×
audiência pública

Órgão secular terá ‘terapia’ Espanhola

Construído entre 1700 e 1710 na Alemanha e desde 1753 na mais antiga cidade de Minas, instrumento de igreja de Mariana vai ter seus ‘pulmões’ recuperados

Ao longo de grande parte de sua história, Mariana, primeira vila, cidade e diocese de Minas, teve os dias embalados ao som do órgão Arp Schnitger, construído entre 1700 e 1710 na Alemanha, e presente, desde 1753, na Catedral Basílica Nossa Senhora da Assunção (Sé), de Mariana, na Região Central de Minas Gerais. Monumental, de grande beleza artística e instalado, desde o início, em pequena “varanda” interna projetada por Manuel Francisco Lisboa, pai de Aleijadinho, o instrumento é o único do seu tipo – e quilate, por se tratar de uma joia rara acústica – fora da Europa. Amanhã (14/3), haverá novo capítulo nessa trajetória, com o envio, a uma oficina especializada na Espanha, dos dois someiros ou caixas que armazenam e distribuem para os tubos o ar produzido pelos foles do órgão musical.

“Eles são o pulmão do órgão, a parte invisível do instrumento, que tem 1.039 tubos e dois teclados”, conta a organista e regente da Sé, Josinéia Godinho, mostrando os someiros feitos em carvalho, em Hamburgo, no Norte da Alemanha. Ao lado do pároco e reitor da catedral, padre Geraldo Buziani, a musicista explica a necessidade de envio à oficina, na Espanha, para o trabalho do organeiro francês radicado no país ibérico, Frédérick Desmottes, que é justamente o de execução do reparo nas peças: “Há quase uma década, devido à restauração da catedral e depois à pandemia, o Arp Schnitger está mudo, longe das cerimônias litúrgicas e apresentações artísticas.”

Com o fechamento da catedral em 2016, a parte sonora do órgão foi desmontada e armazenada, enquanto a caixa (do instrumento) continuou na igreja, passando também pelo restauro dos elementos artísticos. Já no fim de 2022, na última fase de preparação para a reabertura do templo, se detectou o ataque de cupins nos dois someiros, impossibilitando a remontagem. “Foi feita a descupinização, mas se tornam necessários reparos e a remontagem do órgão por especialista, serviço que vai demandar três meses. Em vez de Frédérick Desmottes passar esse período em Mariana, ele achou melhor que enviássemos os someiros para sua oficina, em Cuenca, na qual existe todo o material, ferramentas e instalações adequadas”, destaca a organista e regente.

Padre Geraldo informa que o serviço custará R$ 1,2 milhão, recurso do Fundo Municipal de Cultura, com aval do Conselho Municipal do Patrimônio Cultural de Mariana (Compat), e apoio da prefeitura local, Arquidiocese de Mariana e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Todo o transporte, de Mariana, na Região Central de Minas, (via Confins) ao destino final (Cuenca), será acompanhado pela arquiteta e especialista em cultura e arte barroca, Deise Cavalcante Lustosa. A expectativa é de que moradores e turistas possam ouvir o divino som do Arp Schnitger em 8 de dezembro, data consagrada a Nossa Senhora da Conceição. “Neste ano, a Arquidiocese de Mariana celebra 280 anos”, orgulha-se padre Geraldo.

Expectativa é de que moradores e turistas possam ouvir o tradicional som do  Arp Schnitger em 8 de dezembro, data consagrada a Nossa Senhora da Conceição
Expectativa é de que moradores e turistas possam ouvir o tradicional som do Arp Schnitger em 8 de dezembro, data consagrada a Nossa Senhora da ConceiçãoAlexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Espetáculo da fé

O órgão da Sé de Mariana, batizado com o nome de Arp Schnitger (1648-1719), radicado em Hamburgo e um dos construtores desse tipo de instrumento mais celebrados de sua época, se apresenta como espetáculo em todos os sentidos. Logo após ver os someiros na sacristia, a equipe do EM, guiada pelo padre Geraldo e por Josinéia, subiu até a tribuna ao lado do coro, no segundo pavimento da igreja, onde fica o instrumento ladeado por dois anjos e com um maior no topo, chamado de “Anjo do trompete”.

O reitor e pároco chama a atenção para o forro da nave, o qual foi adequado, com uma concavidade, em meados do século 18, para receber o instrumento de mais de sete metros de altura. “Esta parte aqui, que chamamos de ‘varanda’, foi projetada pelo português Manuel Francisco Lisboa (1697-1767), pai de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (1738-1814)”, mostra o religioso, que faz questão de mencionar o carinho da comunidade com o órgão musical mais antigo em funcionamento do país. “Em períodos em que ficou parado, ninguém nunca levou sequer uma peça, ao contrário de outras localidades país afora”, acrescenta Josinéia.

