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Bandidos de Deus

Após expulsar praticantes de religiões afro-brasileiras, traficantes evangélicos passam a perseguir também os católicos

De tradição secular, as festas juninas, quase sempre associadas às paróquias católicas e estendidas em intenso calendário de eventos que avança ao mês de julho, costumam movimentar os bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro. Neste ano, contudo, um inusual silêncio prevaleceu nas comunidades sob o domínio do Terceiro Comando Puro, facção criminosa “convertida ao Evangelho”, nas palavras de um de seus líderes, o narcotraficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão.

Depois de ganhar fama por impedir nas favelas sob seu controle o uso de roupas brancas e o bater de atabaques, além de destruir terreiros e expulsar praticantes de religiões de matriz africana, Peixão decidiu estender sua perseguição aos católicos: “Comunicamos que nosso arraiá está suspenso neste fim de semana. Não teremos missas e atividades em nossa paróquia também. Igreja fechada”. Postado nas redes sociais pela Paróquia de Santa Edwiges, a mensagem dava conta da não realização da festa que acontece há décadas no bairro de Brás de Pina, na igreja que hoje tem em seu muro frontal, em letras garrafais, a pichação “TCP”.

Segundo relatos de fiéis na internet, festas e atividades também teriam sido suspensas nas paróquias de Santa Cecília, em Cordovil, e de Nossa Senhora da Conceição e São Justino, em Parada de Lucas, tudo por conta da intimidação feita por homens armados ligados à facção. Os bairros estão dentro dos limites territoriais do chamado “Complexo de Israel”.

Em 2020, diversos integrantes da ­cúpula do TCP anunciaram sua “conversão” em um templo evangélico. Na se­quência, Peixão decidiu rebatizar o conjunto de cinco favelas: Parada de Lucas, Vigário Geral, Cidade Alta, Cinco Bocas e Pica-Pau. Hoje, essas comunidades formam um bastião na guerra contra o Comando Vermelho, maior facção do Rio, pelo controle da Zona Norte carioca. Juntamente com a imposição da mudança de nome vieram outras novidades, como as dezenas de bandeiras de Israel pintadas nas paredes externas das casas e uma reluzente estrela de Davi fincada no alto de uma das comunidades. Além da perseguição religiosa, há a associação criminosa com alguns pastores para lavar dinheiro do tráfico, alvo das investigações da Polícia Federal.

Paróquias da Zona Norte do Rio de Janeiro foram coagidas a não realizar festas juninas

No curso da Operação Fim do Mundo, a PF prendeu em janeiro o pastor Leonardo Belchior de Souza, acusado de ser laranja do TCP e de participar com membros de sua família de um esquema de envio de armas e drogas para o Complexo de Israel. Casos semelhantes estão sendo investigados e nomes de outros pastores devem vir à tona nos próximos meses, diz uma fonte consultada por CartaCapital, mas a corporação não comenta oficialmente as investigações em curso. A atual forma de agir e de se expandir do TCP representa mais do que uma aliança pontual com igrejas neo­pentecostais. Segundo especialistas, a atuação de Peixão e seu bando representa uma nova faceta do crime organizado no Rio, na qual o tráfico passa a adotar práticas de milícias, como venda de botijões de gás e distribuição de tevê a cabo, além do discurso alinhado à extrema-direita.

“Cada grupo evangélico apropria-se das ferramentas que estão ao seu alcance. Os megatemplos investem em culturas arquitetônicas grandiosas e mídias digitais. As igrejas comunitárias apropriam-se melhor da convivência cotidiana, da atenção às necessidades básicas de fome, roupa, afeto. Já os grupos ligados ao narcotráfico manifestam suas linguagens através da violência, em nome daquilo que acreditam”, observa a pesquisadora Rita Alves, pós-doutora em Planejamento Urbano e Regional pela UFRJ e autora do livro Urbanidade Gospel: Megatemplos Evangélicos na Experiência Urbana, antes de fazer uma importante ressalva: “Essas facções não são maiores que a diversidade religiosa evangélica, que atua para o bem e faz frente contra a intolerância”.

A religiosidade exacerbada de Peixão fez com que, desde o ano passado, ele tenha adotado para si o nome do personagem bíblico Arão, irmão de Moisés, e passado a chamar seu grupo de seguranças de Tropa de Arão. Para Christina Vital, coordenadora do Laboratório de Estudos em Política, Arte e Religião da UFF, Peixão é um personagem emblemático, mas não um caso isolado: “Ele não é o único traficante afinado com práticas antes identificadas com a milícia. Também não é o único a mobilizar a religião como um código que produz identidade de grupos criminais”. A professora diz também que a figura de traficantes que mandam fazer pinturas bíblicas, tatuam Cristo em seus corpos e financiam shows gospel em suas comunidades não é exclusiva do Complexo de Israel: “O que faz diferença no comportamento de Peixão é a crença de que está em uma missão e a sua vinculação imaginária ao povo escolhido de Israel”.

