“É importante que as pessoas contribuam na construção de uma cidade melhor”
Elas são como a água que brota de uma nascente no meio da floresta úmida: silenciosas, adaptativas e constantes, fluem pela histórica cidade de Congonhas, no estado de Minas Gerais, no sudeste brasileiro, em defesa do bairro em que vivem. Marlene de Souza Alves, Maria Veridiana Alves e Teisiane Bernardo Gomes são três mulheres de diferentes gerações da mesma família. A origem delas está enraizada no bairro Pires – uma história familiar que se entrelaça com a do bairro, abrigado ao sopé da serra de mesmo nome. Considerado o mais antigo bairro da cidade mineira, o Pires hoje sofre impactos causados por atividades industriais.
A mais velha da família, Maria Veridiana, de 78 anos, é mãe de Marlene, 54, e bisavó de Teisiane, 11. Quando Maria Veridiana recorda de sua época de infância, ela relata a saudade da serra coberta de floresta nativa e banhada por nascentes, conhecidas como fervedouros (a água saía do lençol freático com muita pressão, dando a sensação de que estava fervendo), além de inúmeras cachoeiras e cursos d’água.
Desde a juventude de Veridiana até a primeira infância de Marlene, o Pires era uma comunidade tranquila, formada por cerca de 200 pessoas, que trabalhavam juntas no cultivo de arroz, feijão, milho, abóbora, batata, mandioca, inhame. Todos os dias, na hora do café, a comunidade reunia-se para colher, cozinhar e comer os alimentos que a terra ofertava como resultado do trabalho comunitário. As vizinhas faziam mutirão para assar broa, bolinhos de milho doce, tradicionais da cultura mineira. Sem a necessidade de cercas, os animais de pastoreio e de criação viviam soltos e faziam parte desse sistema de produção e distribuição comunal.
As casas, construídas com técnicas ancestrais de bioconstrução, como adobe, pau a pique e palha, eram abastecidas por um aqueduto que começava na nascente, localizada ao sopé da serra, e descia até onde hoje fica a escola do bairro, próxima à atual rodovia BR-040, que margeia o bairro. Todos os anos, as pessoas faziam um mutirão de limpeza do aqueduto, em um acordo comunitário que durava vários dias.
“Quando chegava a época da limpeza, todo mundo colaborava. Era a nossa festa, a gente pescava tilápia, um peixinho pequeno. Depois que começou a mineração em larga escala, tudo isso acabou”, relembram Maria Veridiana e Marlene.
Planejando o futuro
Hoje, a geração de Teisiane vive as consequências da industrialização das atividades minerárias. E por isso, sempre que possível, as três mulheres estão presentes em eventos, audiências públicas e reuniões que tratam do futuro do bairro e da cidade. Elas participaram de 11 oficinas e duas audiências públicas promovidas pelo projeto Horizontes Congonhas, cooperação entre ONU-Habitat e Prefeitura de Congonhas para a revisão do Plano Diretor e elaboração do Plano de Mobilidade da cidade, representando as mulheres de sua região na busca pela inclusão de suas demandas na revisão do planejamento urbano da cidade.

Para a iniciativa, é fundamental ter uma participação de gênero igualitária, para garantir que o planejamento da cidade de fato seja inclusivo para todas as pessoas. Dos 470 participantes de 16 eventos, 52% eram mulheres; e das 761 opiniões recebidas online 72% foram enviadas por mulheres – garantindo que as contribuições coletadas em cada região da cidade levem em conta o viés de gênero.
Nesse contexto, Marlene cumpre um papel fundamental como representante movimentos populares no Núcleo Gestor do projeto — um comitê composto por representantes do poder executivo, de movimentos populares, de entidades profissionais e acadêmicas, do empresariado e de instituições não-governamentais, que monitora todo o processo de revisão do Plano Diretor e elaboração do Plano de Mobilidade, até a finalização do trabalho, previsto para junho de 2025.
“Tem me chamado atenção as discussões a respeito da arborização urbana, da qualidade do ar, da mobilidade urbana, do desenvolvimento sustentável e de reduções de riscos. É importante que as pessoas contribuam na construção de uma cidade melhor”, afirma Marlene.
Os horizontes de Congonhas
Localizada ao norte do município de Congonhas, a serra do Pires é um maciço rochoso formado há milhões de anos, que faz parte da paisagem frontal do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, tombado como patrimônio mundial pela Unesco em 1985. As estátuas dos 12 profetas que fazem parte do Santuário, esculpidas em pedra sabão pelo Mestre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, foram posicionadas de modo que olham, apontam e projetam seus corpos para o horizonte, delimitado pela serra.

Além da importância paisagística, a serra do Pires está inserida na Reserva da Biosfera do Espinhaço, uma área com mais de 10 milhões de hectares, reconhecida e demarcada pela Unesco em 2005. Mesmo assim, a serra ainda não está legalmente protegida pelo município, algo que pode mudar com o Plano Diretor, que deve apresentar uma proposição para enfatizar a sua importância histórica, cultural e ambiental, e legalizar a sua proteção socioambiental.
Além de emoldurar a paisagem do bairro de Maria Veridiana, Marlene e Tisiane, a serra é um componente histórico que faz parte da memória afetiva da comunidade. Ao longo das gerações até os dias de hoje, a água de suas nascentes abastece o bairro, e as plantas nativas que crescem em suas encostas são usadas como medicina e alimento. Inclusive, é habitat de dezenas de espécies endêmicas, como a planta congonha, que dá nome ao município e é utilizada como chá medicinal.
Há cerca de 60 anos, na juventude de Maria Veridiana, a comunidade era formada por casas espaçadas e conectadas por pequenas trilhas na mata. A maior parte da locomoção das pessoas na região era feita por meio dessas trilhas, que seguiam em diferentes regiões, passando pela serra do Pires. “A gente ia a pé, pela serra, até o rio onde hoje é o Parque da Cachoeira, onde tinha uma horta. Todo mundo se ajudava, era muito bom”, relembra.
“Ninguém imaginava que a paisagem ia mudar tanto”, conta Maria Veridiana.
Sete décadas de transformações
A rotina comunitária do Pires mudou a partir de 1957, com a pavimentação da rodovia BR-040, fazendo chegar ocupantes de outros lugares. Ao longo das três décadas seguintes, casas foram construídas e ruas foram abertas sem planejamento.
Em 1994, o bairro já consolidado viveu mais uma transformação: foi cortado ao meio pela ferrovia de escoamento da produção de minério de ferro. Hoje, há quase 3 mil pessoas morando no Pires, que não possui infraestrutura de saneamento, o que agrava a situação das nascentes e das águas que correm pelo território.
Ao encarar o contexto mais recente do bairro, Marlene tornou-se líder comunitária, e hoje atua na associação de moradores do bairro. “Como mulher, aprendi a duras penas a ter mais autonomia, paz e liberdade para fazer as minhas coisas. Sempre que houver uma oportunidade de participar de eventos com a minha comunidade e com as moradoras e moradores da cidade de Congonhas, eu estarei presente e atuante”, afirma.
Marlene e sua família reconhecem a importância de fazerem parte desse projeto, sendo exemplo e representando as mulheres de sua comunidade para pensar o futuro de sua cidade de forma mais sustentável e inclusiva.
“Temos muitos sonhos para o bairro do Pires e para a nossa cidade, a história da nossa família está enraizada aqui, e por isso vou sempre participar de momentos de planejamento para uma vida melhor para todas as pessoas”, conclui Marlene.

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FONTE: BRASIL UN ORG