do que os católicos), 63% iam à igreja mais de uma vez por semana, 52% contribuíam financeiramente com um valor médio de R$ 69,10 mensais. Entre os evangélicos não pentecostais, 51% iam à igreja mais de uma vez por semana e 49% contribuíam financeiramente, com um valor médio de R$ 85,90 mensais. Portanto, os evangélicos brasileiros são mais presentes no dia a dia da igreja e contribuem com maior aporte financeiro.
Pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2017), sobre o imaginário social dos moradores da periferia de São Paulo, retratou como o neopentecostalismo e o empreendedorismo popular estão correlacionados, reforçando os valores liberais do faça você mesmo, do individualismo, da competitividade e da eficiência. Em outras palavras, boa parte da população pobre da periferia de São Paulo não ficava imobilizada diante das ineficiências das políticas públicas e do apoio estatal.
Em geral, os estudos mostram que as igrejas evangélicas, em maior proporção, promovem a inserção produtiva e o sucesso nos negócios, além de funcionarem como Estado de bem-estar social informal para as parcelas pobres e excluídas do sistema produtivo. A postura em relação à caridade é bem diferente daquela dos católicos. Com base na doutrina do poder do Espírito Santo, os evangélicos, em vez de ajudar materialmente os necessitados, preferem atuar promovendo a conversão, para que a pessoa em condição socialmente desfavorável adquira novos hábitos diante dos desafios cotidianos da vida (como se diz, ensinando a pescar ao invés de dar o peixe). Por um lado, o ingresso de novos convertidos na igreja evangélica muitas vezes contribui para a redução do alcoolismo, da criminalidade, do uso de drogas, além de diminuir a violência doméstica e os desajustes familiares. Por outro lado, há diversas lideranças evangélicas envolvidas em escândalos de corrupção, charlatanismo e abusos sexuais.
O fato é que a correlação de forças entre os dois grandes grupos cristãos está se alterando e a transição religiosa tem se acelerado no Brasil nas últimas décadas, seja em função do maior ativismo evangélico ou pela lentidão da reação católica. O gráfico abaixo apresenta os percentuais do panorama religioso brasileiro de 1940 a 2010 (com base nos censos demográficos do IBGE) e uma projeção das tendências atuais e futuras até 2032. Nota-se que, entre 1991 e 2010, o percentual de católicos brasileiros passou de 83,3% para 64,6% (uma queda anual de 1% ao ano), o percentual de evangélicos subiu de 9% para 22,2% (um aumento de 0,7% ao ano), o percentual das outras religiões passou de 3,1% para 5,2% (aumento de 0,1% ao ano) e o percentual de pessoas se declarando sem religião subiu de 4,6% para 8% (aumento de 0,2% ao ano).
Em um momento de transformações tão intensas, somente se pode lamentar que o IBGE não tenha incluído o quesito religião em nenhuma de suas pesquisas domiciliares na década de 2010 e a lacuna de dados se agravou com adiamento do censo demográfico para o segundo semestre de 2022. Sem embargo, existem outras pesquisas, tais como aquelas do Latinobarômetro, Pew Research Center e Datafolha, que fornecem pistas sobre o ritmo da transição religiosa no Brasil.
Assim, com base nas evidências disponíveis entre 2010 e 2022, realizamos uma projeção cobrindo o período 2010 a 2032, assumindo os seguintes pressupostos: continuidade da queda das filiações católicos no ritmo de 1,2% ao ano e aumento anual de 0,8% dos evangélicos, de 0,15% das outras religiões e 0,23% das pessoas autodeclaradas sem religião.
O resultado desta projeção está apresentado no mesmo gráfico que mostra os católicos com 49,9% das filiações religiosas em 2022 (pela primeira vez abaixo de 50%) e com 38,6% em 2032, e os evangélicos apresentando percentuais de 31,8% e 39,8% no mesmo período. Ou seja, os evangélicos devem ultrapassar os católicos nos próximos 10 anos e contribui para isto o fato de estarem mais bem posicionados, em termos de dinâmica demográfica, na população urbana, pobre, jovem e feminina. As demais religiões devem passar de 5,2% em 2010 para 8,5% em 2032 e o grupo sem religião deve passar de 8% para 13,1% no mesmo período. Sendo assim, haverá mudança na hegemonia entre os dois grandes grupos cristãos, em um quadro de maior de maior concorrência e pluralidade religiosa.
