Joana* não esperava que o primeiro mês de vida de sua filha Rafaela* fosse tão atribulado.
Em novembro de 2020, com apenas 25 dias, a recém-nascida começou a apresentar alguns sinais preocupantes, como coriza, dor de garganta e diminuição dos reflexos.
“Meu marido teve contato com alguém infectado no trabalho e pegou Covid-19. Nós tentamos nos manter distantes dele, mas foi inevitável”, lembra Joana, que mora na cidade de Pinhais, no Paraná.
Em poucos dias, os sintomas de Rafaela pioraram mais um pouco e a febre não baixava de jeito nenhum.
Ao passar por uma avaliação médica, a menina também recebeu o diagnóstico de Covid-19 e precisou ser internada no Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba, no dia 29 de novembro.
Para Joana, aquele período ficou marcado por um misto de sentimentos.
“Por um lado, tinha toda a preocupação de ela estar numa UTI [Unidade de Terapia Intensiva] e ficarmos isoladas, sem poder sair para nada”, descreve.
“Por outro, sentia um alívio em ver que minha filha podia estar ainda pior, com a necessidade de intubação, por exemplo.”
Enquanto os incômodos respiratórios de Rafaela começaram a melhorar (e ela até recebeu alta após 10 dias de internação), um outro aspecto começou a chamar a atenção dos especialistas que acompanhavam o caso: os exames de sangue da recém-nascida indicaram alterações importantes em enzimas relacionadas à saúde cardiovascular.
Era o caso de níveis anormais das substâncias D-dímero e troponina, que sinalizam o risco do aparecimento de coágulos nos vasos sanguíneos e de lesões no coração.
No dia 16 de dezembro, mesmo já liberada do hospital, mais um susto: uma nova leva de exames revelou que a menina tinha miocardite, uma inflamação no coração.
“Desde então, minha filha vem sendo acompanhada por uma equipe de cardiologistas e infectologistas e recebendo remédios”, relata Joana.
“Agora ela está bem, com um bom nível de oxigenação e segue bastante ativa, mas os médicos não sabem se essa condição poderá ser revertida no longo prazo. É tudo muito novo até para eles”, completa.
Embora a história de Rafaela pareça única, ela está mais para regra do que exceção, ao menos na realidade do Pequeno Príncipe, o maior hospital exclusivamente pediátrico do Brasil.
Segundo os dados da própria instituição, metade das crianças e dos adolescentes com Covid-19 internados neste local apresentaram alterações cardiovasculares.
O volume tão grande de casos chamou a atenção dos especialistas e motivou a criação de um ambulatório específico para acompanhar esses pacientes e ver como eles evoluirão com o passar dos meses (ou dos anos).
Uma demanda inesperada
A cardiologista pediátrica Lânia Romanzin Xavier, chefe do Serviço de Eletrofisiologia Cardíaca do Hospital Pequeno Príncipe, se lembra de ter lido um artigo científico no primeiro semestre de 2020 que descrevia o caso de uma criança que teve morte súbita por complicações cardiovasculares no pós-covid.
“Me chamou a atenção o fato de que essa alteração cardíaca aconteceu não na fase aguda da infecção, naqueles primeiros 14 dias após o diagnóstico, mas três meses depois”, detalha.
“Diante dessa informação, fiquei preocupada com a possibilidade de o coronavírus atingir o coração. Mas estávamos no início da pandemia e sabíamos pouco sobre a Covid-19 e suas repercussões”, conta.
Xavier, que faz pesquisas sobre arritmia cardíaca, uma condição marcada pelo descompasso nas batidas do coração, decidiu então propor que o hospital criasse um sistema de acompanhamento dos pacientes pediátricos internados com a doença infecciosa.
“Dentro do nosso protocolo, a partir do momento em que a criança tem um resultado positivo de Covid-19, ela passa por uma triagem cardiológica, independentemente se os sintomas dela são leves, moderados ou graves”, diz.
Além dos exames de sangue que mensuram a presença de enzimas específicas, como a D-dímero e a troponina citadas anteriormente, todos passam por um eletrocardiograma, que avalia a atividade elétrica do coração e se os batimentos estão dentro dos conformes.
