Na escuridão de seu pequeno quarto no Vale Sagrado dos Incas, no Peru, Sara Qquehuarucho Zamalloa arruma sua mochila, enquanto os pensamentos invadem sua mente: o tempo vai estar bom? A equipe vai ser amigável?
Ela vai cruzar com guardas-florestais com atitudes negativas em relação às mulheres? Sua mãe, que sofre de dores crônicas, vai ficar bem enquanto ela estiver fora?
Ela deixou de lado as elocubrações. E saiu na manhã seguinte para trabalhar como guia assistente na Trilha Inca, o caminho íngreme que conduz à famosa cidadela inca de Machu Picchu, do século 15.
Está feliz com a oportunidade de trabalho. Paga mais do que qualquer outra coisa que poderia estar fazendo e, talvez o mais importante, a empodera na sociedade patriarcal do Peru.
Saber que era capaz de enfrentar a Trilha Inca como guia — tanto física quanto mentalmente — a fez sentir que poderia realizar qualquer coisa que botasse na cabeça.
Zamalloa conferiu novamente então para ter certeza de que estava com sua identificação de guia e garrafa d’água e se certificou de que a mochila não estivesse muito pesada (cada quilo conta na trilha), e foi se despedir da mãe no outro cômodo da casa.
Deu à mãe algum dinheiro, pensando em como seus papéis se inverteram desde a infância, e foi para a cama na expectativa de dormir seis horas de sono profundo. Ela sempre dormia bem na noite anterior a uma caminhada.
A perspectiva mais ousada de Zamalloa quando criança na aldeia de San Martin, localizada nas florestas nebulosas acima da selva amazônica peruana, era se tornar uma assistente administrativa, um trabalho que no Peru a teria levado a um escritório dominado por homens, sem expectativa de ascensão.
“Na minha comunidade, muitas pessoas não concluíam os estudos”, diz ela, sentada à mesa da cozinha em Cusco com seus colegas de trabalho.
“Tínhamos que caminhar três horas para chegar até a escola, e três horas para voltar. Os pais faziam as crianças se casarem quando tinham 13 anos. Eu queria mudar todas essas injustiças.”
Com um senso de aventura que lhe seria útil, Zamalloa, aos oito anos, se juntou à mãe em uma viagem de ônibus de 15 horas para se mudar para Calca, perto de Cusco, para vender verduras no mercado local.
À medida que crescia, procurou emprego, cursou o ensino médio e estudou turismo por três anos na faculdade.
A Trilha Inca e um novo mundo de possibilidades não estavam em seu radar até 2016, quando ela conheceu Miguel Angel Góngora, coproprietário da Evolution Treks Peru, empresa de trekking com sede em Cusco, que a convidou para fazer parte de um novo programa para mulheres carregadoras na Trilha Inca.
“Lembro muito bem da data da minha primeira trilha. 27 de março de 2018”, diz ela. “Foi o início de uma vida diferente para mim.”
A Trilha Inca para Machu Picchu é parte de uma vasta rede de trilhas na América Latina que pertenciam ao Tahuantinsuyo — Império Inca — que reinou nos séculos 15 e 16.
Apenas o Inca, o imperador real, tinha permissão para entrar nesta parte da trilha, enquanto peregrinava até o local sagrado de Machu Picchu, honrando as montanhas e picos ao longo do caminho.
A “descoberta” de Machu Picchu pelo arqueólogo americano Hiram Bingham no início dos anos 1900 chamou a atenção do resto do mundo para a trilha até então desconhecida pelo mundo ocidental.
Montanhistas intrépidos nas décadas seguintes usaram mapas desenhados localmente para encontrar o caminho para a lendária “Cidade de Ouro Perdida”.
Na década de 1970, os operadores de turismo começaram a contratar homens das aldeias do Vale Sagrado como carregadores para conduzir os andarilhos ao longo da trilha.
Inicialmente, dada a situação política instável que assolava o Peru na época, poucos turistas ousaram visitar a Trilha Inca, tornando o trabalho dos carregadores limitado.
Mas, após a derrota do grupo guerrilheiro de inspiração maoísta Sendero Luminoso no início dos anos 1990, os visitantes correram para a trilha.
Em 2001, os novos regulamentos da Trilha Inca passaram a exigir uma autorização para andarilhos e carregadores; hoje, 300 carregadores e guias atendem 200 turistas por dia.
Mas, até recentemente, apenas homens eram contratados para o trabalho.
“Em nosso país, o assédio e a discriminação costumam ser normalizados”, afirma a jornalista e produtora de televisão peruana Sonaly Tuesta, que está produzindo um documentário sobre as mulheres carregadoras da Trilha Inca intitulado Sinchichasqua Warmi [mulheres poderosas].
Ela descobriu que as mulheres carregadoras enfrentam uma série de dificuldades à medida que se confrontam com o sistema patriarcal que as ignora, invade e viola.
“Reconhecer o trabalho das mulheres, fornecer ferramentas a elas para recuperar a auto-estima e gerar ativismo, me parece essencial para começar a mudar as coisas.”
A Evolution Treks Peru foi fundada em 2015 como uma operadora de turismo ética por Góngora, um ex-carregador, e sua parceira de negócios, Amelia Huaraya Palomino.
Desde o início, a dupla se comprometeu a apoiar os direitos dos carregadores da Trilha Inca, que recebiam salários baixos por um trabalho árduo, sem benefícios.
Os dois fizeram um bom progresso, garantindo que seus carregadores durmam em suas próprias barracas, em vez de no chão do banheiro, recebam salários justos, carreguem mochilas que não estejam pesadas demais e usem roupas apropriadas.
