Apesar da falta de investimento e da crise na educação, presença de mulheres nas escolas cresce sistematicamente há 30 anos
As mulheres brasileiras foram sistematicamente excluídas do acesso à educação na maior parte da história. A economia colonial, fundada na grande propriedade rural e na mão-de-obra escrava, deu pouca atenção ao ensino formal para os homens e nenhuma atenção para as mulheres. O isolamento, a estratificação social e as relações familiares patriarcais favoreceram uma estrutura de poder fundada na autoridade sem limites dos homens donos de terras. A tradição cultural ibérica, transposta de Portugal para a colônia brasileira, considerava a mulher um ser inferior, que não tinha necessidade de aprender a ler e a escrever. A educação monopolizada pela Igreja Católica reforçava o espírito medieval. A obra educativa da Companhia de Jesus (Jesuítas) contribuiu significativamente para o fortalecimento da predominância masculina, sendo que os padres jesuítas tinham apego às formas dogmáticas de pensamento e pregavam a autoridade máxima da Igreja e do Estado (Ribeiro, 2000).
Com a vinda da Família Real portuguesa para o Brasil e a Independência, em 1822, a sociedade brasileira passou a apresentar uma estrutura social mais complexa. As imigrações internacionais e a diversificação econômica aumentaram a demanda por educação, que passou a ser vista como um instrumento de ascensão social pelas camadas sociais intermediárias. Nesse novo contexto, pela primeira vez, os dirigentes do país manifestaram preocupação com a educação feminina. Os primeiros legisladores do Império estabeleceram que o ensino primário deveria ser de responsabilidade do Estado e extensivo às meninas, cujas classes deveriam ser regidas por professoras. Porém, devido à falta de professoras qualificadas e sem conseguir despertar maior interesse nos pais, houve dificuldade para aumentar significativamente o número de alunas.
Na primeira metade do século XIX, surgiram as primeiras instituições destinadas a educar as mulheres, embora em um quadro de ensino dual, com evidentes especializações de gênero. Ao sexo feminino cabia, em geral, a educação primária, com forte conteúdo moral e social, dirigido para o fortalecimento do papel da mulher enquanto mãe e esposa. A educação secundária feminina permanecia restrita, em grande medida, ao magistério, isto é, formação de professoras para os cursos primários.
As mulheres continuaram excluídas dos graus mais elevados de instrução durante o século XIX e a tônica permanecia na agulha, não na caneta. Mas cabe destacar o exemplo inspirador da educadora positivista Nísia Floresta (1810-1875) que foi uma pioneira na luta pela alfabetização das meninas e jovens. Ela fundou uma escola inovadora na cidade do Rio de Janeiro, marco pioneiro na história da educação feminina no Brasil.
A Constituição da República, de 1891, consagrou a descentralização do ensino em um esquema dualista: a União ficou responsável pela criação e controle das instituições de ensino superior e secundário e aos Estados coube a criação de escolas e o monitoramento e controle do ensino primário, assim como do ensino profissional de nível médio, que na época, compreendia as escolas normais para as moças e as escolas técnicas para os rapazes. Nessa época, houve expansão quantitativa do sistema educacional, mas pouca mudança qualitativa. A taxa de alfabetização da população brasileira cresceu durante a República Velha (1889-1930) apesar da manutenção de altos níveis de analfabetismo.
Os motivos do baixo grau de investimento educacional brasileiro tiveram suas origens no modelo econômico baseado na economia primário-exportadora, com base em uma estrutura produtiva escravocrata. Enquanto a população permaneceu enraizada no campo, utilizando meios arcaicos de produção, a escola não exerceu papel importante na qualificação dos recursos humanos, permanecendo como agente de educação para o ócio ou de preparação para as carreiras liberais, no caso dos homens, ou para professoras primárias e donas de casa, no caso das mulheres.
