Entenda como santos são roubados de igrejas mineiras e traficados para fora do país

Arte sacra brasileira é cobiçada pelo mercado global e está entre os bens culturais mais ameaçados, segundo lista da Unesco

Não só os deslizamentos de suas encostas, em tempos de crise climática, ameaçam o patrimônio histórico de Ouro Preto. Além de sua arquitetura colonial tombada, a cidade mineira abriga dois acervos importantes de arte sacra do país, guardados pelo Museu do Oratório e pelo Museu Boulieu, no estado que, há muito tempo, testemunha o sumiço de relíquias de suas igrejas e instituições.

É o que diz o Conselho Internacional de Museus, das Nações Unidas, que pôs a arte sacra no topo de sua lista vermelha para o Brasil, documento que cataloga os objetos culturais ameaçados de tráfico. No Sondar, plataforma do Ministério Público de Minas Gerais, constam 2.500 peças desaparecidas, entre santos, documentos e objetos arqueológicos.

Junto a urnas funerárias indígenas, obras ligadas à fé cristã são as mais cobiçadas por serem o tipo de arte mais antiga feita no Brasil, ainda nos primórdios da colonização portuguesa. A falta de recursos fazia com que grande parte dos artistas trabalhasse para a igreja, como foi o caso de Aleijadinho. Não por acaso, a o estilo barroco desenvolveu características próprias no país.

A busca por santos barrocos brasileiros é alta no mercado global, diz Marcílio França, do Ministério Público da Paraíba, especialista em patrimônio. Segundo a Interpol, o Brasil está em 26º lugar na lista dos países com o maior número de objetos culturais roubados.

Diferentemente da França ou da Itália, no entanto, o país não tem um artigo específico para o roubo de arte no Código Penal, tampouco um protocolo de investigação para esse tipo de crime que oriente delegados ou agentes da polícia.

“Quem rouba um carro, um santo ou uma galinha responde pelo mesmo crime”, afirma o advogado. As leis para a proteção de bens não tombados estão dispersas entre a Constituição, tratados internacionais e as legislações de cada estado, o que contribui para a ineficiência do sistema.

“Durante anos, eu fui atrás dos oratórios. Depois, eles começaram a me procurar, a me perseguir”, diz, entre risadas, Angela Gutierrez, fundadora do Museu do Oratório, que abriga 462 peças, todas brasileiras e por ela encontradas.

A colecionadora já foi convidada a expor no Louvre, em Paris, e até disponibilizou um de seus oratórios raros para que o papa João Paulo 2º, durante uma estada no Rio de Janeiro, rezasse em seus aposentos. Parte de suas peças foram compradas de “homens muito simples, que viajavam e compravam antiguidades, sem formação na área mas com grande sensibilidade.”

Pessoas que, segundo ela, resgataram relíquias de fazendas abandonadas ou edifícios antigos carcomidos pelo tempo e esquecidos pelo poder público. Gutierrez, que também doou 1.472 peças ao Museu de Artes e Ofícios de Minas Gerais, em Belo Horizonte, e ocupou uma cadeira no conselho do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, conta que já precisou devolver uma de suas santas ao consultar a lista do órgão de itens desaparecidos.

“É preciso ter cuidado com santos grandes, porque eles geralmente saíram de alguma igreja”, ela afirma. Os perfis de quem rouba são variados, afirma o procurador Marcílio França. “Às vezes o ladrão dedicado a outras coisas encontra a oportunidade, às vezes um colecionador quer uma peça específica e encomenda o seu roubo.”

Enviar os objetos ao exterior é comum. Nesse caso, as obras costumam ser repassadas para quem conhece possíveis compradores em outros países. Por vezes, os caminhos são os mesmos do tráfico de drogas e armas, e a arte pode servir para lavar dinheiro ou até financiar atos terroristas.

“Alguém que descobre moedas antigas do Brasil colonial pode simplesmente embrulhar numa roupa e passar na alfândega [do aeroporto]. É muito difícil para os agentes cravarem se um objeto é histórico ou se foi comprado numa feirinha de artesanato”, afirma França. “Uma obra de milhões de reais pode ser do tamanho de um palmo.”

A saída do Brasil é o pior cenário, diz Marcelo Maffra, promotor e coordenador de patrimônio cultural do Ministério Público de Minas Gerais. Nesses casos, a polícia precisa entrar em campo junto com a Interpol e os agentes estaduais.

Ao contrário do que se imagina, os roubos das relíquias não são nada cinematográficos. “Às vezes falta alarme e câmeras em prédios no interior. Os furtos, principalmente contra igrejas e museus, acontecem pela falta de sistemas de vigilância adequados”, diz.

No século passado, era comum também a venda de peças raras pelos próprios padres, para custear reformas nas capelas. Quando falou com a repórter, Maffra havia há pouco recuperado um santo desaparecido na década de 1960 em São Félix de Minas, no interior mineiro.

A família restituiu a peça quando descobriu que ela foi dada por um padre aos seus antepassados em troca de um novo piso para a igreja local. Se antigamente as relíquias eram recuperadas em antiquários, hoje, segundo o promotor, a maioria das operações acontecem virtualmente. A criação do Sondar foi eficiente ao envolver os próprios cidadãos nas buscas dos tesouros perdidos —qualquer um pode fazer uma denúncia.

O prejuízo decorrente de roubos e tráfico de obras sacras vai além do aspecto financeiro e religioso, lembra França. Se os fiéis não podem prestar sua homenagem e a sociedade local perde uma atração turística, todo o Brasil “perde a oportunidade de oferecer às gerações futuras o conhecimento e a história ligada àquela peça.”

FONTE FOLHA DE SÃO PAULO

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