O vigor de ícones da MPB na chegada aos 80 anos prova que longevidade é uma bênção
A figura frágil de Cazuza pisou o palco do Canecão superlotado, na noite da quarta-feira 12 de outubro de 1988, em meio ao culto por sua obra, mistura de sedução e tristeza. O fim do cantor e compositor supertalentoso se anunciava próximo. Aos 30 anos, consumido pelo HIV, o artista enfeitiçou instantaneamente a casa de shows (chamada à época de “cervejaria” pela crítica especializada) ao entoar com voz impecável a primeira canção, lotada de contexto:
Vida louca vida, vida breve
Já que eu não posso te levar
Quero que você me leve
Vida louca vida, vida imensa
Ninguém vai nos perdoar
Nosso crime não compensa
Era um hino daquele momento – a epidemia de Aids iniciada na década anterior levaria milhares de pessoas, entre elas muitos personagens icônicos da cultura mundial, como Sandra Bréa, Renato Russo, Freddie Mercury, Michel Foucault. A doença hoje controlada (mas ainda incurável) serviu de emblema para uma era de vidas intensas, quando envelhecer não estava entre os valores mais preciosos.
Cazuza morreu menos de dois anos depois da noite mágica, o Canecão fechou e não tem ninguém aqui se sentindo muito bem. Há tragédias infinitas a chorar no mundo de pandemia, guerras, fome, florestas em chamas, polos derretendo – mas um grupo de gênios brasileiros exibe sua arte século 21 adentro, numa apoteótica exaltação da vida. Todos em torno dos 80 anos, desdobram-se em apresentações arrebatadoras, capítulos recentes de jornadas que parecem não ter fim. Mudou – e agora longevidade faz parte do show.
Assim, plateias hipnotizadas celebram Milton Nascimento na sua “Última sessão de música”, despedida dos palcos de um dos grandes cantores de todos os tempos, após 60 anos de carreira. A caminho dos 80 (em outubro), ele surge sentado, numa figura elegante e envelhecida. Quando solta a voz, o tempo parece não ter passado. A arte rapidamente faz esquecer a perspectiva do fim – outra mágica –, para embalar a plateia em coros seguidos, apaixonados e apaixonantes.
Caetano Veloso comemorou o 80º aniversário em outra apresentação festejada, cantando com os três filhos e a irmã Maria Bethânia, “jovem” de 76. Vozes de um e outro a salvo da ação do tempo, ostentam a serena vitalidade dos que viveram muito.
(Segredo para os que se admiram com a jovialidade do gênio baiano: ele não bebe há praticamente quatro décadas e sustenta dieta controlada, sem imprudências gastronômicas. Quando sai à noite, costuma dirigir o carro, porque pode ser parado sem susto nas blitzes da Lei Seca. Vida longa tem fórmulas simples.)
Chico Buarque, 78, ensaia para o novo show, que estreia dia 6 de janeiro, em João Pessoa, e, por enquanto, percorrerá 11 cidades brasileiras. O grande compositor ainda mantém inquebrável coerência política, comparecendo a protestos, comícios e manifestações – habitué da Cinelândia, defende o voto em Lula, desde sempre.
A permanente atitude e os tempos extremos inspiraram Chico na canção “Que tal um samba?”, resumo mais que perfeito desses dias – mas também um clamor por esperança. A idade não tisna a fé no futuro:
De novo com a coluna ereta, que tal?
Juntar os cacos, ir à luta
Manter o rumo e a cadência
Desconjurar a ignorância, que tal?
Desmantelar a força bruta
Então, que tal puxar um samba?
Puxar um samba legal
Puxar um samba porreta
Depois de tanta mutreta
Depois de tanta cascata
Depois de tanta derrota
Depois de tanta demência
E uma dor filha da puta, que tal?
Puxar um samba
Que tal um samba?
Um samba
Roberto Carlos, 81, segue zarpando com seu navio nos shows que enlouquecem fãs de várias gerações. Em terra firme, roda o Brasil distribuindo suas rosas, repetindo os “detalhes tão pequenos de nós dois”, exaltando o “milhão de amigos” e, sobretudo, “vivendo esse momento lindo”. É tanta energia que, em julho, o Rei deu bronca ligeira num fã mais empolgado, na beira do palco. Quebrou a internet – fenômeno dos dias de hoje.
Gilberto Gil, 80, há dois meses atravessou a Europa em longa turnê, acompanhado de sua família. Na volta, tomou posse como imortal na Academia Brasileira de Letras, apenas o terceiro negro a ter assento na casa em 124 anos (depois do fundador, Machado de Assis, e de Domício Proença Filho).
A energia segue firme. No discurso de posse, o artista atacou “a constituição de uma sociedade brasileira patriarcal, racista, machista e colonial que continua mantendo as relações de superioridade e inferioridade entre as pessoas”. Mais adiante, lembrou a dor pela morte do filho Pedro, em acidente de carro, em 1989, mas de novo olhou para frente com otimismo: “Não desanimo e é preciso resistir sempre. Apesar dos tempos politicamente sombrios que vivemos aposto na esperança contra a treva física e moral. Que haja ao menos a chama de uma vela até chegarmos a toda luz do luar. Se a noite inventa a escuridão, a luz inventa o luar. O olho da vida inventa a visão, doce clarão sobre o mar”.
Vida longa aos gênios – e a nós, para podermos celebrá-los.
FONTE PROJETO COLABORA