Nesse sentido, a chamada Revolução de 1930, ao redirecionar o desenvolvimento brasileiro para o mercado interno e para o setor urbano-industrial, propiciou o surgimento das primeiras políticas públicas de massa, especialmente para as populações urbanas. As novas exigências da industrialização e dos serviços urbanos influenciaram os conteúdos e a expansão do ensino. Porém, como a expansão do capitalismo não se fez de forma homogênea em todo o território nacional, a maior expansão da demanda escolar só se desenvolveu nas regiões onde as relações capitalistas estavam mais avançadas.
Dessa forma, durante o período do chamado Pacto Populista (1945-1964), o sistema escolar passou a sofrer pressão social por níveis crescentes de acesso à educação, porém o acordo das elites no poder manteve o caráter “aristocrático” da escola, contendo a pressão popular em prol da democratização do ensino. Sendo assim, não estranha que a expansão da cobertura escolar tenha ocorrido de forma improvisada e insuficiente. Somente em 1961, por meio da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Brasileira, foi garantida equivalência de todos os cursos de grau médio, abrindo a possibilidade de as mulheres que faziam magistério disputarem os vestibulares. Portanto, foi a partir dos anos 60 que as mulheres brasileiras tiveram maiores chances de ingressar na educação superior. Exatamente por isso, a reversão do hiato de gênero no ensino superior começou nos anos 70.
Com a intensificação da industrialização e da urbanização do país, o sistema educacional cresceu horizontalmente e verticalmente. Os governos militares, instalados no país após 1964 e inspirados no modelo norte-americano, tomaram medidas para atender à demanda crescente por vagas e qualificação profissional, de acordo, inclusive, com os compromissos internacionais. A aliança, os interesses da industrialização e a tecnoburocracia possibilitaram grande crescimento da pós-graduação, com o objetivo de formar professores competentes para atender à demanda da própria universidade, estimular o desenvolvimento da pesquisa científica e assegurar a formação de quadros intelectuais qualificados para acatar as necessidades do desenvolvimento nacional (CUNHA, 2000).
A expansão do ensino no Brasil continuou após o processo de redemocratização do país, com a instalação da chamada “Nova República”, em 1985. Nos anos 1990, houve um desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a manutenção das crianças na escola (Bolsa Escola) e um esforço para a universalização da educação básica. No ensino superior, houve grande crescimento das universidades privadas, que ultrapassaram em muito o número de estudantes matriculados em relação à universidade pública. A expansão geral das vagas no ensino brasileiro favoreceu especialmente o sexo feminino. Na segunda metade do século XX, as mulheres conseguiram reverter o hiato de gênero na educação em todos os níveis. Elas souberam aproveitar as oportunidades criadas pelas transformações socais ocorridas no país (BELTRÃO; ALVES, 2007).
Avanços das taxas de escolaridade e reversão do hiato de gênero nos cursos superiores
Na comparação internacional, o Brasil chegou totalmente atrasado na área educacional na segunda metade do século XX. Em 1960, a população brasileira tinha, em média, menos de dois anos de estudo. Como mostra o gráfico abaixo, a escolaridade média dos brasileiros estava abaixo de 2 anos, sendo 1,9 ano dos homens e 1,7 ano de estudo das mulheres. Em 1991, os brasileiros atingiram cerca de 4 anos médios de estudo e, em menos de 30 anos depois, a escolaridade média foi duplicada novamente, chegando a quase 9 anos de estudo em 2018. O progresso na educação foi significativo nos últimos 60 anos, mas o Brasil ainda se encontra atrás da posição alcançada por países com o mesmo nível de desenvolvimento.
Cabe destacar que, se a escolaridade média cresceu para ambos os sexos, as mulheres conseguiram avançar em uma velocidade maior. Os dados agregados mostram que a reversão do hiato de gênero aconteceu na década de 1980, pois em 1991 as mulheres atingiram 4,1 anos de estudo contra 4 anos dos homens. Já em 2018, esses números passaram a 8,6 e 8,9 anos, respectivamente. A diferença, que era de 0,2 ano em favor dos homens no censo de 1960, passou a 0,3 anos em favor das mulheres, em 2018. Portanto, o século XXI começa com taxas de escolaridade bem superiores àquelas dos séculos anteriores.
