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A investida do capital contra a merenda escolar

Como frear a terceirização da alimentação escolar em SP. Por que ela pode ampliar a fome, as doenças e a aridez na rede pública. As ameaças de captura do orçamento do PNAE. O instigante projeto de Escolas Comestíveis para produzir hortas, pomares e comida de verdade

Geralmente, quando pensamos em um ambiente escolar, associamos a ele os seus aspectos educativos e socializadores. Afinal, a função das escolas é promover o aprendizado e o convívio, para que as crianças – desde bem pequenas – adentrem no universo sociocultural que se apresenta em seu espaço-tempo. 

Mas, para muitas dessas crianças e jovens, a palavra escola pode levar a uma associação bem diferente: alimento. Sobretudo nas comunidades periféricas, o ato de ir à aula significa a garantia de uma refeição; algo que não é tão certo se os e as estudantes permanecerem em suas casas. Contar com um lanche na hora do recreio e um prato de comida na hora do almoço é garantir que a barriga não vai ficar vazia até a hora do jantar, quando as mães e os pais voltam do trabalho.

Você deve se lembrar de como ficava na expectativa para comer uma sobremesa especial nos almoços celebrativos em família ou um brigadeiro depois que cantassem os parabéns em uma festinha. No caso de muitos alunos e alunas de escolas públicas da periferia, a expectativa é gerada em relação ao simples pão e leite que vão receber no refeitório escolar – muitas vezes, os primeiros alimentos que têm acesso desde o dia anterior.  

Para dar uma ideia do impacto da (popularmente chamada) merenda na alimentação infantil, somente na cidade de São Paulo, através da rede escolar pública, o governo municipal serve mais de 2 milhões de refeições ao dia. É essa comida que vai fornecer uma boa parte da energia e dos nutrientes que a criançada precisa para viver, desenvolver-se e ser parte do corpo social que constrói o dia a dia no território paulistano. Sem esse fornecimento, a insegurança alimentar e nutricional se agravaria profundamente, como pudemos ver durante a pandemia, quando as aulas foram suspensas. 

Mas não é só a manutenção ou não desse fornecimento que está em questão. A qualidade desses alimentos vai interferir diretamente nos cenários presentes e futuros da sociedade, já que alguém mal alimentado não tem a mesma capacidade de aprendizado e de atuação cidadã do que alguém bem alimentado. É por isso que a questão não é somente dar de comer, é oferecer acesso ao que chamamos de comida de verdade, aquela que é feita com ingredientes in natura ou pouco processados, adquiridos da agricultura familiar de base agroecológica e, portanto, livres de substâncias artificiais tóxicas, como os agrovenenos usados nas grandes monoculturas e os aditivos que infestam os produtos ultraprocessados. 

É a partir desse tesouro comestível, adquirido de acordo com a sazonalidade de cada alimento e levando em conta a sua relação com o bioma da região, que as refeições escolares podem trazer sabor, saúde, afeto e cultura, de modo a estimular a plena formação física, psico-emocional e sociocultural dos e das estudantes. 

Quem come o quê 

O Brasil – país com uma agro-socio-biodiversidade riquíssima, com nossas milhares de espécies vegetais comestíveis e nossos diferentes povos formadores – também se destaca quando o assunto é política pública para alimentar quem estuda nas escolas mantidas pelo Estado. O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é referência mundial e estipula que (no mínimo) 30% dos alimentos adquiridos e usados no preparo das refeições escolares sejam provenientes da Agricultura Familiar. Sim, é lei – a ser cumprida em todo território brasileiro. 

Trata-se de um instrumento poderoso! E não apenas para levar comida saudável às crianças e aos jovens, mas para fortalecer a produção agrícola das famílias camponesas, já que garante que elas possam vender uma quantidade considerável de alimentos para prefeituras e governos estaduais ao longo do ano, tendo mais previsibilidade para planejar seus plantios. Podemos resumir assim: alimentação nutritiva no prato dos estudantes e remuneração adequada no bolso dos povos do campo. 

Para dar uma ideia de como o programa tem impacto na qualidade do que se come, ele já chegou a adquirir mais de 400 tipos diferentes de alimento, o que traz mais nutrientes, mais sabores e mais saberes às escolas, e faz com que o solo das terras cultivadas seja mais fértil, ao estimular a produção de biodiversidade. 

