Depois de escapar do rompimento da barragem da Samarco, em 2015, moradores de povoados afetados sofreram com crise econômica e agora padecem sob a pandemia
Mariana – “A nossa provação não tem fim. É incerteza, decepção, dor na nossa alma e no coração. E, agora, sentimos doer a nossa carne, com essa doença pegando a família toda. E a família é só o que temos para nos dar força, para dar mais um passo.” O desabafo é de Silvânia Aparecida de Souza, de 43 anos, a Vaninha, uma das atingidas pelo rompimento da Barragem do Fundão, em 2015, em Mariana, que já foi de tudo nesse tempo: de dona de restaurante na Estrada Real a cozinheira e diarista. Ela, os nove filhos e oito netos lutam para restabelecer suas vidas após o maior desastre socioambiental do país. Mas o ciclo de tragédias não para. Depois do baque, agora veio a pandemia do novo coronavírus, que impôs o isolamento, fechou empresas, trouxe o desemprego e a incerteza do sustento. Sina que perdura, todos da família contraíram e sofreram com a COVID-19. Depois de 14 dias, venceram a doença, mas ainda lutam contra o preconceito, pois muitos ainda acham que estão com o vírus.
A reportagem do Estado de Minas mostra como a pandemia transformou em duplos sobreviventes os atingidos da Barragem do Fundão, como Vaninha, e também os assolados pela Barragem B1, da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, onde 270 pessoas morreram soterradas. De acordo com levantamento do EM sobre dados da Secretaria de Estado de Saúde (SES-MG) da última segunda-feira, só nos territórios mineiros diretamente atingidos pela tragédia de Mariana, a taxa de casos de COVID-19 por 100 mil habitantes é quase um terço superior à do restante do estado. A ruptura devastou a Bacia Hidrográfica do Rio Doce, entre Minas e o Espírito Santo, deixando 19 mortos e cerca de 700 mil atingidos, agora castigados, como toda a sociedade, por novo flagelo.
Enquanto a média estadual em Minas é de 1.193 infectados pelo novo coronavírus por 100 mil habitantes, a dos 14 municípios banhados pelo Rio Doce e atingidos pelo desastre é de 1.538, índice 29% superior (veja tabela). As maiores taxas se encontram em Itueta (5.047 doentes/100 mil), Mariana (3.005) e Governador Valadares (2.343). A letalidade do vírus também é maior nesses territórios, chegando à média de 3,1% de mortes entre o total de pacientes infectados, contra 2,4% em Minas Gerais com um todo. Essa razão de óbitos por pacientes se destaca negativamente em Galileia (11%), Periquito (5,8%) e Ipaba (3,8%), sendo que Governador Valadares, a maior cidade da bacia, vem em seguida (3,3%).
Na casa de Vaninha, o avarandado amplo e fresco à beira da Estrada Real tinha o espaço divido entre mesas e cadeiras ao redor do fogão a lenha. Nelas, ciclistas, motociclistas, jipeiros e turistas se deliciavam com a diversidade farta que fumegava nas panelas de comida mineira. Hoje, o espaço esvaziado se tornou pátio para a correria dos netos pequenos, o mais velho com 10 anos. A inocência os distancia de verdades duras para os atingidos. Ainda não entendem bem por que as pessoas não vêm mais saborear os pratos da avó. Não verbalizam também uma resposta que explique o distanciamento de alguns vizinhos, depois que a família enfrentou a COVID-19.
Quando a Barragem do Fundão se rompeu, liberando cerca de 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro da mineradora Samarco pelos vales abaixo, o terreno de 8 mil metros quadrados que pertence a Vaninha e à sua família, em Bento Rodrigues, ficou soterrado. Moradora do vilarejo vizinho de Camargos, a mulher que é viúva há uma década, sustentava na época os filhos e netos servindo refeições em seu restaurante. Mas a avalanche interrompeu as estradas, arrastou pontes e deixou Vaninha e a família ilhados, sem ter como manter o restaurante aberto.
