A canalização ou a cobertura de vários córregos em BH trouxe benefícios para o trânsito e especulação imobiliária, mas enfurece as águas em períodos de chuvas
Elementos determinantes para a escolha de Belo Horizonte como a nova capital, os córregos são, hoje, marcados por problemas urbanos. Dos 700 quilômetros de cursos d’água da capital mineira, quase 30% estão canalizados ou revestidos.
Transformados em canais de esgoto e tampados para priorizar o tráfego de veículos e a especulação imobiliária, a correnteza dos rios “escondidos” sobe para cima do asfalto e repete, quase todos os anos, o cenário de alagamentos na cidade, como os vistos na última quinta-feira (16) nas avenidas Teresa Cristina, na Região do Barreiro, e na Vilarinho, em Venda Nova. Como consequência, a própria palavra córrego passou por uma mudança semântica e, hoje, é conhecida pela população como sinônimo de esgoto.
As enchentes, como vimos na última quinta-feira, relembram os rios aprisionados e canalizados por debaixo das ruas e avenidas.
“O transbordamento é um fenômeno natural. Pode canalizar que logo depois, dependendo da chuva, vai ter transbordamento. O rio vai ocupar o território dele. Claro que teria que, de alguma maneira ou outra, trabalhar os meandros dos rios dentro da cidade. Mas, se tivesse sido adotada uma solução que respeitasse as curvas, os vales dos cursos d’água, os transbordamentos não seriam tão graves e frequentes como são hoje. Não tem jeito, é o modelo de cidade que nós adotamos”, crava o geógrafo e professor Alessandro Borsagli.
Planejada no fim do século 19, a capital mineira foi desenhada pensando justamente na qualidade e abundância das águas das bacias dos ribeirões Arrudas e do Onça, que, por sua vez, desaguam no Rio das Velhas, fora dos limites da capital. O projeto urbanístico de Aarão Reis para os quarteirões dentro da avenida do Contorno previa intervenções nos córregos e ribeirões, que, na época, corriam livres entre os moradores e, já na planta, seriam sobrepostos pelas ruas.
“Não houve preocupação com o traçado natural das águas. Isso veio de uma ideia positivista defendida na época de condicionar os elementos naturais, o meio do qual fazemos parte, à racionalidade. Apesar de conhecerem os cursos d’água, eles não foram, de fato, levados em consideração. Com exceção do Arrudas, o traçado não foi respeitado”, aponta o especialista.
Figura ímpar do projeto e, atualmente, o rio mais conhecido da cidade e que, praticamente todo morador sabe da existência, o Ribeirão Arrudas – que corre pela Avenida Teresa Cristina – foi canalizado e inserido como elemento de referência geográfica na paisagem urbana da nova capital. Suas margens foram transformadas em avenidas “sanitárias” e a vegetação quase toda suprimida para priorizar o desenvolvimento urbano.
“Ele foi a matriz de tudo. Dele, partiu toda técnica que, em maior ou menor escala, atingiu também seus cursos d’água”, explica Borsagli. A partir de 1920, todos os córregos dentro da avenida do Contorno foram cobertos.
Como a meta era erguer a capital em quatro anos, correria e falta de recursos cobraram seu preço. O planejamento da coleta e tratamento de esgoto estagnou em apontamentos e estudos, sem sair do papel. Quando inaugurada, em 1897, a capital passou a despejar seu esgoto nas águas cristalinas do Arrudas.
“O esgoto saía da casa de um morador no Funcionários, não caía diretamente no córrego do Acaba Mundo, afluente do Arrudas, mas era conduzido e jogado no ribeirão logo depois do Parque Municipal. Eram mais de 20 redes primárias que desaguavam no Arrudas, jogando esgoto in natura. Claro que não na proporção de hoje. Ele foi o receptáculo, e ainda é, do esgoto de uma grande parte da cidade”, afirma o especialista. A primeira estação de tratamento de Belo Horizonte só foi construída 105 anos depois da inauguração da capital, em 2002.
Sinônimo de esgoto
A primeira grande inundação na cidade ocorreu em 1923, provocada justamente pelo transbordamento do Ribeirão Arrudas. O que era respondido pelo executivo municipal com mais canalização, ou seja, tampando os rios. É exatamente aí que reside o problema, segundo especialistas ouvidos pelo Estado de Minas.
“Até a década de 1920, não havia tantos transbordamentos, porque os córregos e ribeirões estavam em curso natural. À medida que a cidade foi crescendo os transbordamentos só foram aumentando. A partir daí, as enchentes passaram a ser praticamente anuais”, ressalta Lilia Oliveira, doutora em recursos hídricos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) de Minas Gerais.
Tinha-se a visão de que a canalização resolveria os problemas de inundações e de saneamento. Mas apenas escondia a “sujeira”. As enchentes consecutivas espalharam o mau cheiro e problemas de saúde. “Mesmo recebendo esgoto, ainda havia uma relação com a cidade, porque as pessoas nadavam e pescavam no Arrudas, por exemplo. Ele foi um curso de água muito maltratado, foi o receptáculo – ainda é – do esgoto de uma grande parte da cidade. Foi questão de tempo, as pessoas foram se afastando. Ninguém aguentava o mau cheiro, passou a ser indesejado”, ressalta Borsagli.
