30 de abril de 2024 06:23

Cemitério dos Enforcados: uma história da “Revolta de Carrancas”

“Na série “Cemitério dos Enforcados’ vamos destacar nesta 2ª parte,” A Revolta de Carranca”, episodio que obrigou o governo imperial institucionalizar a pena de morte no Brasil condenando escravos que cometesse assassinado contra os escravocratas a forca e suas cabeças  decepadas  e penduradas nos postes em lugares estratégicos como forma de inibir  as revoltas dos escravos  contra a escravidão.

Por João Vicente

Parte 2 – A Revolta de Carrancas: a maior revolta de escravos da província de Minas Gerais

A Revolta de Carrancas ou Levante de Bella Cruz foi uma rebelião de escravos que eclodiu em 13 de maio de 1833, nas propriedades da família proprietária de grandes extensões de terra e escravos, ao sul da província de Minas Gerais. O motim teve inicio na Fazenda Campo Alegre propriedade do Deputado Gabriel Francisco Junqueira, tendo continuidade na Fazenda Bella Cruz, onde toda sua família foi assassinada. No dia da revolta, o Deputado Junqueira se encontrava no Rio de Janeiro. A rebelião dos escravos de Carrancas iria mudar as leis do país.

Antecedentes

A freguesia de Carrancas na província de Minas Gerais apresentava uma enorme população de escravos de origem africana o que explica essa região ser um território voltado para o abastecimento, imensamente dependente do trafico de escravos e próxima dos caminhos velho e novo que ligavam Minas Gerais ao Rio de Janeiro.

A região de Carrancas destacou pelo alto índice de mão de obra escrava, onde 62% ( 2.494) da sua população de 4.053 habitantes eram pessoas escravizadas que trabalhavam na lavoura e criação de gado leiteiro.

Esse numero expressivo de escravos nas fazendas,  já chamava atenção das autoridades e a elite escravocrata da época a preocupação à alusão de riscos de revoltas como a do Haiti, onde os negros haitianos preconizaram a primeira revolução social dos escravos no continente americano que começou em 1791 e terminou em 1804 com a independência da ex.colônia francesa.

As Fazendas Campo Alegre e Bella Cruz pertencia à Família Junqueira eram  proprietários de um número muito grande escravos que chegavam a mais de 30, o que era raro no cenário da época . E em algumas propriedades da região o numero podia chegar a cem escravos.

Em julho de 1831, os escravizados de Carrancas ensaiaram uma tentativa de motim contra os seus senhores movida por rumores que D.Pedro I, os queria livres. Os boatos de uma rebelião se espalharam rapidamente sendo o vigário da freguesia Joaquim Jose Lobo preso e enviado a cadeia de São João Del Rei acusado de persuadir os escravos com tais promessas de liberdade.

Gabriel Francisco Junqueira, o patriarca da família Junqueira, proprietário das   Fazendas Campo Belo e Bella Cruz na freguesia de Carrancas

   Fazenda Bella Cruz, um dos palcos do massacre (extraída do artigo de Marcos Andrade)

O dia do Massacre

O dia começava cedo para os escravos da fazenda Campo Alegre, com um ritmo intenso de trabalho. Como de costume, na parte da manhã, antes mesmo do sol raiar, eles já tinham tirado leite, alimentado os bois, as vacas e os cavalos. Do meio dia em diante trabalhavam na roça, cuidando das lavouras de milho, feijão, arroz, fumo, etc. Muitos desses escravos vieram de diferentes regiões da África, depois de fazerem a dolorosa travessia nos navios negreiros e de serem desembarcados no porto do Rio de Janeiro. Outros tantos, descendentes de africanos, haviam nascidos no Brasil. A adaptação, a sobrevivência em terra estranha, o trabalho pesado, a perda dos laços familiares e culturais exigiam força e determinação para reconstruir uma nova vida, dentro das condições possíveis impostas pelo cativeiro. Muitos conseguiram estabelecer novos laços familiares, preservar alguns aspectos de sua cultura, mesmo sob a vigília constante do feitor e do senhor.

Dois flagrantes de Rugendas do cotidiano de famílias de fazendeiros

As fazendas Campo Alegre e Bela Cruz na província de Minas Gerais onde esses escravos viviam faziam parte de uma grande extensão de terra concedida pela Coroa a João Francisco, português de São Simão da Junqueira. Este chegou na comarca do Rio das Mortes por volta de 1750 e deixou numerosa descendência, dando início à saga de uma grande família do sudeste mineiro, detentora de vastas propriedades e escravaria. Na terceira década do século XIX, as propriedades de seus filhos estavam entre as melhores e as mais bem equipadas, com grande escravaria para os padrões da época (entre 30 e até mais de 100 cativos), centenas de cabeças de gado, cavalos e porcos e vendiam grande parte de sua produção na Corte. A importância socioeconômica da família também se refletiu no campo da política, pois um de seus membros, Gabriel Francisco Junqueira, tornou-se deputado geral da província de Minas por várias legislaturas seguidas ao longo da década de 1830.

