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Cultura, municípios, pobreza e o Ministério Público

Críticas a shows em cidades pobres ignoram os impactos positivos da cultura na economia e na dignidade social.

Passadas as festividades juninas e julinas, chovem ACPs – ações civis públicas nas varas Cíveis de pequenos municípios, entoadas em uma só tecla: show caro em cidade pobre? Não pode! É “política do pão e circo”.1 

Com a ACP no Fórum, é hora da manchete no jornal na mesma toada: “Justiça anula” show de artista na cidade. Por detrás desse enredo pronto, uma nova presunção jurídica vem à praça: cidade pequena não pode ter show grande.

O fenômeno não é novidade e chamou nossa atenção, em 2022, quando uma das cidadelas mineiras mais ricas culturalmente2 foi obrigada a cancelar a contratação do show de dois artistas sertanejos da cena musical nacional.

De lá para cá, nada mudou. O desejo de levar grandes nomes da cultura e do entretenimento para cidades pequenas e pobres está cada vez mais difícil. 

Seria uma vitória dos órgãos de controle externo e da moralidade pública? O bem estaria vencendo o mal? A resposta é NÃO.

Portanto, antes de você sair maldizendo uma prefeitura de cidade pequena em suas escolhas para eventos culturais, ou de conjurar artistas e seus cachês, que tal enxergar e conhecer o outro lado dessa história?

Comecemos pelo aspecto econômico que, hoje em dia, é o mais eloquente – e tem sido o queridinho do Judiciário. Você já parou para pensar o quanto uma atração de peso agrega a uma cidadela em apenas um dia de apresentação?

Em 1999, um estudo econômico do pesquisador Ayele Gelan quantificou quanto dinheiro novo ingressou, em Londres, por conta de um torneio de golfe. Apurou-se que o dispêndio de US$ 6 milhões de dólares atraiu outros US$ 20,8 milhões à capital da Inglaterra.3

Londres não é uma currutela, mas a equação de Ayele se reproduziu, mais de 25 anos depois, em um dos modelos de crescimento mais vantajosos para vielas urbanas isoladas de polos prósperos ou de conurbações com capitais.

A conta é simples. Grandes eventos, em pequenas cidades, propiciam um dos mais valiosos ativos intangíveis à economia local: público consumidor externo, além da movimentação excepcional da população interna.4

Essa metodologia foi replicada em centenas de cidades pelo mundo, grandes e pequenas. De Gniewkowo (na Polônia)5 a Bloemfontein (na África do Sul),6 Aguadas (na Colômbia)7 e Inverell (Austrália).8 Os resultados foram os mesmos.

UNESCO e Banco Mundial tanto estimulam essa ação que estruturaram, após a pandemia de Covid-19, a plataforma “Cidades, Cultura e Criatividade”9 para que países pobres se atentem à importância da cultura em suas finanças locais.

É um dos segmentos econômicos que mais cresce no mundo e emprega “mais pessoas com idades entre 15 e 29 anos que qualquer outro”, além de conectar rincões isolados às oportunidades de “vitalidade urbana, inclusão social e inovação”.10

Em 2023, durante reunião do G20, um painel da UNCTAD/ONU sobre economia criativa destacou que as cidades mais pobres são as que devem receber esforços redobrados em investimentos para cultura e inovação.

Em 2025, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, afirmou, em audiência na Câmara dos Deputados, que “para cada 1 real que se injeta em cultura, volta R$1,60, R$1,70, dependendo da dimensão do evento”.

Os estudos científicos mais atuais11 atestam, entre impactos diretos e indiretos, formais e informais, a variação positiva/significativa nas receitas de alimentação, vestuário, transporte, hospedagem, varejo e mão-de-obra temporária.

Mas, na contramão da economia criativa, a contratação de plataformas artísticas em pequenas cidades brasileiras tem sido avaliada, pelo parquet, como desvio orçamentário, oportunidade eleitoreira e falta de probidade.12

Após examinar pelo menos uma dezena dessas ACPs, percebemos que, em nenhuma das linhas acusatórias do Ministério Público, foi cogitado o ganho da economia local com a contratação. Aliás, cultura é descrita como gasto/despesa!

A equação ministerial faz caminho contrário ao da UNESCO. Se o preço cobrado pelo(s) artista(s) é alto e a cidade tem disponibilidade orçamentária baixa, a cultura não pode ser destinatária desses valores, mas apenas outras rubricas.

No Brasil, estudos como o de Ayale ainda são escassos na área de cultura ou economia e, ainda que baseados em dados secundários, concluem no sentido da literatura estrangeira, destacando os ganhos de priorizar eventos interioranos.13

Para cidades pobres, pequenas e sem atrativos turísticos inatos (i.e., excluindo-se as litorâneas ou dotadas de monumentos naturais significativos), o estímulo à cultura tende a operar milagres econômicos a curto e médio prazo.14

Os mais críticos e céticos, por sua vez, ainda assim, insistirão na estigmatizante afirmação de que no Brasil, isso é diferente! Ou em cidades pequenas, fazem tudo errado (o autor deste texto já ouviu essas frases inúmeras vezes, acredite).