Há exemplos de locais em que a alimentação escolar pode conter ingredientes da cultura alimentar indígena, em caso de escolas próximas a aldeias. E esses alimentos são cultivados pelas próprias famílias das crianças que frequentam as aulas, sendo um importante instrumento de sobrevivência econômica para esses povos tradicionais e fortalecendo suas tradições, sempre tão ameaçadas pelo sistema produtivo dominante. Isso vale também para outras comunidades, como as quilombolas, ribeirinhas, caiçaras… 

As crianças e jovens que habitam nossos territórios vivem em realidades socioculturais bem diferentes e uma possível padronização das refeições escolares estaria em desarmonia com suas raízes e suas condições de vida. O único setor que ganharia com a imposição de um padrão geral é o corporativo, sobretudo o vinculado ao agronegócio, à indústria alimentícia e à indústria farmacêutica, já que as relações entre a massificação alimentar – com fornecimento em grande escala – e a redução na qualidade do que se come são mais do que comprovadas por estudos no mundo inteiro, o que explica a explosão das chamadas DNTs, as Doenças Não Transmissíveis, como diabetes, pressão alta, câncer… inclusive em crianças pequenas. 

Escola com ou sem veneno 

Há mais de 10 anos atrás, escrevi um artigo para o Relatório de Direitos Humanos no Brasil 2013 com o título “O Envenenamento da Infância” (página 77). Ele traz um alerta sobre os efeitos danosos da crescente exposição aos agrotóxicos, apontando como existe uma correlação inegável entre o aumento dessa exposição e o aumento de processos cancerígenos em faixas etárias extremamente jovens, já que organismos em desenvolvimento têm menos barreiras contra os fatores que levam a mutações no DNA. 

Foi nesse período que realizamos uma audiência sobre o assunto na Câmara Municipal de São Paulo. A doutora Silvia Brandalise, oncologista pediátrica que é referência mundial no setor, fez uma apresentação impactante e contribuiu para que o debate em relação à busca de uma alimentação escolar segura no município se fortalecesse. Organizações sociais, como a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, participaram do processo que culminou com a criação de um Projeto de Lei que propunha a introdução gradual de alimentos orgânicos nas escolas públicas paulistanas, tendo como meta atingir 100% em 2026.

Sancionada pelo então prefeito Fernando Haddad em 2015 e regulamentada em 2016, a proposta representou uma conquista de peso na luta pela Agroecologia e se transformou em uma importante referência dentro e fora do país. Sim, trata-se de uma lei, a Lei Municipal da Alimentação Escolar Orgânica – a ser cumprida pela administração municipal de São Paulo, segundo metas crescentes a cada ano. 

Neste ano, 2024, a meta estabelecida equivale a  60% do total dos alimentos fornecidos nas 3.750 unidades educacionais públicas do município. No entanto, o que temos visto na realidade é a aquisição de uma porcentagem muito inferior. Embora não tenhamos ainda os dados oficiais devido à falta de transparência por parte da Secretaria Municipal de Educação, a expectativa é de que não chegue nem a 5%, já que o retrocesso em relação ao cumprimento da lei vem sendo percebido pela sociedade e alardeado nos espaços da mídia independente. 

Podemos elencar muitos fatores para que a Lei da Alimentação Escolar Orgânica esteja sendo tão rudemente desrespeitada pela atual gestão da capital paulista. No entanto, vale a pena olhar com atenção para um deles: a terceirização total do fornecimento em um número crescente de unidades. 

Nutrir os bolsos

Qual a diferença entre uma refeição escolar fornecida diretamente pelo poder público e uma refeição escolar fornecida por uma empresa terceirizada? Podemos começar com uma palavra básica: lucro. 

Na terceirização, uma empresa privada assume a função de fornecer a comida para os estudantes em troca de recursos financeiros que os governos repassam a elas. Para seus sócios, os ganhos ocorrem quando elas não usam todo o valor repassado – o que, a princípio, poderia ser feito com a adoção de uma gestão eficiente, o argumento usado sempre que se defende terceirizar algum serviço. Mas, afinal, o que seria “eficiência” na gestão de um serviço essencial, como fornecer comida adequada e saudável a crianças e adolescentes que frequentam a rede pública de ensino – e que, portanto, fazem parte da população menos endinheirada da cidade?