Para os escravos parecia que as coisas não tinham mudado muito, ou ao contrário. O vaivém de tropas entre Minas e Rio de Janeiro e o desenvolvimento das propriedades só fez aumentar o ritmo de trabalho. Era mais gado para cuidar, mais roças para plantar e os parcos recursos existentes para os escravos se tornavam mais disputados, pois o número de cativos também crescia, exigência quase que natural para tocar os negócios das fazendas. Alguns deles exerciam a atividade de tropeiro e estabeleciam contato frequente com a Corte. Com isso ficavam sabendo, a seu modo, dos últimos acontecimentos do período das Regências, dos conflitos entre brasileiros e lusitanos e dos significados da liberdade, além de se tornarem responsáveis, não só pelo transporte de mercadorias, mas também de notícias.

A tarde do dia 13 de maio de 1833 seria fatídica e traçaria um novo rumo para alguns escravos das fazendas da família Junqueira. A fazenda Campo Alegre estava sob a responsabilidade do filho do deputado, Gabriel Francisco de Andrade Junqueira, que, na ausência do pai, conduzia todos negócios da fazenda, além de supervisionar o trabalho dos escravos. Naquele dia, seu pai se encontrava na Corte, cuidando de suas funções no parlamento nacional. Antes do meio-dia, como de costume, foi até a roça fiscalizar o trabalho de seus escravos. Como sempre fazia, solicitou a um cativo da casa que arriasse o seu cavalo, montou-o e seguiu em direção à roça. Ao chegar, nada percebeu de estranho e, como sempre, encontrou os escravos preparando a terra, cuidando das lavouras de milho e feijão, dentre outras. A tranquilidade era apenas aparente. Sem condições de oferecer nenhuma reação, ainda montado em seu cavalo, Gabriel Francisco foi surpreendido por Ventura Mina, que o retirou à força de cima do animal, e, juntamente, com Julião e Domingos, deram-lhe várias porretadas na cabeça, levando-o à morte alguns instantes depois.

Naquele instante, alguns dos escravos que estavam trabalhando na roça formaram um grupo e seguiram em direção à sede da fazenda Campo Alegre, todos liderados por Ventura Mina. Além de Julião e Domingos, o grupo agora era bem maior e contava com a participação de Antônio Resende, João, cabundá, André, crioulo, e José, mina, dentre outros. Só não atacaram a sede da fazenda porque um escravo, de nome Francisco, havia saído às pressas em direção à sede da fazenda, montado a cavalo, e avisou aos outros familiares do deputado o que havia acontecido na roça. Os escravos chegaram até ao terreiro da fazenda, mas perceberam que ela estava guarnecida por capitães do mato. Os insurgentes, então, “arrepiaram a carreira tomando a direção da fazenda Bela Cruz”.

Ali se passou o momento mais dramático da revolta, onde os escravos assassinaram todos os brancos ali existentes. Depois de deixarem a fazenda Campo Alegre, os escravos, liderados por Ventura Mina, seguiram para a fazenda Bela Cruz que ficava, aproximadamente, uma légua de distância da de Campo Alegre. Ao chegarem na roça da Bela Cruz, os insurgentes relataram aos outros escravos o que ocorrera em Campo Alegre, convocando-os a fazer o mesmo com os brancos dali. A partir daquele momento o grupo se ampliara bastante, ultrapassando o número de 30 cativos, que logo se dirigiu à sede da fazenda.

 

                                                                                Pintura Invasão da Casa Grande pelos escravos rebelados e fotografia de um escravo

Os escravos invadiram a casa grande, investindo diretamente contra José Francisco Junqueira, sua mulher, Antônia Maria de Jesus, que se recolheram rapidamente e se trancaram num quarto. Mas nem por isso escaparam da violência dos cativos. O escravo Antônio Retireiro buscou um machado e o “entregou a Manoel das Vacas o que ficou trabalhando para arrombar a porta, enquanto aquele (…) trouxe uma pistola carregada saltando o muro, e foi arrombar a outra porta de trás”. Depois de arrombarem a porta do quarto, Antônio Retireiro, com a arma que tinha na mão, disparou na face de seu senhor, ficando mortalmente ferido e “ainda teve que sofrer muitos maiores tormentos, com sua mulher, filha e neta, os quais foram todos massacrados com inaudita crueldade dentro daquele quarto a olho de machado, tendo parte nesta incrível matança todos os escravos vindos de Campo Alegre (…) e grande parte dos da Bela Cruz”. No auto de corpo de delito consta que a mulher de José Francisco Junqueira, além de apresentar ferimentos no rosto, couro cabeludo e grande efusão de sangue, cujas feridas foram feitas com instrumentos cortantes, também se encontrava bastante ensanguentada da cintura para baixo, causando certo constrangimento às testemunhas, impedindo que dessem prosseguimento ao exame.