O aumento da escolaridade brasileira aconteceu em todos os níveis de ensino, em especial, no ensino superior. Segundo o Censo Demográfico de 2010, do IBGE, havia 13,5 milhões de pessoas com formação universitária no país, representando cerca de 10% entre a população com 20 anos ou mais de idade. Em outras palavras, o Brasil avançou muito em relação ao que acontecia no passado, mas ainda tem muito a melhorar na inserção da população adulta em cursos superiores.
A tabela abaixo mostra que na população com curso superior, as mulheres somam 7,8 milhões e os homens 5,6 milhões, ou seja, havia em 2010 cerca de 2,2 milhões de mulheres a mais que os homens, representando 58,2% para o sexo feminino e 41,8% para o sexo masculino. Nota-se que a diferença de gênero é maior nas gerações mais novas. Em 2010, na parcela da população com mais de 70 anos de idade com curso superior havia 47,7% de mulheres e 52,3% de homens, refletindo a hegemonia masculina que existia no passado. Todavia, no grupo 60-69 anos, as mulheres já representavam 51,1% e os homens 48,9%. Quanto mais novo o grupo etário, maiores são as vantagens do sexo feminino. No grupo etário 20-24 anos, em 2010, as mulheres já representavam 62,5% das pessoas com curso universitário contra apenas 37,5% dos homens. Houve, portanto, uma reversão do hiato de gênero na educação superior. As desigualdades de gênero mudaram de lado. E, agora, estão se ampliando a favor das mulheres.
Esse processo de entrada das mulheres no sistema educacional ocorreu de forma lenta, mas se mostrou estratégico no longo prazo. Primeiro as mulheres passaram a ser maioria no nível primário de ensino e, em seguida, atingiram a maioria no nível secundário. Até a década de 1960 continuavam, de forma absoluta e proporcional, praticamente fora das universidades, pois o ensino superior era acanhado e as mulheres representavam apenas um quarto das pessoas com educação superior no Brasil.
O gráfico abaixo mostra que em 1970 os homens constituíam quase 75% dos universitários do país. Contudo, a situação mudou rapidamente. Em 1980, as mulheres alcançaram 45,5% das pessoas com educação superior e praticamente chegaram em uma situação de equilíbrio em 1991. Mas no ano 2000, as mulheres alcançaram quase 53% do total e constituíram 58,2% dos universitários brasileiros em 2010. Conclui-se que a reversão da desigualdade de gênero na educação superior do Brasil se consolidou na virada do século.
O Brasil é um exemplo de país que conseguiu reverter o hiato de gênero na educação, em geral, e na educação superior, em particular. O caso brasileiro pode servir de exemplo na medida em que as políticas universalistas adotadas no Brasil – tais como o direito de voto feminino, a educação igualitária, os direitos civis e de família da Constituição de 1988 – contribuíram para que as mulheres brasileiras avançassem na conquista de maiores níveis educacionais. Todavia, qualquer desigualdade entre homens e mulheres contraria as recomendações das Conferências Internacionais da ONU que apontam para a equidade de gênero em todos os campos de atividade. O que se espera de uma sociedade justa e igualitária é que o crescimento dos níveis educacionais ocorra para todas as pessoas e que ninguém seja excluído.
O avanço educacional feminino ocorre também na pós-graduação. O gráfico abaixo mostra que o número de mestres formados anualmente passou de 10,5 mil em 1996 para 61 mil em 2017, um aumento de mais de cinco vezes. Nesse período, houve uma reversão do hiato de gênero, pois em 1996 o Brasil formava mais homens (50,5%) nos cursos de mestrado do que mulheres (49,5%). Todavia, este quadro se inverteu nos anos seguintes e, em 2017, chegou-se a 56% de mulheres e 44% de homens entre os novos diplomados com título de mestrado.
Da mesma forma, houve avanços na formação de doutores no Brasil e as mulheres ultrapassaram os homens. O gráfico abaixo, mostra que a formação de doutores passou de 2,9 mil em 1996 para 21,6 mil em 2017. Entre os novos títulos de doutorado, em 1996, os homens representavam 56% e as mulheres 44%. Em 2003, houve empate. E em 2017 as mulheres ultrapassaram os homens em uma proporção de 54% a 46%. Nas últimas décadas, o Brasil construiu o mais amplo e complexo sistema de pós-graduação da América Latina.