“Para nossa surpresa, alguns pacientes não apresentam nenhum sinal preocupante nos primeiros 14 dias após o diagnóstico. Algumas semanas depois, porém, observamos as alterações cardiovasculares”, destaca a cardiologista.
“Esses dados inéditos nos ensinam que a Covid-19 não acaba após o quadro agudo, quando o indivíduo melhora dos sintomas e recebe alta, mas precisa ser monitorado ao longo de mais tempo”, reforça.
Entre março de 2020 e julho de 2021, um total de 258 pacientes, com idades que variam entre 15 dias e 18 anos, foram internados no Hospital Pequeno Príncipe.
“Desse grupo, pouco mais de 50% deles apresentaram alguma alteração cardíaca”, calcula Xavier.
Atualmente, esse ambulatório acompanha 70 pacientes pediátricos. Desses, pouco mais de 30 apresentam repercussões cardíacas associadas à Covid-19.
Vale dizer que alguns casos são mais leves e logo se resolvem. Outros, porém, exigem exames mais aprofundados e até a prescrição de remédios, como foi o caso de Rafaela.
A cardiologista ainda defende que os exames feitos no protocolo inicial são simples, acessíveis e de baixo custo.
“Com poucos recursos, nós conseguimos identificar problemas que ficariam escondidos e levariam a complicações sérias mais pra frente”, diz.
“Ao realizarmos o diagnóstico precoce, podemos fazer o acompanhamento e, se necessário, até iniciar um tratamento, o que nos garantirá um prognóstico melhor no futuro”, completa.
Possíveis explicações
Mas o que a Covid-19 tem a ver com problemas no coração? É possível estabelecer um vínculo entre uma coisa e outra?
Xavier entende que vários fatores podem contribuir para o surgimento de alterações cardiovasculares, mas destaca a inflamação como um dos principais suspeitos.
“A própria presença do coronavírus gera um processo inflamatório que pode afetar o músculo cardíaco. E isso também comprometeria a circulação sanguínea e favoreceria o aparecimento de pequenos coágulos”, explica a cardiologista.
O infectologista pediátrico Victor Horácio, que também trabalha no Hospital Pequeno Príncipe, concorda e aponta que a inflamação acontece por uma resposta do próprio sistema imunológico que, na tentativa de combater o vírus, acaba prejudicando o próprio corpo.
“A inflamação pode deixar sequelas e complicações no pós-covid, o que sinaliza a necessidade de acompanhar os pacientes por mais tempo”, conta.
Xavier afirma que os dados ainda não foram publicados em nenhuma revista científica, mas um colega que integra o ambulatório vai usar as informações numa tese de doutorado que ficará pronta ao longo dos próximos meses.
A experiência, portanto, ainda carece de uma investigação mais aprofundada para entender todos os detalhes e as possíveis explicações por trás dessa observação inicial.
É preciso ter em mente também que o Pequeno Príncipe é o maior hospital exclusivamente pediátrico do Brasil — portanto, por ser um serviço de referência, acaba absorvendo os casos mais graves e que fogem do usual.
Um fenômeno pouco observado até o momento
A BBC News Brasil entrou em contato com outros serviços pediátricos de referência no Brasil, mas nenhum deles observou até o momento essa mesma frequência de alterações cardíacas em seus pacientes com Covid-19.
O infectologista e pediatra André Cotia, do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo, destaca que os sintomas mais vistos nas crianças após a infecção são “fadiga, tosse persistente, cansaço, dor muscular, transtornos de ansiedade e dificuldades no aprendizado”.
“Ainda temos poucos estudos sobre o pós-covid em crianças, até porque os quadros graves são bem menos frequentes nessa faixa etária. De modo geral, fala-se que 16% a 30% dos acometidos podem desenvolver incômodos mais persistentes”, calcula.
Já o médico Marcelo Otsuka, que é responsável pelo Serviço de Infectologia do Hospital Infantil Darcy Vargas, na capital paulista, cita uma outra complicação gravíssima da covid-19 em crianças que já está documentada: a síndrome inflamatória multissistêmica.
“Felizmente esse quadro é bastante raro, mas está relacionado ao acometimento de diversos órgãos do corpo, inclusive o coração”, descreve.