Dificultar o incremento de investimento municipal em cultura é um retrocesso parecido com o que Daron e James denominaram de hipótese da ignorância, uma presunção falha de que lideranças, em localidades pobres, são incompetentes.15

Até aqui, colocar o dinheiro em primeiro lugar foi proposital. Isso porque, para nosso desfecho de análise (jurídico-sociológica), interferir na escolha de munícipes pobres, quanto às suas opções culturais, tem grande traço de violência.

Para Mario Luis Small16 e sua literatura sobre pobreza,17 a intromissão em custos e preferências culturais dos mais pobres é tão prejudicial quanto lhes reduzir saúde, educação e finanças. É o símbolo de que, ali, só a riqueza lhes trará alegrias.

Você já parou para pensar que um milhão de reais, hoje, é o faturamento diário de uma boate chique, de uma charutaria requintada ou de um jantar privado que você se gabou de ter ido, com pouco mais de 100 pessoas ao seu redor?

Observe que o cachê de um(a) cantor(a) pode valer esse mesmo milhão, em um dia, tão só pela habilidade dele(a) atrair grande público às suas apresentações,18 de milhares de pessoas (aliás, não tão ricas quanto você).

Todavia, com esse mesmo dinheiro, exemplificativamente, o Ministério Público não permitiu levar diversão a 50.000 pessoas dos arredores da cidade de Zé da Doca, no Maranhão , nem reavivar o comércio e economias locais.

O cachê ainda responde à lei de demanda vs. escassez. Agendas dos maiores expoentes atendem a pedidos ensandecidos, com volume sobre-humano e de alto risco (foi o que custou a vida de Marília Mendonça e tantos outros abatidos na estrada).

São pesos e medidas muito diferentes quando o parquet exige ajuste orçamentário perfeito às pequenas localidades, em um país onde quase nenhuma unidade da Federação é fiel ao traço da LRF – lei de responsabilidade fiscal, inclusive as mais ricas.

A Constituição desenhou esta República numa integração cultural (art. 4º, parágrafo único) que protege seus entes, inclusive os municípios (art. 23, III e V) que têm acesso garantido, incentivado e indistinto à cultura (art. 215).

A intervenção judicial sobre a autonomia político-administrativa de um gestor municipal que tem disponibilidade de caixa para arcar com uma meta pública de cultura afeta o movimento pleno da cultura nacional e suas manifestações.

Sob a lente de Mario Small (que parece ter escrito para autoridades de controle brasileiras),19 é possível enxergar que essas ACPs travam a conexão do pobre interiorano com o que seja grande, graças a uma presunção estereotipada.

Suspenda-se o contrato, diz o juiz acatando o pedido do promotor de Justiça, mas saibamos que, ali, também um povo está sendo calado quanto ao que almeja para seu deleite cultural.

Os campeões de público nacionais podem ser caros e não agradarem aos ouvidos de quem vive na capital, porém, são os que detém, em sua arte, a expressão mais subjetiva de nosso povo para viabilizar a celebração da vida.20

Peterson e Densley correlacionaram estudos de caso no qual a falta de interação humana e a pouca valorização das artes geram episódios graves de violência urbana, aumentando depressão, ansiedade e perda de saúde mental coletivas.21

Jenny Roe e Layla McCay, na famosa obra “Cidades Restaurativas”, relatam que a falta de conexão da cidade com tendências culturais afeta gravemente os sentidos elementares de autorrealização, bem-estar e inclusão de seus habitantes.22

A musicografia nacional também traduziu essa lógica restaurativa com os Titãs,23 na advertência de que não basta comida nem dinheiro, sem prazer para aliviar a dor… inteiro e não pela metade…, com diversão e arte.

Agora, é a vez do cachê dos artistas em festas juninas. Amanhã, seguindo esse rigor, serão as invernadas gaúchas, as rodas de samba, os bailes de hip hop ou até mesmo as cantorias poéticas do sertão.

Tudo está perdido? Não. O Ministério Público e o Tribunal de Contas de Pernambuco trocaram intervenções ex post por um painel de transparência  colaborativo que, ex ante, orienta modelagens seguras para os festejos juninos.

A iniciativa é brilhante, pois, presume a boa-fé dos munícipes em disputar pelo melhor ao seu povo, afastando-se da soberba, e viabilizando a entrega de bom entretenimento, alegria, lazer e cultura aos seus concidadãos.

É tempo de promotores e julgadores contemporizarem argumentos prontos e preconcebidos com a realidade da economia criativa para não matarem o direito de escolha que tem cada cidade brasileira sobre os festejos de seu povo.