O Brasil teve bastante sucesso do ponto de vista do aumento da taxa de matrícula e de inserção da mulher em todos os níveis da educação nacional, mas ficou para trás em relação a países dinâmicos como Coreia do Sul e Taiwan e não alcançou o nível educacional atingido por nossos parceiros do sul, como Argentina, Uruguai e Chile. Qualitativamente, o desempenho escolar brasileiro, medido pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) é baixo. Em 2018, 50% dos estudantes com 15 anos não possuíam o nível mínimo de proficiência em leitura, matemática e ciências.
O mais grave, é que, ao invés de avançar, a situação retrocedeu entre 2020 e 2022 pelo efeito da pandemia da covid-19. Crianças do ensino fundamental foram extremamente prejudicadas pela falta do ensino presencial e houve até “desalfabetização” de jovens. Os dados da Pnad contínua do IBGE mostram que os percentuais de crianças pretas e pardas de 6 e 7 anos de idade que não sabiam ler e escrever passaram de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021; entre as crianças brancas o aumento foi de 20,3% para 35,1%. Nas camadas pobres, o percentual das crianças que não haviam sido alfabetizadas aumentou de 33,6% para 51,0% entre 2019 e 2021.
Relatório sobre Capital Humano do Banco Mundial registra que o Brasil desperdiça 40% do talento de suas crianças, sendo que a renda per capita brasileira poderia ser 2,5 vezes maior se as crianças brasileiras desenvolvessem suas habilidades ao máximo e o país chegasse ao pleno emprego. E o que estava ruim, piorou com a pandemia da covid-19, uma vez que o Índice de Capital Humano (ICH) caiu de 60% para 54% entre 2019 e 2021. Segundo o Banco Mundial, em dois anos os impactos do SARS-CoV-2 reverteu o equivalente a uma década de avanços do ICH no Brasil, voltando ao nível de 2009.
O desperdício se propaga para outras faixas etárias, pois a evasão escolar nas universidades, principalmente por parte dos estudantes de menor poder aquisitivo, também aumentou. Por conseguinte, fica cada vez mais difícil utilizar a educação como um meio para promover a mobilidade social ascendente. Segundo levantamento da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) perderam aproximadamente 51% da verba para financiar pesquisas nos últimos dez anos e a situação se agravou em 2022.
Assim, o Brasil chega ao Bicentenário da Independência com retrocesso nos indicadores educacionais e com uma crise sem precedente no Ministério da Educação (MEC), um dos ministérios mais importantes do governo e que já dispensou 4 ministros, todos polêmicos e sem um plano para melhorar o quadro educacional brasileiro. O ex-ministro, Milton Ribeiro, que é pastor evangélico, deu várias declarações controversas durante os quase dois anos em que permaneceu no cargo e está sendo investigado por um esquema de corrupção dentro do Ministério da Educação, envolvendo pastores evangélicos que intermediavam recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) junto às prefeituras.
Parlamentares de oposição protocolaram, em 28/06, um requerimento de instalação da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) destinada a investigar as denúncias de corrupção, tráfico de influência no MEC e uma possível interferência do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal quando da prisão de Milton Ribeiro. No dia 05/07, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), decidiu instalar a CPI do MEC, mas para começar a após as eleições de outubro. A oposição ameaça recorrer ao STF para obrigar Pacheco a botá-la em funcionamento ainda em agosto (depois do recesso parlamentar). Enquanto isto a educação brasileira agoniza.
Lastimavelmente, o MEC deixou de lado o debate sobre as possibilidades de progresso e de avanço da educação nacional para se transformar em um locus de investigação da polícia. A situação atual é tão crítica que, mais do que nunca, parece oportuna a fala do antropólogo e ex-ministro Darcy Ribeiro (1922-1997) quando disse: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”.
FONTE PROJETO COLABORA