Projeções são sempre sujeitas a revisões, mas o cenário religioso brasileiro na primeira metade do século XXI apresenta uma grande novidade em relação aos 500 anos anteriores, pois o monopólio de um grupo foi substituído por um maior equilíbrio entre as diversas alternativas de crenças. Já não existe nenhuma maioria absoluta, sendo que católicos e evangélicos devem ficar, cada um, com cerca de 40% das filiações em 2032. As outras religiões e as pessoas sem religião devem ter, em conjunto, um peso acima de 20% na mesma data. Sem dúvida é um panorama mais plural e democrático.
O lado negativo acontece em decorrência do aumento da intolerância religiosa, do uso político inescrupuloso da religião, da polarização sectária e dos ataques ao Estado laico. Não cabe no escopo deste artigo analisar todas as implicações do desenvolvimento das Frentes Parlamentares formadas com base na religião e nem o avanço das pautas do conservadorismo moral e do fundamentalismo religioso, que em vários aspectos, colocam em risco os princípios básicos da democracia e atacam, principalmente, os direitos sexuais e reprodutivos da população (Alves; Cavenaghi, 2019).
O futuro da transição religiosa está em aberto, embora, como quase tudo na vida seja marcado por incertezas, podendo desaguar na encruzilhada de um futuro utópico ou distópico. Política e fé podem conviver em paz e em um ambiente de respeito, liberdade e progresso para todas as pessoas ou pode desembocar em uma Teocracia, por exemplo, com um Supremo Tribunal Federal “terrivelmente evangélico”. O filme “Divino amor” do cineasta Gabriel Mascaro, imagina um Brasil majoritariamente evangélico em 2027, predominantemente neopentecostal, triunfalista, individualista e adepto da teologia do domínio, onde o carnaval seria substituído por uma celebração gospel denominada “festa do amor supremo”, com a família no centro de tudo, numa triste escatologia teológica.
Mas nem tanto ao céu, nem tanto à terra. O Brasil, ao longo da história, não tem mostrado propensão para seguir, ininterruptamente, posturas extremistas. Qualquer que seja a nova arquitetura religiosa no século XXI espera-se uma convivência pacífica com base na laicidade de um Estado democrático de direito consolidado. Talvez possamos imaginar o futuro como escreveu Clarice Lispector (1984, p.22):
“Perguntaram-me uma vez se eu saberia calcular o Brasil daqui a vinte e cinco anos. Nem daqui a vinte e cinco minutos, quanto mais vinte e cinco anos. Mas a impressão-desejo é a de que num futuro não muito remoto talvez compreendamos que os movimentos caóticos atuais já eram os primeiros passos afinando-se e orquestrando-se para uma situação econômica mais digna de um homem, de uma mulher, de uma criança”.
Referências:
ALVES, JED et. al. Cambios en el perfil religioso de la población indígena del Brasil entre 1991 y 2010, CEPAL, CELADE, Notas de Población no 104, enero-junio de 2017, p: 237-261
http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/11362/41954/1/S1700164_es.pdf
ALVES, JED. CAVENAGHI, S. La transición religiosa y el crecimiento del conservadurismo moral en Brasil. In: CAREAGA, GLORIA. Sexualidad, Religión y Democracia en América Latina, 2019
CÉSAR, E. M. L. História da evangelização do Brasil: dos jesuítas aos neopentecostais, Viçosa: Ultimato, 2000.
FURTADO, C. Formação Econômica do Brasil. SP: Companhia Editora Nacional, 32. ed., 2005.
GOMES, L. Infelizmente, a história da escravidão é contada por pessoas brancas. El País, 20/11/2019
OLIVEIRA, J. P.; FREIRE, C. A. da R. A. Presença Indígena na Formação do Brasil, Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, LACED/Museu Nacional, 2006.
FPA. Percepções e Valores Políticos nas Periferias de São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2017
LISPECTOR, Clarice. Daqui a vinte e cinco anos. In: A descoberta do mundo, 1984, p. 22
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