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Garimpando – Uma rua encantada verdadeiramente encantada

Avelina Maria Noronha de Almeida

                                                      [email protected]

O SERVO DE DEUS

QUARTO CAPÍTULO

            – Pru quê qui vassuncê ta tremeno, Belarmina? Pode falá qui a Joaquina já foi deitá…

            – Nhá Joana… Todo mundo pensa qui o minino da sinhazinha Francisca foi dado e qui o Moisés, qui todo mundo sabia qui o minino era fio dele, fugiu com medo do Coroné…

            – I num foi?

            – Num foi não. Naquele mardito dia iô tinha ido buscá umbigo di banera pra fazê pru armoço. Já vinha vortando quando iscuitei uma cunversa. Era do Coroné Bento cum Teodoro, mandano ele pegá a criança, mandá dois iscravo agarrá o Moisés e adispois levá eles pra bem longe na mata. E adispois matasse a criança e o Moisés, mandasse os iscravo interrá os dois, e adispois ainda o Teodoro matasse os iscravo e interrasse eles pra eles num podê contá pra ninguém.

            A vasilha de louça, que estava nas mãos de Joana para ela entornar o doce pronto, espatifou-se no chão.

            – Entonces é pur isso que vassuncê tem tanto ódio do Coroné…

            – I num é pra tê? Agora vassuncê ainda vai tê pena dele?

            Joana ficou algum tempo parada, como se fosse uma estátua. E depois disse com voz compungida:

            – Agora iô tenho mais pena dele. Agora qui ele perdeu quase tudo, tá duente, velho, os remorsos deve de cumê o coração dele. É um sofredô.

            – Qui o quê… Ele num tem coração. Ô entonces o coração dele é podre.

Imagem da Internet

O grito do galo soou límpido, claro, na neblina da madrugada. Depois mais outro, mais outro…

            Nova noite sem dormir. Coronel Bento calculou: dormira umas duas horas. Acordara em meio a um pesadelo. Um homem de pedra batia um martelo numa mesa e dizia com voz cavernosa: “Esta criança veio para quebrar o orgulho de vosmecê; veio derrubar pedra por pedra tudo o que foi construído pela ambição de vosmecê. Vai tudo virar ruína”.

            E então o casarão da cidade foi se desmanchando, as pedras rolando pela rua. Ele corria atrás delas e elas se distanciavam cada vez mais. De repente, ele é que estava correndo na frente e elas querendo pegá-lo.

            Acordou suando frio. Uma noite insone é uma tortura. O velho estava doido que amanhecesse.

            O luar entrava através da vidraça e clareava a parede, caindo sobre o retrato da falecida Sinhá Cândida, pois a escrava se esquecera de fechar a bandeira da janela. Embora poucos tinham casa com vidraça em Queluz, ele fizera questão de mandar colocar vidros na casa da cidade e na fazenda. Na época em que o fez, tinha muito ouro para dar-se a esse luxo.

            Só naquela altura da vida o Coronel avaliava a importância da falecida, que cuidara da vida dele com tanto desprendimento e bondade. Dirigia a casa da cidade e da fazenda com eficiência. Roupas, comida, tudo era perfeito. Sempre submissa a seus caprichos, sempre resignada diante dos maltratos que sofria dele…

Imagem da Internet

Passeou os olhos pelo quarto. Ali estava o oratório. Quantas vezes ela teria ali rezado pedindo a Deus para amolecer o coração dele.?.. Fora muito mau para ela, muito injusto. Por que só tarde demais reconhecia isso?

            O vento batia manhoso nas roupas penduradas no terreiro. Joana e Belarmina foram ao varal apanhar as que estivessem secas. Antes, sentaram-se em uma pedra.

            – Belarmina, ocê tem qui concordá qui o Coroné mudô com o tempo. Desde quando ele perdeu aquela dinherama no jogo; uns tempo dispois sinhá Cândida caiu na cama e num levantô mais… Iô acho que naquela época ele pois a mão na consciença. Os amigo da política também abandonaro ele… ele começo a pensá e pegô um poco de humildade.

            – É… Mas tem umas hora qui ele inda é bem ruim. Grita com a gente, xinga. Fala até mar de Deus. Cruiz im Credo!

            – Isso é nervoso de gente véia qui já perdeu a força de lutá na vida… Nóis percisa de tê paciença cum ele. Ao menos pra arma de Sinhá Cândida ficá discansada…

            Depois do almoço, o Coronel foi se arrastando pelos corredores. Ao passar pelo quarto de Francisca, resolveu entrar. Era como se estivesse vendo a filha sentada no banco perto da janela, bordando.

            Coitadinha! Quanto ela devia ter sofrido ali, sofrido por culpa dele. Era verdade que não tivera juízo… Fizera uma grande ofensa ao nome dele. Mas ele fizera pior, muito pior. Tornara-se um assassino. Mandara matar quatro pessoas, uma delas seu neto. Mas naquele tempo aquilo não pesava na consciência dele. Achava que tinha feito o que devia. Não tinha escrúpulo de mandar matar quando alguém se atravessasse no seu caminho. Agora, sim, sofria pelos seus erros. Como os sofrimentos da vida o tinham mudado… E ali estava ele agora, sem um neto para herdar seu nome e continuar sua linhagem, ele que, embora fidalgo decaído, era da melhor nobreza de Portugal?

            Quanto tempo Francisca ficara ali, presa pela própria vontade, não querendo conversar com ninguém, só entregue à sua dor. Até que Dona Cândida adoeceu. Ela reagiu. Tomou conta da casa. Cuidou da mãe com uma dedicação admirável e passou a cuidar dele também, que já estava com os problemas da velhice e a humilhação da ruína.

            No princípio, quando ela chegava perto dele, trazia uma expressão de profunda tristeza. Com o tempo, aquela tristeza fora se atenuando, atenuando… Até que um dia conversaram. Ele pediu perdão a ela. Ela também pediu perdão. E as coisas ficaram melhores entre eles.

            O Coronel saiu do quarto pensando: “Onde estará agora minha filha Francisca?…”

                                                                                  (Continua)

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