Sufocados pelo esgoto e o peso do asfalto, os córregos de Belo Horizonte acabaram estigmatizados como focos de poluição, muito distante daqueles nos quais nossos avós nadaram e pescaram um dia. Anos de degradação resultaram no distanciamento da sociedade com os cursos d’água e fizeram com que a própria palavra córrego mudasse de significado.
Atualmente, quando se pergunta para qualquer criança o que é um córrego, ela automaticamente responde: “esgoto”. Nem mesmo os adultos associam a palavra a um rio. Córrego agora é sinônimo de sujeira, poluição.
“Diferentemente do verde, que é visto como um patrimônio coletivo, eles (os córregos) passaram a ser vistos como elementos marginais, que não pertencem àquele espaço. Existia um convívio, depois, com o crescimento urbano, houve de fato um rompimento da relação com a sociedade”, afirma o geógrafo.
A canalização dos cursos d’água resultou em um fardo para Belo Horizonte e, há mais de 100 anos, ainda figura como solução única para a gestão das águas urbanas. A inauguração do Boulevard Arrudas, em 2007, ponto onde foi feito o fechamento do canal do Ribeirão Arrudas e implementadas intervenções urbanísticas para revitalização da área, com novos trechos criados nos anos seguintes, é um símbolo dessa mentalidade.
Como reflexo, hoje, dos 700 quilômetros de cursos d’água da capital, 208 estão canalizados ou revestidos, ou seja, 29,71%, segundo levantamento da Superintendência de Desenvolvimento da Capital (Sudecap). Destes, 165 quilômetros são tapados com concreto em “avenidas sanitárias” e 43 quilômetros em canal aberto. Ainda restam 200 quilômetros de rios em leito natural em BH, e outros 300 quilômetros localizados em áreas de preservação, mas a maioria está tomada por lixo e esgoto.
Cursos d’água ignorados
Ao relembrar esse histórico é comum cair no engano de que o problema seja o fato de Belo Horizonte ter sido construída em cima dos rios, quando os transtornos, na verdade, residem na problemática contraditória de os construtores da capital terem ignorado solenemente, já na planta, a riqueza de seus cursos d’água, ainda que o terreno tenha sido escolhido a dedo justamente por causa deles.
A questão dos alagamentos, na avaliação de especialistas, se assenta na díade formada pela canalização dos ribeirões e córregos, sem respeito aos traçados esculpidos pela natureza, e a crescente impermeabilização do solo. “A água da chuva tem que ficar onde ela cai. Aí ela, de repente, encontra o solo impermeabilizado. Ela vai correr toda para o fundo de vale”, afirma a professora Lilia.
Anos depois, a solução para os problemas de inundações históricas nas avenidas Teresa Cristina, ladeada pelo Ribeirão Arrudas e o Córrego Ferrugem, e da Vilarinho, que tem o córrego de nome homônimo, veio com a construção de gigantescas bacias de contenção.
Na primeira, nem mesmo os cinco reservatórios que, juntos, são capazes de armazenar 1 bilhão de litros d’água em eventos severos de chuvas, foram capazes de conter a força das águas. Outras duas bacias, com B3 e B4, que, juntas, comportam cerca de 500 milhões de litros, o equivalente a 200 piscinas olímpicas, estão em obras no trecho da avenida em Contagem.
Para o prefeito em exercício de Belo Horizonte, Álvaro Damião (União Brasil), embora o volume de precipitações tenha sido intenso, o cenário poderia ter sido ainda mais crítico não fossem as intervenções já realizadas pela Prefeitura.
“Infelizmente, os danos aconteceram. Mas as bacias que estão operando, aquelas que operam 100% e aquelas que operam parcialmente, como é aqui na Vilarinho, 60% já está funcionando. O trabalho que estamos fazendo, que o prefeito Fuad vem fazendo nos últimos dois anos, já estamos colhendo frutos. Obviamente, que a gente não queria que acontecesse nem o que aconteceu. Mas, se não tivesse a bacia da Vilarinho recebendo 60 milhões de litros d’água, ontem (quinta-feira), como ela recebeu, os danos seriam muito maiores”, afirma Damião.
Para especialistas, no entanto, a solução precisa ir além. Mesmo com o respaldo do Plano Diretor em vigor, a proibição de canalizar córregos de BH, Borsagli chama a atenção para a necessidade de uma estratégia mais concreta de recuperação dos rios. Ele cita os exemplos dos parques lineares construídos a partir do Programa de Recuperação Ambiental de Belo Horizonte (Drenurbs): o do córrego Nossa Senhora da Piedade; do córrego Primeiro de Maio; e do córrego Baleares. São locais em que se conciliam os aspectos urbanos e ambientais com áreas de uso social e aumento de área permeável. “Ao renaturalizar os cursos d’água, implantando espaços de lazer, quando vem a cheia, a água é acomodada pela área permeável e vazia ao lado”, explicou Borsagli.
FONTE: ESTADO DE MINAS