UM BAQUE ATRÁS DO OUTRO
“A ponte foi reconstruída e as coisas estavam começando a tomar um rumo. Estava entregando muitas marmitas, principalmente para empresas, porque os turistas deixaram de vir. Para completar os ganhos, voltei a trabalhar de diarista em Mariana. Aí, uma parte da estrada caiu e interditaram a ponte. A gente ainda estava pensando o que fazer, quando veio o coronavírus”, lembra a atingida, que de repente viu suas entregas de alimentos praticamente acabarem com o fechamento das empresas e a instauração do isolamento social.
Mas ela não imaginava que, mesmo a 16 quilômetros de Mariana, um a um, todos dentro de sua casa teriam a COVID-19. “A coisa veio assim, de um dia para o outro. Moramos todos juntos, então não tinha jeito de isolar. Pior que ainda fui ao médico, disse que estava com dores, parecendo que a carne estava soltando dos ossos, dificuldade para respirar, cabeça explodindo. Ele disse que era dengue e me mandou de volta para casa”, conta Vaninha.
Insatisfeita com o diagnóstico e temendo pela saúde da família caso não se tratassem adequadamente, a mulher pagou um teste particular. O resultado foi o que ela temia: positivo para COVID-19. “O médico repetiu o exame e confirmou. Mas aí todos em casa já estavam sem sentir o gosto de nada, sem pegar cheiro das coisas, fraqueza, desânimo, com dores de cabeça e no corpo. Pior foi para mim, que tenho problema de vesícula e senti muita falta de ar. Precisei dormir no médico, mas depois me liberaram para ficar em casa”, lembra. Por causa da doença, os clientes terminaram de desaparecer. “As pessoas têm preconceito. Acham que mesmo depois de 20 dias ainda podemos estar doentes. Agora, depois de um mês, é que está voltando, aos poucos, a nossa luta a ser menos penosa”, afirma.
Termômetro
Impacto da COVID-19 é maior em algumas das cidades atingidas pela tragédia do que no estado em geral
» Casos
Minas Gerais 1.193/100 mil hab.
Mariana 3.005/100 mil
Barra Longa 1.196/100 mil
Governador Valadares 2.343/100 mil
Resplendor 2.184/100 mil
Itueta 5.047/100 mil
» Mortes por total de infectados
Minas Gerais 2,4%
Periquito 5,81%
Ipaba 3,85%
Governador Valadares 3,35%
Galileia 11,11%
O peso do isolamento em um local estranho
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Arrancados de suas casas depois que a avalanche de rejeitos passou pela calha dos rios Gualaxo do Norte e do Carmo, os atingidos em Mariana e em Barra Longa, na Região Central de Minas Gerais, aguardam, desde 2015, indenizações e que as novas moradias em reassentamentos estejam prontas. Durante a pandemia, a necessidade de isolamento social em casas alugadas afetou ainda mais a rotina dessas pessoas, antes acostumadas a seus grandes quintais e propriedades rurais.
“Os atingidos se encontram numa situação de diáspora há cinco anos. Essa situação trouxe ainda mais malefícios para as pessoas que tiveram de se recolher em lugares que não são delas, onde escolheram viver. Isso trouxe reflexos trágicos para a sanidade mental, muita ansiedade e apreensão. Em 2017, um estudo da UFMG concluiu que os atingidos têm cinco vezes maior propensão a males da saúde mental que o restante da população”, afirma Gladston Figueiredo, coordenador da Assessoria Técnica Cáritas MG para os atingidos de Mariana.