Na realidade, o que acaba acontecendo é que, muitas vezes, para economizar, as empresas realizam a compra de alimentos mais baratos do que os vendidos por produtores de base agroecológica ou adotam a redução de pagamento para seus funcionários, como as cozinheiras. Assim, a qualidade da alimentação servida pode piorar (e muito!), caso não exista uma forma de controle por parte do poder público e da própria sociedade. Aqui, vale destacar que a Lei estabelece a existência de uma comissão de acompanhamento de sua execução, formada por representantes de organizações sociais. 

São esses representantes que vêm constatando que não há transparência no processo em curso e que o descumprimento das metas é um fato inegável. E o município paulista não é um caso isolado, já que a terceirização vem atropelando municípios de todo o país e prejudicando a alimentação em boa parte das escolas brasileiras. É o que aponta o estudo Terceirização no PNAE: riscos jurídicos e implicações para o cumprimento das diretrizes da alimentação escolar, feito a partir de análises de relatórios do Tribunal de Contas da União (TCU).

“Existem várias modalidades de terceirização. A que a gente trata no artigo é a mais preocupante, que é o que a gente chama de terceirização total, onde você terceiriza não só a mão de obra, mas todo o serviço de alimentação, inclusive a compra dos gêneros alimentícios. Essa modalidade tem caído nos índices nacionais, esse é um bom sinal. Mas algumas regiões, como a região Sudeste, tem um índice muito mais alto que o restante do Brasil”, explica a nutricionista e mestre em Saúde Pública Giorgia Russo, uma das autoras do estudo.

Denúncias têm surgido em muitas localidades do país. Em São Paulo, houve uma reação de forte indignação quando surgiu a notícia de que algumas escolas terceirizadas haviam proibido os e as estudantes de repetir o lanche, caso ainda sentissem fome. É que as empresas recebem um valor por refeição servida e não uma soma total mensal por estudante. Sendo assim, na lógica da iniciativa privada, cada refeição é financeiramente calculada e pedir um pouco mais de algo servido interfere na lucratividade. Dá-lhe capitalismo!

Não deve ser por acaso que, no município, a insegurança alimentar em algum nível atinge surpreendentes 62,7% dos lares em que existe ao menos uma pessoa menor de 18 anos, de acordo com o I Inquérito Sobre a Situação Alimentar do Município de São Paulo, lançado recentemente e boicotado pela atual prefeitura – cujo “dono da cadeira” afirma que não há fome no território administrado por ele, muito menos em um nível tão superior à média no país.

Parcela única na barriga das empresas 

E as ameaças de privataria não vêm somente de administrações municipais e estaduais. Recentemente, houve uma ameaça de votar o Projeto de Lei nº 3.096/2024, de autoria da senadora Dorinha Seabra (UNIÃO/TO), na Comissão de Educação do Senado Federal. Ele autoriza a terceirização do PNAE em instituições federais de ensino e propõe entregar – às supostas empresas responsáveis pelo serviço – o orçamento anual do programa, em uma parcela única, a ser digerida avidamente nas panças privadas. É um incentivo inegável à adoção da tal terceirização total, considerada a mais prejudicial pelas pessoas que estudam o assunto. 

Além do impacto nas 685 unidades de ensino em questão, que totalizam cerca de um milhão e quinhentos mil estudantes, a medida abriria um precedente no setor, o que poderia levar a futuras autorizações nos níveis estadual e municipal, em um efeito cascata. Por hora, após forte reação por parte das organizações da sociedade civil contra o PL, ele foi retirado de pauta; mas o alerta segue ecoando nas redes ativistas pelo DHANA, o Direito Humano à Alimentação e Nutrição Adequadas. 

Há, ainda, uma outra batalha em esfera nacional que vem sendo travada e também envolve a questão financeira: o reajuste dos valores destinados ao PNAE. É que o programa perdeu muito poder aquisitivo, principalmente durante os anos Temer/Bolsonaro, e é necessário recuperar sua capacidade de proporcionar aos gestores governamentais a aquisição de comida em quantidade e qualidade para a rede escolar. A campanha Reajusta PNAE Sempre traz dados contundentes e propostas efetivas, e merece nosso apoio. 

