A autorização para o funcionamento do comércio no dia 20 de novembro, data nacional da Consciência Negra, reacende um debate que o Brasil insiste em adiar: qual é o compromisso real das instituições com a luta contra o racismo estrutural. O feriado, instituído para lembrar Zumbi dos Palmares e reconhecer a resistência do povo negro, não é apenas um marco no calendário, mas um instrumento de memória e reparação. Nesse contexto, transformar esse dia em rotina comercial revela uma contradição que precisa ser analisada com seriedade.
O argumento utilizado pelos setores empresariais costuma girar em torno da manutenção de empregos, da necessidade de manter o fluxo econômico e de benefícios pontuais aos trabalhadores. No entanto, esse discurso perde força quando confrontado com a composição da mão de obra que sustenta o comércio brasileiro. Dados de institutos de pesquisa mostram que pessoas negras são maioria nos cargos de menor remuneração, nas jornadas mais longas e nas funções que envolvem esforço físico contínuo. São elas que, na prática, ocupam os postos que obrigatoriamente precisam estar ativos quando as portas das lojas se abrem durante os feriados.
É justamente essa contradição que faz do 20 de novembro um dia sensível. O país que atua comercialmente como se fosse uma data comum é o mesmo que reconhece oficialmente a existência de desigualdades profundas e históricas. A abertura das lojas nesse dia aponta para um conflito entre narrativa e prática, entre o discurso de respeito e a manutenção de estruturas que naturalizam a hierarquia social baseada em cor e classe.
O debate não é moralista nem ideológico. Ele envolve um fato objetivo: feriados possuem finalidade social. São momentos destinados à reflexão coletiva e ao reconhecimento de valores históricos. O 7 de Setembro relembra a independência política. O 12 de Outubro é dedicado a tradições religiosas. O 1º de Janeiro marca transições institucionais. O 20 de novembro, por sua vez, deveria representar um compromisso do país com a igualdade racial. Permitir que essa data seja absorvida pela lógica do faturamento corrói o propósito do feriado e mantém invisível justamente a população cuja memória se celebra.
Trabalhadores do comércio ouvidos pela reportagem relatam desconforto, mas nenhum deles aceitou se identificar, o que demonstra o grau de vulnerabilidade que ainda marca a categoria. O receio fala por si: em um setor que emprega majoritariamente trabalhadores negros, contestar a abertura no dia da Consciência Negra não é apenas uma crítica, mas um risco.
A discussão ultrapassa fronteiras municipais e aponta para uma questão estrutural. Quando um feriado voltado à reparação é tratado como uma data qualquer de consumo, a mensagem transmitida é clara. O país reconhece sua dívida histórica, mas hesita em conceder um único dia para que sua população reflita sobre ela. A decisão de abrir as portas acaba se tornando um símbolo. Não pela atividade comercial em si, mas pelo que ela representa na luta por igualdade.
Em um cenário de desigualdades persistentes, é legítimo perguntar: que memória se honra quando o feriado perde seu sentido? E o que diz sobre o país o fato de que mesmo uma pausa simbólica encontra resistência quando o lucro está em jogo?
Nota da associação Alforria
“Vimos por meio desta,manifestar nosso repúdio a decisão de abertura do comércio de Conselheiro Lafaiete no feriado do dia 20 de novembro, data que se celebra o dia da Consciência Negra,um marco fundamental na luta contra o racismo,na valorização da cultura afro brasileira e na memória e resistência do povo negro.
Permitir o funcionamento comercial neste dia significa desconsiderar o simbolismo histórico e social da data, além de ignorar a importância do respeito aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras que deveriam ter garantido o descanso e a possibilidade de participação em atividades culturais,educativas e de conscientização.
Reforçamos que dia 20 de novembro não é um feriado comum: é um momento de reflexão nacional sobre desigualdades que ainda persistem e sobre a necessidade continua de combate ao racismo estrutural. A sua banalização,por meio da abertura comercial, representa um retrocesso social e um desrespeito à memória de todas e todos que lutam pela igualdade racial”.