Como até hoje os atingidos não foram indenizados e ainda vivem em aluguel, sem ter certeza de quando as casas dos reassentamentos estarão prontas, o coordenador considera que o dano que sofreram continua dia após dia. “Do rompimento para cá, as pessoas vêm sofrendo danos cotidianos, desde o preconceito dos demais nos bairros para onde foram levados até o adoecimento mental. Muitos dos que estavam se posicionando profissionalmente sofreram novos revezes. Até hoje, há cerca de 100 casos de pessoas que não receberam o auxílio emergencial, e que deveriam ter recebido imediatamente, que perderam renda e capacidade produtiva”, disse Figueiredo.
Com a pandemia, a assessoria técnica ajudou a fazer circular entre os atingidos as recomendações sanitárias contra o novo coronavírus das secretarias de Saúde, do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde. A Prefeitura de Mariana informa ter investido em testes desde o início da crise sanitária, e sustenta que por esse motivo detectou um grande número de contaminados, a maioria assintomáticos, o que se reflete no baixo percentual de mortos e de ocupação de leitos.
Já em Governador Valadares, com altos índices de doentes e mortos no município, a prefeitura informa que indiretamente o rompimento e os impactos econômicos, na saúde e em outros setores comprometeram o maior empenho de setores que tiveram de ser mobilizados para o combate à COVID-19. “Outros serviços ficaram prejudicados. (Ocorreu, por exemplo) A dificuldade para aquisição de equipamentos de proteção individual (EPIs) devido à escassez nacional”.Continua depois da publicidade
Renova sustenta que trabalhos continuaram
Responsável pela reparação e compensação dos danos decorrentes do rompimento da Barragem do Fundão, em Mariana, a Fundação Renova, criada para lidar com os danos da tragédia da Samarco, informa que adotou medidas de prevenção e segurança e que mesmo assim o trabalho prosseguiu. Desde março, sustenta, foi adotado o fluxo remoto para finalizar os pagamentos de lucro cessante. Até agosto, foram pagos R$ 107 milhões. Acrescenta que foi assegurado a todos o direito de aguardar a possibilidade de o atendimento ser feito presencialmente. As obras do reassentamento chegaram a ser suspensas em dois momentos, devido à pandemia, mas foram retomadas em 15 de junho, após autorização da Prefeitura de Mariana, afirma a fundação.
Em meados de maio, 100% dos colaboradores que atuavam nas obras foram testados, de acordo com a entidade, o que passou a ser feito por amostragem de 15% do efetivo a cada 20 dias. Todos que tiveram resultado positivo foram isolados e acompanhados durante a quarentena para verificação da evolução dos sintomas e assistência. Outra prática adotada nos reassentamentos é a aferição de temperatura, diária, em 100% do efetivo. A Renova informa que foram criadas mais de 10 mil vagas gratuitas para capacitação on-line dos atingidos.
A fundação informa ainda ter repassado R$ 8 milhões para reforçar saúde na cidade de Barra Longa, vizinha a Mariana, também atingida pelo rompimento. Entre as iniciativas de assistência às localidades atingidas estão o repasse de cerca de R$ 75 milhões para a conclusão da obra e aquisição de equipamentos para o Hospital Regional de Governador Valadares. Cerca de R$ 120 milhões de verba compensatória foram repassados aos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo para reforçar o combate à COVID-19.
Até 31 de julho, contabiliza a Renova, foram destinados R$ 9,2 bilhões para as ações integradas de recuperação e compensação. Cerca de R$ 2,57 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios financeiros emergenciais para cerca de 321 mil pessoas.Continua depois da publicidade
Já a administração de Mariana informa ter criado 30 leitos clínicos de UTI exclusivos para a COVID-19, regulado e fiscalizado atividades para evitar a maior propagação do vírus, criado barreiras sanitárias itinerantes, adquirido testes rápidos, medicamentos e insumos. Sobre os números acima da média estadual, informou atender a todas as normativas do Ministério da Saúde e da Secretaria de Estado de Saúde. “Acreditamos que aqui não ocorra subnotificação de dados, como pode ocorrer em outras localidades”, informou. (EM)