Em tempos de debate sobre o orçamento do ano que vem e de disputa por recursos dentro do Pacote de Gastos do governo federal, garantir um aumento para o PNAE é bater de frente com a turma do rentismo e de setores que, mesmo gritando aos quatro ventos que são a favor da regulação pelo livre mercado, continuam mamando nas tetas públicas com toda a cara de pau, seja com isenção de impostos, seja com crédito farto e barato. Estamos falando, mais uma vez, do Ogronegócio monocultor e da Indústria Alimentícia, não por acaso as mesmas que não têm o menor interesse em fortalecer a compra de alimentos da agricultura familiar para a alimentação nas escolas. Elas querem ganhar duplamente: monopolizando as verbas e benesses governamentais e vendendo seus produtos para os gestores das compras de alimentos para a “merenda”. 

Escolas Comestíveis 

Voltando à conversa inicial deste artigo, nós vimos que, ao pensar em escolas, é preciso pensar em comida, não é? Mas, além de um local que distribui refeições preparadas com ingredientes produzidos por agricultores e agricultoras familiares, adquiridos com recursos do poder público, as escolas também podem ser espaços de cultivo. 

E não somos só nós, movimentos agroecológicos, que levantamos essa bandeira. Existem leis e programas que tratam da implantação de hortas escolares em vários municípios. O próprio decreto que regulamenta a Lei Municipal da Alimentação Escolar Orgânica de São Paulo faz referência à criação de canteiros biodiversos para contribuir com o alcance das metas estabelecidas e estimular o diálogo entre a educação ambiental e a educação nutricional. 

O MUDA, Movimento Urbano de Agroecologia, é parceiro do Instituto Kairós no desenvolvimento do projeto Viva Agroecologia, uma ação que fomenta um circuito de hortas e viveiros de PANC – Plantas Alimentícias Não Convencionais – para mobilizar a comunidade escolar e fortalecer a resiliência alimentar, algo cada vez mais necessário em tempos de eventos extremos, desencadeados pela emergência climática, e de má alimentação, decorrente da influência da publicidade de ultraprocessados. 

O recém-divulgado estudo O Acesso ao Verde e a Resiliência Climática nas Escolas das Capitais Brasileiras, feito pelo Instituto Alana, Fiquem Sabendo e MapBiomas, revelou que há cerca de 400 mil estudantes que frequentam escolas em áreas de risco climático; que 4 em cada 10 escolas não têm áreas verdes; e que isso ocorre sobretudo nas unidades em que a maioria dos alunos é negra, mostrando os laços existentes entre desigualdades raciais, sociais e ambientais. Provavelmente, são justamente estudantes nessa situação que sofrem mais de insegurança alimentar e nutricional. 

Já pensou no impacto que o cultivo de hortaliças e árvores frutíferas no espaço escolar ou no entorno das escolas poderia ter na vida dessas pessoas? No caso de canteiros de PANC, que são muito resilientes, há espécies que não morrem mesmo em época de recesso escolar, ao não receberem o cuidado constante, que costuma ser feito nos dias de aula. E podem até ser fonte de alimento durante esse período de pausa no fornecimento das refeições, caso estejam acessíveis às comunidades.

Por falar em recesso escolar, ele está aí. Você costumava ficar feliz quando saía de férias na época em que era estudante? Realmente, parece muito razoável se sentir contente em ter mais tempo para brincar… Mas, caso você não tenha comida na barriga, a brincadeira pode não ser muito divertida, não é? Se para boa parte das crianças e jovens que frequentam as escolas particulares, as férias representam diversão, liberdade e descoberta de novos lugares… para uma parcela de quem estuda na rede pública, elas significam que não vão ter a hora do lanche na rotina diária e que podem ficar horas e horas sem nada para mastigar ou beber. 

Estamos em dezembro, em breve entraremos em janeiro… as escolas ficam vazias, muitas barrigas ficam vazias. Que possamos agir com firmeza para que, na volta das aulas, as leis que garantem uma alimentação nutritiva em todos os aspectos – pessoais, sociais, culturais e ambientais – sejam realmente cumpridas. Que novas leis e programas surjam para fortalecer a Agroecologia na vida escolar. 

As escolas podem e devem ser espaços comestíveis, com hortas, pomares e comida de verdade nas refeições. 

As escolas não devem ser espaços devoradores, em que, em nome do lucro de poucos, o futuro de todos seja engolido.

Está mais do que na hora de cultivar conjuntamente as sementes de plantas e as sementes de gentes, para que toda a sociedade possa colher os frutos saudáveis que vão brotar dessa muvuca revolucionária!

FONTE: OUTRAS PALAVRAS

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