Venhamos e convenhamos, que o pão e circo é discurso raso e inapropriado, frente à grandeza da cultura brasileira e o desejo puro de nossa gente que, mesmo pobre, também quer (e tem direito de) passar uma grande noite em suas vidas.

Referências

1  A referência é feita por uma promotoria de Justiça, em Ação Civil Pública movida contra o município goiano de Cidade Ocidental (processo n. 5462130-66.2025.8.09.0164-TJ/GO).

2 Conceição do Mato Dentro, em Minas Gerais, foi onde nasceu José Aparecido de Oliveira, o primeiro ministro da Cultura do Brasil. Um dos berços culturais mineiros, tem como uma de suas manifestações culturais mais conhecidas o centenário “Jubileu do Senhor Bom Jesus de Matosinhos”, festejo com mais de 100 mil pessoas, reunidas em apenas dois dias. O legislativo mineiro reconheceu, por lei (24.990/24), o relevante interesse cultural dessa manifestação. O município não pôde contratar artistas da cena nacional para o Jubileu de 2022.

3 GELAN, Ayele. Local economic impacts: the British open. Annals of tourism research, v. 30, n. 2, pp. 406-425, 2003.

4 VAUGHAN, D. R.; FARR, H.; SLEE, R. W. Estimating and interpreting the local economic benefits of visitor spending: an explanation. Leisure studies, v. 19, n. 2, p. 99, 2000; e, REUSCHKE, Darja; MACLENNAN, Duncan. Housing assets and small business investment: exploring links for theory and policy – Regional studies, v. 48, n. 4, p. 746, 2014.

5 SRODA-MURAWSKA, Stefania; BIEGANSKA, Jadwiga. The impact of cultural events on city development: the (great?) expectations of a small city. p. 941-950, 2015.

6 SCHOLTZ, Marco; VIVIERS, Pierre-Andre; MAPUTSOE, Limpho. Understanding the residents’ social impact perceptions of an African Cultural Festival: the case of Macufe. Journal of tourism and cultural change, v. 17, n. 2, p. 166-185, 2019.

7 DURAN, Fabio Fernando Moscoso; MEJIA, Julieta Ramirez; VALBUENA, Nelson Andrés Andrade. Economic and Social Affects in the Culture and Arts Industries: The Case of Colombian Festivals. School of Postgraduate Studies Universidad EAN, v. 3, n. 2, p. 42, 2014.

8 GIBSON, Christopher; STEWART, Anna. Reinventing rural places: The extent and impact of festivals in rural and regional Australia. University of Wollongong, p. 29, 2009.

9 UNESCO. WORD BANK.

10 Op cit. p. 14 e 16.

11 ROSSINI, Luca et al. Exploring the socio-economic impact of small and medium-sized sports events on participants, tourism and local communities: a systematic review of the literature. Journal of Sport & Tourism, v. 28, n. 4, p. 198, 2024.

12 Este é o resultado da leitura de dez ACPs ajuizadas entre os anos de 2024 e 2025, de dez diferentes Estados brasileiros, sendo duas para cada região do País (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul).

13 FARIAS, Edson. Economia e cultura no circuito das festas populares brasileiras. Sociedade e Estado, v. 20, p. 687, 2005.

14 Dados da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos, sobre o impacto de empreender nas cidades, voltado para micro e pequenas empresas, de 2015.

15 ROBINSON, James A.; ACEMOGLU, Daron. Why nations fail: The origins of power, prosperity and poverty. London: Profile, p. 48, 2012.

16 Professor panamenho da Universidade de Columbia.

17 SMALL, Mario Luis; HARDING, David J.; LAMONT, Michèle. Reconsidering culture and poverty. The annals of the American academy of political and social science, v. 629, n. 1, p. 14, 2010.

18 TOWSE, Ruth. The singer or the song? Developments in performers’ rights from the perspective of a cultural economist. Review of Law & Economics, v. 3, n. 3, p. 759, 2007.

19 Texto de Mario Small em LAMONT, Michèle et al. How culture matters: Enriching our understanding of poverty. The colors of poverty: Why racial and ethnic disparities persist, v. 4, p. 92, 2008.

20 SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Nova Fronteira, p. 74, 2023.

21 PETERSON, Jillian; DENSLEY, James. The violence project: How to stop a mass shooting epidemic. Abrams, p. 28, 2021.

22 ROE, Jenny; MCCAY, Layla. Restorative cities: Urban design for mental health and wellbeing. Bloomsbury Publishing, p. 162, 2021.

23 ANTUNES, Arnaldo; FROMER, Marcelo; BRITTO, Sérgio. Comida, WEA. 1987.

FONTE: https://www.migalhas.com.br/depeso/435864/cultura-municipios-pobreza-e-o-ministerio-publico

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