Ana Cândida da Costa, viúva de Francisco José Junqueira e duas crianças seriam as próximas vítimas dos escravos. Esta foi morta a golpes de foice e cacetadas no quintal da dita fazenda pelos escravos Sebastião, Pedro Congo, Manoel Joaquim e Bernardo. O estado em que foi encontrada era lastimável, pois sua cabeça e rosto estavam irreconhecíveis e não se achava “unida ao corpo”. Já o menino José “foi morto pelo crioulo Andre, e o mesmo Pedro Congo e Manoel Joaquim, a menina Antonia (…) foi morta pelo Manoel das Caldas, Sebastião e Bernardo, e a criança de peito (…) foi morta pelo crioulo Quintiliano que a mandou lançar pelo Euzébio no cubo do Moinho”.

Os escravos utilizaram-se de instrumentos de trabalho – paus, foices e machados – e mesmo armas de fogo para cometer os assassinatos nas duas fazendas. A crueldade com que foram executadas as mortes, relatadas com detalhes no auto de corpo de delito, certamente contribuiu para extremar o pavor em relação às insurreições escravas, reforçar os mecanismos de controle e repressão e revelar o caráter aterrador da violência coletiva em si. Dona Emiliana Francisca Junqueira, por exemplo, “se achava com um grande golpe na cabeça pela parte de trás e logo acima na nuca que lhe tinha separado a maior parte do crânio, além de muitas outras feridas que tinha no rosto e que todas mostravam ser feitas com instrumentos cortantes”.

Os escravos estavam determinados a exterminar todos os brancos daquela propriedade, tanto que parte deles permaneceu na Bela Cruz e preparou uma emboscada para também assassinar o genro de José Francisco, Manoel José da Costa, mandando avisá-lo “do sucesso ali acontecido, e que todos tinham já partido para o Jardim e acudindo ele a casa sem refletir no engano assim que foi entrando pela porteira saíram os que estavam de emboscada, e o mataram com paus”. O mesmo estava na fazenda Campo Alegre, quando foi assassinado o filho do deputado. Alguns escravos ficaram atrás da senzala, outros, atrás de uma casa de carros e um terceiro grupo, encostados no muro, pela parte de dentro. Assim que Manoel José da Costa atravessou a porteira estes “cairam sobre ele e o mataram a bordoadas, e por fim não ficando ainda bem morto deram lhe um tiro”.

Liderados pelo escravo Ventura, o outro grupo seguira em direção à fazenda Bom Jardim, para ali fazerem o mesmo e darem prosseguimento à insurreição. Encontraram, pelo caminho, um agregado da mesma fazenda que se dirigia à Bela Cruz em busca de mantimentos. Os escravos o assassinaram, “sendo o Ventura que lhe deu o primeiro golpe mortal com sua foice e depois o acabou de matar Manoel das Vacas, com um porrete”. Ao chegarem nesta fazenda encontraram forte resistência por parte do proprietário e de seus escravos, sendo o líder Ventura ferido gravemente. João Cândido da Costa Junqueira já havia sido informado dos trágicos acontecimentos de Campo Alegre e Bela Cruz e, rapidamente, armou parte de sua escravaria de confiança e a reuniu em uma sala e ficou à espera dos insurgentes. A maioria dos escravos ficou trancafiado na senzala. Depois de um tempo, Ventura Mina e os insurgentes apareceram, sendo recebidos à bala, o que causou a imediata dispersão do grupo. As informações sobre os combates entre o fazendeiro e seu braço de escravos armados e os cativos insurretos foram escassas nos autos e não mereceram muita atenção nos relatos feitos pelas autoridades da época. O que se sabe é que esse confronto teve como resultado a morte do líder Ventura Mina e de mais quatro companheiros, João Inácio, Firmino, Matias e Antônio Cigano e o fim da revolta. A convocação da guarda nacional e o esquema repressivo foram acionados logo após esse último combate. Embora o líder tenha sido morto, havia um receio de que a insurreição se estendesse, uma vez que muitos escravos se embrenharam nas matas da região, sendo capturados alguns dias depois.

As fazendas Campo Alegre e Bela Cruz (esta última ainda se encontrada edificada, mas bastante modificada, no município de Cruzília) serviram de palco ao trágico acontecimento que, no plano da história, representou um marco das insurreições escravas na província de Minas Gerais e do Império. Para os descendentes dos Junqueira, um massacre, que, se pudessem, apagariam da memória. Para os escravos, representou uma tentativa desesperada e arriscada na busca da liberdade, com consequências também terríveis para dezenas deles. (texto original do site revista Impressões Rebeldes)

Mais Notícias

Receba notícias em seu celular

Publicidade