Casas engolidas pela água, pescadores perdendo o sustento e um sentimento de insegurança sobre o futuro: tudo isso é uma constante em Atafona, pequeno distrito de São João da Barra (RJ) que entrou no mapa da ONU como um local vulnerável ao aumento do nível do mar.
Na região, o nível do mar já subiu 13 centímetros —e a previsão é que atinja média de 16 cm até 2050, podendo variar de 12 cm a 21 cm.
O problema é impulsionado pelo aquecimento global e também está ligado a outros processos —naturais e por interferência humana—nas últimas décadas.
‘Perdi duas casas’
Sônia Ferreira, 80, é uma moradora que não perdeu apenas uma, mas duas casas. Apesar disso, ela não se vê morando em outro lugar. Nascida em Campo dos Goytacazes, a 40 km de Atafona, mudou-se para o distrito há 27 anos.
Desde os 8 meses de vida, vinha para Atafona porque meu avô tinha casa aqui. Criei uma memória afetiva muito grande com o lugar. Dizia que, quando ficasse velha, me mudaria. E assim fiz em 1997, após enfrentar um câncer. Vim para cá buscando qualidade de vida melhor. Aqui criei memórias com meus amigos e família durante toda a vida.
Sônia Ferreira
Ela se mudou para uma casa que a família tinha havia 46 anos e que serviu como casa de veraneio antes de tornar-se a residência oficial de Sônia.
“Meus filhos nasceram e foram acostumados com esse lugar. Depois, vieram os netos. Então, Atafona é um lugar onde a gente tem muitas lembranças boas, apesar da tristeza que estamos vivendo hoje.”
Sônia diz que, no passado, o mar era uma visão distante. “Não víamos o mar e nossa casa era de esquina. Na década de 1960, percebíamos que ele vinha avançando, mas achávamos que iria demorar para atingir nossa casa. Considero que foi um tempo muito curto para ter um avanço do mar tão violento.”
Os primeiros indícios de que o mar avançava rapidamente começaram em 2008. Um prédio de quatro andares —e o único de Atafona — caiu. Sônia lembra que a destruição do edifício foi lenta.
Não foi uma onda avassaladora, veio roendo por baixo até que a construção caiu sobre ela mesmo. Eu assistia à deterioração dele e meus filhos ficaram apreensivos, querendo que eu saísse de casa porque seria a próxima. Falei que só no dia que o mar chegasse no muro que tinha em frente à casa. Demorou 11 anos, mas ele chegou.
Sônia Ferreira
O muro da casa em que Sônia morava caiu em 2019, depois de o mar engolir todos os três quarteirões que estavam à frente. Sônia se mudou para uma casa que ficava atrás da residência original, mas em 2022 decidiu destruir aquilo que um dia chamou de lar.
“Começou a bater onda e percebi que não dava mais para ficar. Tínhamos a esperança de que alguma coisa poderia ser feita, mas não teve jeito. Decidimos por tombar porque era um risco deixá-la em pé sendo ruída por baixo”, conta.
É um processo muito difícil, dolorido, que ainda estamos digerindo. Assisti ao mar avançando, entrando pelo terreno e corroendo tudo por baixo. Aqui, a gente assiste à terra descendo.
Sônia Ferreira
Hoje, Sônia mora na casa da filha, a três quarteirões do mar. A casa anterior não foi consumida pelo mar, mas pela areia. “Formou uma duna na frente de casa e a areia não parava de entrar. Eu tocava meu corpo e era só areia.”
Ela atualmente é presidente de uma associação para remediar os problemas dos moradores de Atafona. Estima-se que, até agora, em torno de 500 casas foram destruídas.
“O prejuízo financeiro é grande, mas o emocional é muito maior. Porque não tem o que fazer contra a natureza no momento em que as coisas estão acontecendo.”
Deixar Atafona, por sua vez, está fora de cogitação. “De jeito nenhum. Amo e me sinto muito feliz aqui. Não tenho vontade de sair. Não é porque perdi minha casa que não quero mais saber de nada. A gente se indispõe, mas temos uma comunidade que quer e precisa continuar.”
‘Vejo o preço do peixe aumentando’
Assim como Sônia, Fernanda Pires, 48, escolheu Atafona como lar, há 25 anos. Nascida em Goiânia, ela acabava de se separar e levou consigo a mãe, que morreu em 2011, e o filho, que na época tinha 1 ano.
“Quando chegamos aqui, como já tínhamos experiência no ramo da gastronomia, me juntei com a minha mãe e vendíamos pizza e salgadinho na rua. Fomos nos virando até começarmos com a cooperativa.”