“Os primeiros sintomas costumam ser dor abdominal, vômito, diarreia, febre e lesões na pele”, lista o especialista, que também é diretor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
A boa notícia é que, se identificada a tempo, essa síndrome pode ser tratada e revertida.
E no exterior?
Ainda na seara das complicações depois da Covid-19 em menores de 18 anos, a pediatra Maria Fernanda Badue, do Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas de São Paulo, destaca três pesquisas internacionais que exploraram o assunto.
A primeira delas, feita no Hospital Great Ormond Street, de Londres, no Reino Unido, avaliou 46 pacientes pediátricos durante seis meses após o diagnóstico da infecção.
Embora tenham sido observadas algumas alterações pontuais no grupo, a maioria das sequelas estava resolvida dentro do semestre de acompanhamento — inclusive, todos passaram por um ecocardiograma (exame de imagem do coração) e não foram observadas alterações dignas de nota.
O segundo trabalho, da Universidade de Zurique, na Suíça, estudou 109 crianças por três meses após a Covid-19.
Os pais delas precisaram responder alguns questionários e relataram queixas como cansaço, dificuldade de concentração e aumento da necessidade de dormir em seus filhos.
Mas é preciso dizer que uma minoria dos participantes apresentou esses incômodos.
Por fim, o terceiro artigo vem da Universidade Columbia, dos Estados Unidos, e se debruçou justamente sobre a síndrome inflamatória multissistêmica, que acometeu 45 pacientes com menos de 21 anos no pós-covid, que acabaram incluídos no estudo.
De acordo com os dados, 44% tiveram alterações moderadas e graves no ecocardiograma (aquele exame do coração).
A boa notícia é que a maioria absoluta melhorou consideravelmente com o passar das semanas e, após nove meses, apenas uma criança continuava a apresentar problema persistente no músculo cardíaco.
“Pelas evidências científicas que temos até o momento, mesmo nos quadros mais graves do pós-covid, as alterações parecem se resolver e as crianças costumam se recuperar”, resume Badue.
“E isso vai de encontro ao que vemos na prática clínica e no dia a dia do hospital e do consultório. As crianças são menos atingidas pela Covid-19 e, mesmo nos casos severos e com complicações, existem formas de tratamento”, completa.
O que tirar de lição?
Para o pediatra e infectologista Marcio Nehab, do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz (IFF/FioCruz), os trabalhos científicos sobre a Covid longa na faixa etária mais jovem ainda estão bem longe da qualidade ideal.
“As pesquisas que temos atualmente se baseiam muitas vezes nos relatos dos pais ou dos próprios pacientes, que nem sempre é o método mais confiável”, interpreta.
“E essa dificuldade em produzir pesquisas melhores está diretamente relacionada ao fato de termos poucas crianças com sequelas e complicações, já que a Covid-19 é mais branda e benigna nessa faixa etária”, diz.
A observação feita no Hospital Pequeno Príncipe, então, pode servir de alerta e motivar uma investigação mais aprofundada — será que o mesmo não pode estar acontecendo em outras instituições e isso ainda não foi descoberto ou estamos diante de um fenômeno pontual e específico?
Do ponto de vista dos pais e cuidadores, não há motivos para pânico: as crianças que tiveram Covid-19 devem continuar as avaliações periódicas com o pediatra, como, aliás, já acontece de rotina muito antes de a pandemia virar realidade.
Nessas consultas, é possível perguntar sobre a necessidade de exames complementares ou uma avaliação mais personalizada.
Enquanto a medicina avança e aprende com cada experiência, a cardiologista Lânia Xavier sente alegria em contribuir e alertar para problemas que potencialmente só seriam conhecidos no futuro.
“O prazer em ser médica está em ajudar e detectar as coisas da forma mais precoce possível, com o objetivo de preservar ou garantir a saúde de nossos pacientes”, diz.
Passado o susto, Joana também diz estar feliz em contribuir e ver que o caso da pequena Rafaela pode servir de alerta para que outras crianças com Covid-19 também sejam avaliadas com mais cuidado.
“Não desejo que ninguém passe pela mesma situação que vivemos, mas, se o que aconteceu com minha filha servir para criar protocolos e ajudar outras pessoas, já será um grande alívio”, completa.
*Os nomes foram trocados para preservar a identidade da entrevistada e de sua filha
FONTE BBC.COM