 Intolerância religiosa. O babalaô Ivanir dos Santos e o pastor Henrique Vieira criticam os recorrentes ataques a terreiros e, agora, a paróquias católicas – Imagem: Toninho Tavares/Agência Brasília, Redes sociais e Redes social/Paróquia Santa Edwiges

Talvez ainda perplexa, a comunidade católica, apesar dos inúmeros relatos de fiéis nas redes sociais, não admite oficialmente a intimidação sofrida pelas paróquias próximas ao Complexo de Israel. Procurados por CartaCapital, tanto a Arquidiocese do Rio quanto parlamentares ligados aos eleitores católicos preferiram não comentar o ocorrido. Informalmente, foi solicitada às autoridades maior segurança para as igrejas ameaçadas: “As paróquias de Santa Edwiges, Santa Cecília e Nossa Senhora da Conceição e São Justino estão abertas e com segurança reforçada pela Polícia Militar”, disse em nota a Secretaria Estadual de Segurança Pública.

Já entre os adeptos das religiões de matriz africana, o sentimento é de pavor, com os pais de santo que tiveram seus terreiros destruídos ou foram expulsos preferindo o silêncio, à espera de dias melhores. “A nossa sociedade caminha para um genocídio cultural. Tentam desconstruir a história e a cultura de um povo, de uma nação, e isso é muito perigoso para o Estado laico, a democracia e as instituições da sociedade civil”, afirma Marcelo ­Yango, diretor da Rede Social Agen Afro. Ele é outro a ressaltar que a perseguição religiosa transcende o Complexo de Israel. “Hoje, o Rio vive uma situação calamitosa referente à intolerância religiosa.”

Professor do programa de pós-graduação em História Comparada da UFRJ e conselheiro do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (Ceap), o babalaô Ivanir dos Santos afirma que, embora tenham se intensificado nos últimos anos, as perseguições religiosas promovidas pelo narcotráfico não são exatamente uma novidade no Rio. “A paz religiosa nas comunidades cariocas começou a ser rompida nos anos 1990, quando um traficante resolveu proibir cultos afro na Favela de Acari. Depois, esse fenômeno se repetiu no Morro do Urubu e na Ilha do Governador, onde traficantes mandaram fechar terreiros e proibiram moradores de andar de branco. Nos anos 2000, aconteceu em Lins de Vasconcelos. E essa onda ganha espaço depois em Vigário Geral, na Baixada Fluminense, em São Gonçalo e em Campos”, destaca. Hoje em dia, diversas comunidades passaram a ser objeto de perseguição. “Em um primeiro momento era uma agressão dirigida à umbanda e ao candomblé, depois passou também aos chamados santos católicos populares, que têm imagens dentro de residências ou locais públicos, como São Jorge e São Sebastião.”

Christina Vital concorda que a violência de traficantes contra religiosos de matriz africana vem crescendo desde o início dos anos 2000. É parte de um fenômeno mais geral, no qual traficantes e fiéis do candomblé e da umbanda são apenas alguns dos atores: “Devemos lembrar que a destruição de terreiros e imagens em igrejas católicas também vem acontecendo em várias cidades no Brasil, realizada por ­fiéis de igrejas lideradas por extremistas”. Em todos os casos, são necessárias campanhas e políticas públicas contra a intolerância religiosa. “Líderes evangélicos extremistas devem ser constrangidos quando propagarem discursos de ódio.”

‘A paz religiosa nas comunidades cariocas começou a ser rompida nos anos 1990’, afirma professor da UFRJ

Deputado federal pelo PSOL, o pastor Henrique Vieira diz que existe no Brasil um fundamentalismo evangélico traduzido em um projeto de poder que violenta de forma permanente a democracia e os direitos humanos: “A perseguição significa um atentado contra a diversidade religiosa e a liberdade de culto. Quando se associa intolerância religiosa com controle armado sobre um território, o resultado é violência e coerção, um projeto de eliminação da diversidade”. Após ressaltar que “o campo evangélico é plural, diverso e popular”, o parlamentar afirma que a “maioria esmagadora” dos evangélicos certamente repudia o que acontece no Complexo de Israel: “Esta é uma observação importante para que o campo evangélico seja visto na sua complexidade e na sua diversidade”.

Para o defensor público Pedro ­Carriello, a onda fundamentalista acerta em cheio a alma carioca: “Tradicionalmente, no Rio, ainda que já houvesse essa violência absurda do tráfico, havia respeitabilidade pelo território e pela questão cultural. Era frequente a comunhão dos credos, as pessoas desfilavam nas escolas de samba, frequentavam os centros de umbanda e de candomblé. Não havia mediação do tráfico sobre isso, porque era algo natural essa encruzilhada de várias religiões, inclusive na música, como vemos no samba, no funk e no rap”. O atual problema, acrescenta, é a junção da teoria da prosperidade com uma crescente ideia de dominação no discurso evangélico: “Nessa lógica, é preciso ocupar todos os espaços políticos e comunitários, anular tudo aquilo que não está na sua comunhão, na suposta ideia do plano de Deus. Não se tolera mais nada que seja contrário”.

O controle pelo fuzil é apenas a face mais visível e brutal dessa violência, emenda Vieira: “A lógica do domínio não impera só no Complexo de Israel, ela está em discursos de parlamentares, na boca do ex-presidente Bolsonaro, nos lábios de alguns pregadores que não reconhecem a beleza da diversidade, que demonizam as religiões de matriz africana, que chamam os católicos de idólatras, que não reconhecem outras formas de constituição de família”. Há, portanto, duas facções, uma institucionalizada e outra armada. “A primeira usa a caneta, a segunda maneja o fuzil. Mas o espírito é o mesmo, de não reconhecer a dignidade do outro.” •

Publicado na edição n° 1320 de CartaCapital, em 24 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bandidos de Deus’

FONTE CARTA CAPITAL

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