Mas as mulheres, que ao longo da história peruana enfrentaram preconceitos e discriminações, sempre estiveram no epicentro da missão da empresa.
A Evolution Treks Peru contratou as primeiras carregadoras mulheres da Trilha Inca em junho de 2017. “Queremos que as mulheres percebam sua importância na sociedade”, diz Palomino.
“Que elas importam tanto quanto os homens. Em nossa história inca, as mulheres sempre foram importantes. É hora de mostrar isso dando oportunidades às mulheres carregadoras e guias.”
Neste ano, a Evolution Treks lançou uma caminhada só de mulheres, na qual as carregadoras, guias e clientes são todas do sexo feminino.
“Partimos da perspectiva de usar o turismo como ferramenta de mudança social”, afirma Góngora.
“Nesse sentido, oferecer tours exclusivamente de mulheres é mais um passo em nossa missão de gerar essa mudança social. Solidifica a presença das mulheres na Trilha Inca ao mesmo tempo em que amplia o papel que elas inicialmente desempenharam. Isso vai de ser apenas uma ou duas carregadoras para ter uma equipe exclusivamente feminina de guias, carregadoras e cozinheiras cuidando de nossas mulheres viajantes.”
Subir a Trilha Inca não é uma tarefa fácil. A caminhada clássica de 42 quilômetros — do km 82, que marca o início da trilha, até Machu Picchu — compreende quatro dias e três noites de caminhada e acampamento ao longo de trilhas acidentadas e vertiginosas, às vezes a mais de 3.962 metros de altitude, passando por algumas das paisagens mais impressionantes do mundo.
As lhamas correm livremente, enquanto os pássaros sobrevoam a trilha, e as antigas ruínas do império inca se espalham pelas encostas verdejantes cobertas de nuvens.
Os carregadores ficam focados em carregar as mochilas pesadas de suprimentos e itens pessoais dos clientes entre os acampamentos, armar as barracas e preparar a próxima refeição.
Os guias, por sua vez, devem garantir que os clientes do trekking se sintam confortáveis na trilha íngreme e estar preparados para doenças, lesões ou outras calamidades, ao mesmo tempo que compartilham percepções sobre a história e cultura incas.
Quando Zamalloa começou como carregadora, ela duvidou de sua habilidade. Na noite anterior à sua primeira caminhada, ela não dormiu.
Para piorar, se sentiu mal quando se apresentou para seu primeiro dia de trabalho, devido a uma intoxicação alimentar ou ao nervosismo — ou ambos.
“Achei que ela não conseguiria”, conta Góngora. “Ela estava vomitando.”
“Eu disse: ‘Sim, vou conseguir'”, relembra Zamalloa com firmeza.
A profissão era exclusivamente masculina até um ano antes de ela ser contratada. Sabendo o significado do que estava fazendo e como isso poderia ajudar sua vida, ela se recusou a desistir.
E não desistiu. Por quatro dias, ela fez um esforço tremendo, carregando uma mochila pesada ao longo da trilha tortuosa e lutando contra seu estômago embrulhado.
Normalmente tímida, ela descobriu que gostava de conhecer gente nova e fazer amizade com seus colegas carregadores.
Desde então, ela foi promovida a guia de turismo assistente e está estudando inglês para virar guia de turismo plena.
Quando as mulheres começaram a trabalhar na trilha em 2017, elas encontraram resistência de homens que questionaram suas habilidades — e sua própria presença.
“No início, os caras me julgavam por ser mulher, pensando que eu não seria capaz de fazer a caminhada. Eles me fizeram duvidar das minhas habilidades, e isso foi difícil no começo”, diz Zamalloa.
“Então eu percebi que conseguia, e isso me deixou mais forte.”
Também houve algumas reclamações sobre o fato de carregadoras mulheres carregarem menos peso do que os homens (15 kg em comparação com os 20 kg dos homens), enquanto ganham o mesmo salário (915 soles, ou R$ 1.170, por mês para 16 dias de trabalho, mais 398 soles, ou R$ 509, extras em gorjetas).
Mas, pouco a pouco, à medida que mulheres guias e carregadoras se tornam mais prevalentes ao longo da Trilha Inca, a aceitação está crescendo.
“Estamos recebendo a oportunidade que as mulheres têm buscado, para acabar com a discriminação”, diz Silvia Flor Gallegos Flores, carregadora e chef da Evolution Treks.
“Para mostrar ao mundo que as mulheres são equivalentes no trabalho de um homem, não apenas na Trilha Inca, mas em qualquer outra coisa. Temos a capacidade mental e física para realizar esses trabalhos. Somos mais do que o que nos foi ensinado.”
Flores sonha em se tornar uma guia líder e um dia ter seu próprio negócio. “Quero ser completamente independente”, afirma. “Não quero depender de ninguém.”
Esse esforço para redefinir o papel das mulheres peruanas na sociedade não se limita à Evolution Treks. “Estamos forçando nossos concorrentes a fazer o mesmo”, diz Góngora.
“Estamos forçando uma conversa em torno das questões femininas, inclusão, discriminação. Isso vai mudar a abordagem que os turistas terão em relação ao turismo, e não apenas aqui no Peru. Queremos inspirar outras pessoas em outras partes do mundo a adotar nossa iniciativa.”
O que outras empresas estão fazendo pelas mulheres? “Pelo o que eu sei, não muito”, diz Tuesta.
Enquanto isso, Zamalloa, Flores e outras 16 carregadoras e guias estão fazendo história na Trilha Inca, trilhando seu caminho nas mesmas pedras polidas outrora reservadas ao venerado imperador Inca, do sexo masculino.
E, depois de cada caminhada, Zamalloa volta para sua mãe, grata por ser capaz de sustentá-la.
FONTE BBC.COM