Considerado um dos instrumentos mais valiosos do Brasil, contando com projeção e interesse internacionais, o órgão da Sé faz parte de um pequeno acervo de pouco mais de 30 instrumentos da manufatura do grande organeiro estabelecido em Hamburgo. “Hoje em dia, se comparam os órgãos construídos por Arp Schnitger, em termos de qualidade e importância para a história da música, aos violinos de Stradivarius”, diz Josinéia, em referência ao artesão e luthier italiano Antonio Giacomo Stradivari (1644-1737), famoso pelos seus instrumentos de corda.

Em 2025, Arquidiocese de Mariana celebra 280 anos, com empenho da organista e  regente Josiéia Godinho e do Padre Geraldo Buziani para a revitalzação da catedral
Em 2025, Arquidiocese de Mariana celebra 280 anos, com empenho da organista e regente Josiéia Godinho e do Padre Geraldo Buziani para a revitalzação da catedralAlexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Trajetória

A história do ícone da Catedral da Sé causa tanto fascínio como seu som angélico agrada os sentidos, conforme os repórteres puderam constatar em outras ocasiões. Após ser construído em Hamburgo, entre 1700 e 1710, foi instalado provavelmente em uma igreja franciscana portuguesa e, posteriormente, colocado à venda em 1748. Adquirido pelo rei de Portugal, Dom João V (1689-1759), das mãos do organeiro João da Cunha, para atender a uma solicitação do primeiro bispo de Mariana, Dom Frei Manoel da Cruz (1690-1764), foi enviado de presente à diocese, por Dom José I (1714-1777, filho de João V). “Pela estada em Mariana, o instrumento foi protegido de desastres naturais e guerras, o que fez dele também um dos órgãos com grande porcentagem de material original do século 18, diferente da maioria dos outros restantes na Europa. Importante lembrar que ele veio com um manual, com todos os detalhes para montagem”, informa padre Geraldo.

Diante do instrumento, vale a pena fazer momentos de silêncio, para, em seguida, ouvir mais explicações técnicas. Tem 17 registros (fileiras de tubos com timbres e alturas diferentes), distribuídos em dois manuais (teclados). Mistura de forma muito harmônica as influências portuguesa e alemã: a fachada, chamada de “Hamburguesa”, representa uma marca registrada de Arp Schnitger e sua escola, assim como a divisão em dois manuais.

“O fato de alguns dos registros serem partidos (podem ser acionados inteiros, somente na mão direita ou somente na esquerda) atesta a influência de Portugal e sua música. Também a decoração externa do órgão testemunha sua estada em Portugal: é feita em motivos chineses (chinesices) em tons de vinho, verde escuro e dourado, tudo indica resultar da forte influência da arte das colônias asiáticas no século 18. O anjo que toca o trompete, bem no alto da caixa, porta um estandarte com dois braços em cruz: o símbolo da ordem franciscana. A chinesice (palavra derivada do francês ‘chinoiserie’) é o conjunto de pinturas que recriaram, no século 18, em igrejas e capelas de Minas, os pagodes ou pagodas (tipo de torre com fins religiosos comuns na China e outros países da Ásia), animais e paisagens.

Histórias sobre o instrumento vêm à tona durante a visita à Catedral da Sé. Após muitos anos de funcionamento ininterrupto, nos quais por algumas vezes recebeu algumas modificações visando adaptá-lo ao gosto vigente na época, o órgão da Sé, por volta da década de 1930, parou de funcionar.

Somente na década de 1970, a partir de pesquisas sobre sua procedência – e do reconhecimento de sua importância para o acervo de instrumentos musicais não só brasileiro, mas também mundial –, houve um esforço concentrado para a restauração do instrumento.

“Nesse primeiro trabalho, o grande mérito foi trazer o instrumento de volta à vida, usando as conquistas técnicas da época, sem destruir os sinais das fases anteriores, valiosíssimos no caso de uma restauração posterior com enfoque mais histórico”, esclarece Josinéia.

Entre 2000 e 2002, passou por segunda restauração, que visou trazê-lo ainda mais próximo ao estado original. A afinação foi mudada para um sistema mais condizente à época de sua construção, e alguns registros foram reconstruídos de acordo com modelos de época.

O nome de Art volta a ser mencionado pela organista. “A produção dele, além de ser de altíssima qualidade, também foi extremamente profícua: chegou a trabalhar em cerca de 170 instrumentos. Entre construções, reformas e ampliações, os exportou para vários países da Europa, entre eles Holanda, Inglaterra, Espanha, Portugal e Rússia. De todas estas obras, nos restaram ainda 30, inteiras ou parcialmente conservadas e, em Mariana se encontra a única delas fora da Europa”, conclui. 

FONTE: ESTADO DE MINAS

Receba Notícias Em Seu Celular

Quero receber notícias no whatsapp