Não foi a primeira vez que o governador Romeu Zema desferiu publicamente sua combinação de ignorância e preconceito contra pessoas em situação de rua.
Recentemente, pela segunda vez, comparou os moradores a carros estacionados em locais proibidos e sugeriu medidas coercitivas, como a remoção forçada das ruas. Chegando a afirmar que “é proibido dormir em via pública” e questionando se a população deveria tolerar pessoas em situação de rua perto de comerciantes, equiparando-as a um problema de segurança.
Tais comentários demonstram não apenas insensibilidade, mas também um desconhecimento profundo sobre a complexidade do fenômeno da população em situação de rua, reforçando estigmas e visões simplistas que culpabilizam os indivíduos por sua situação, ignorando fatores estruturais.
Esse tipo de posicionamento reflete percepções equivocadas presentes em parte da sociedade, que frequentemente acredita que simplesmente remover as pessoas da rua ou construir moradias sem estratégias de integração social resolveria o problema.
Contudo, a realidade exige compreender a situação da população em situação de rua como um problema social profundo, que vai muito além de estigmas, opiniões superficiais ou medidas punitivas.
População em situação de rua em Minas: retrato de desigualdades estruturais
De acordo com estudo da Fundação João Pinheiro em parceria com o Núcleo Simone Albuquerque (NUSA), a população em situação de rua em Minas Gerais atualmente é de 26.324 famílias, sendo ela majoritariamente masculina (87,8%), adulta, com maior concentração entre 30 e 49 anos, e em grande parte preta ou parda (78%).
O nível educacional é baixo, sendo que mais da metade possui apenas o ensino fundamental incompleto. Quanto à origem, quase metade nasceu no município em que vive, mas há presença significativa de migrantes internos e alguns imigrantes.
Muitos permanecem nessa condição por longos períodos, alguns por mais de dez anos, e os motivos incluem problemas familiares, desemprego, uso de álcool e drogas e, sobretudo, a falta de moradia. Estudos mostram que essas pessoas não estão nas ruas por preguiça, como frequentemente alegam discursos simplistas – incluindo os de Zema –, mas devido a fatores estruturais: precarização do trabalho, rompimento de vínculos familiares, violência doméstica e desigualdades raciais.
Removê-las de forma coercitiva ou criminalizá-las não resolveria o problema, apenas deslocaria a vulnerabilidade para outro lugar.
O que já foi feito e o muito que ainda falta fazer
O relatório também realizou um levantamento sobre as políticas para a população em situação de rua em Minas Gerais que começaram com a Lei Estadual n° 20.846, em 2013, que estabelece princípios, diretrizes e objetivos priorizando ações de moradia como primeira etapa de atendimento.
Desde então, foram criados comitês intersetoriais, como o CIAMP-Rua (2015) e o Comitê Pop Rua/Jus (2022), além da Diretoria Estadual de Políticas para a População em Situação de Rua (2023), com o objetivo de articular ações entre poder público, sociedade civil e órgãos de justiça.
Outra iniciativa realizada em Belo Horizonte foi o projeto “Moradia Primeiro” , que surgiu da parceria entre o Ministério Público e a Pastoral Nacional do Povo da Rua. Inspirado no modelo internacional “Housing First”, o projeto oferece moradia imediata e segura para pessoas em situação crônica de rua, com acompanhamento individualizado e multidisciplinar para apoiar a permanência no lar e a reintegração social.
Implementado em Belo Horizonte desde 2022, o programa garante aluguel solidário, acesso a serviços de saúde, educação e convivência comunitária, além de mobilizar a comunidade por meio do “armazém do bem-viver”, que fornece móveis e utensílios.
Com foco em dignidade, cidadania e fortalecimento de vínculos familiares e sociais, o projeto considera a superação da rua um processo gradual, indo além da moradia ao oferecer suporte contínuo para reconstrução de vidas e integração plena na comunidade.
Embora iniciativas como a criação de comitês intersetoriais e o projeto “Moradia Primeiro” representem avanços importantes no enfrentamento da situação de rua em Minas Gerais, ainda persistem desafios significativos. A implementação das políticas enfrenta limitações institucionais, orçamentárias e de coordenação, como mostrou o relatório do NUSA.
Não bastasse ter que lutar contra falta de recursos e apoio, as iniciativas ainda têm sua legitimidade sistematicamente minada pelo tipo de discurso que exala, no século XXI, o mofo do velho higienismo centenário, não importa quão novo seu protagonista queira aparentar. Com isso, a população em situação de rua continua frequentemente agrupada com outros grupos vulneráveis, o que fragiliza a continuidade e a efetividade das ações.
É necessário consolidar estratégias integradas, ampliar recursos e fortalecer a participação social para garantir a efetividade de tais políticas.
Mais do que tirar da rua: é preciso soluções estruturais
H.L. Mencken, notório polemista e frasista norte-americano dizia que “para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”.
Enfrentar a situação de rua em Minas Gerais é um desafio complexo, que vai muito além da simples remoção de pessoas ou de medidas punitivas – como a sugestão do governador Zema de “guinchar” moradores de rua.
O caminho para soluções efetivas passa, em primeiro lugar, por uma mudança de perspectiva: o reconhecimento de que as pessoas em situação de rua são sujeitos de direitos a serem respeitados e não objetos estorvando a vida de “comerciantes que pagam impostos”. Sua situação de extrema vulnerabilidade significa que devem ser protegidos e apoiados em novas perspectivas de vida, e não ser removidos ou descartados.
Desta mudança resultarão políticas orientadas pela manutenção e fortalecimento dos vínculos sociais e familiares, pelo acesso a moradia, serviços de saúde, educação e trabalho, e pela intersetorialidade das políticas públicas, garantindo que diferentes áreas do governo e da sociedade civil atuem de forma coordenada.
Somente assim será possível criar estratégias que respeitem a dignidade da população em situação de rua, promovam inclusão social e assegurem direitos de forma contínua e sustentável, evitando que estigmas e visões simplistas prejudiquem ainda mais aqueles que já vivem à margem da sociedade.
Bruno Lazzarotti é professor e pesquisador da Fundação João Pinheiro, coordenador do Observatório das Desigualdades e doutor em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Clarice Miranda é discente do curso de Administração Pública da Fundação João Pinheiro, integrante do Observatório das Desigualdades.
O Observatório das Desigualdades
O Observatório das Desigualdades, criado em agosto de 2018, é um projeto de extensão do curso de Administração Pública da FJP que busca contribuir com o debate informado sobre as diferentes faces da desigualdade social, os mecanismos que as produzem e reproduzem e as formas de enfrentá-la, difundindo e tornando mais acessível o conhecimento sobre o tema. Assim, as opiniões expressas nos textos são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a visão da Fundação João Pinheiro.
FONTE: BRASIL DE FATO