Fernanda comanda a Cooperativa Arte Peixe, formada apenas por mulheres. As cooperadas transformam a carne do pescado em produtos de valor agregado, como linguiças. É uma opção de renda para as mulheres de Atafona.
Mas o avanço do mar também tem mostrado impactos no trabalho delas.
“Hoje, os pescadores já não conseguem mais descarregar o peixe onde faziam antes, porque o lugar foi engolido. Ali também tinham os frigoríficos, que aos poucos estão ficando debaixo d’água. Com essa dificuldade de descarregar, acabam indo para outros lugares, como Macaé, encarecendo o produto.”
“Está caro para o pescador ir para o mar”, diz ela. A cooperativa está a cerca de três quarteirões do avanço do mar, segundo Fernanda.
Não está tão longe e isso nos deixa pensativas. Fica um ponto de interrogação sobre como será o nosso futuro. Tenho duas netas que moram aqui, uma de 3 anos e outra de seis meses, e fico pensando como será para elas.
Fernanda Pires
Problema não é só avanço do mar
A questão de Atafona não se deve exclusivamente ao aumento do nível do mar. Há pelo menos outros dois fatores que contribuem para o cenário: a geografia de Atafona e a diminuição da vazão do Rio Paraíba na foz do Atlântico — tendo esse último sido causado pela construção de barragens.
Já houve processos erosivos semelhantes antes, mas na década de 1950 voltou a acontecer de forma acentuada com causas regionais e globais. A vazão do Rio Paraíba diminuiu por conta de barragem e transposição, trazendo menos água para a foz. Isso diminuiu a força hidráulica do rio e permitiu o avanço do oceano. O rio funciona como uma barreira para o avanço do mar. Globalmente, as ressacas estão mais intensas, e isso aumenta o nível do mar, causando mais erosão em uma região muito plana.
Gilberto Pessanha Ribeiro, doutor em Geografia pela UFF e consultor técnico na CartoGeo
Segundo o pesquisador, cuja família também teve três casas destruídas pela erosão, não há como fazer grandes construções em zonas costeiras de Atafona, porque é questão de tempo até que elas sejam destruídas.
A melhor proposta, para ele, é fazer um planejamento urbano de coexistência da população com a erosão.
Investir em obras de grande porte para conter erosão não é a solução. Não só porque a obra e a manutenção são caras, mas a médio e longo prazo é um fracasso. Não há como combater o que já está acontecendo. A coexistência com esses processos é o que as mudanças climáticas impõem.
Gilberto Pessanha Ribeiro
Coexistindo com a erosão
A coexistência com a erosão é um dos eixos principais da Casa Duna, o Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona criado pelos pesquisadores Fernando Codeço e Julia Naidin.
Esses processos naturais interferem na criação da memória e na cultura das pessoas. Há um adoecimento psicológico e afetivo e, por isso, buscamos trabalhar com a valorização do território.
Fernando Codeço
Fernando também cresceu nas imediações de Atafona —os pais são de Campos do Goytacazes e os avós, de São João da Barra. Ele e a mulher decidiram morar no distrito em 2017, quando fundaram juntos a Casa Duna.
Ali é um convívio em compasso de espera. A pessoa sabe que vai perder a casa –pode ser daqui um ano ou dez. É uma situação grave de perdas materiais, afetivas e culturais, que demandam também políticas públicas.
Fernando Codeço
Entre os projetos criados pela Casa Duna, está o Museu Ambulante, que, por meio de uma bicicleta, levou o acervo fotográfico de Atafona para a população, contando a história do próprio distrito.
Não poderemos viver da mesma maneira: vamos ter de mudar hábitos e conviver com catástrofes cada vez mais frequentes. Observar o que acontece em Atafona há mais de 50 anos pode nos ajudar a pensar em maneiras de nos adaptarmos.
Fernando Codeço
O alerta da ONU
A projeção de aumento do nível do mar faz parte de relatório divulgado pelas ONU no fim de agosto. O documento foi descrito pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, como um “um SOS para o aumento do nível do mar”.
No Brasil, além da Atafona, o alerta da ONU vale também para a cidade do Rio. O relatório destaca que o aumento do nível dos oceanos pode ter consequências devastadoras para as populações, além de prejuízos às economias.
A simulação para o Brasil usou projeções feitas pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), considerando diferentes cenários de aquecimento (de 1,5°C a 5°C).
FONTE UOL