Lentamente, pequenas doses do líquido transparente escorre sobre o corpo. O cheiro marcante inunda o ambiente e o ritual sagrado, com mais de 200 anos, se mantém vivo. A cada movimento das mãos calejadas pelo tempo, homens simples da região entornam sobre a madeira de cedro um pouco de cachaça, em uma cerimônia secreta carregada de emoção.Os olhos em transe, sob o efeito da devoção, eles dão banho de aguardente na imagem do Cristo com o corpo ensanguentado. Em silêncio, o louvor chega ao ápice e a “limpeza” e a “purificação” da escultura de Nosso Senhor dos Passos chega ao fim. E assim, dá-se início à quaresma.
A escultura do século 18 tem 1,85m e é toda articulada, com tiras de couro fazendo as ligações dos braços e pernas com o tronco. Durante o banho, o Cristo fica sobre uma gamela de madeira. A “pinga benta” que escorre do corpo de cedro é recolhida e é administrada para curar feridas e ajudar os enfermos, conforme dizem os mais velhos. Da mesma forma, as roupas recém-retiradas da peça podem ser usadas por quem estiver doente.

Com uma tradição bicentenária em Minas Gerais, a cerimônia acontece sempre na quarta-feira de cinzas, em um ambiente de profundo silêncio e com a presença exclusivamente masculina. Em um clima que evoca cerimônias ancestrais, um grupo de moradores do distrito colonial de Morro Vermelho, localizado em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, dá início, às 13h, ao ritual do banho de cachaça na imagem de Nosso Senhor dos Passos.
O evento começa na entrada lateral da histórica Igreja Nossa Senhora de Nazareth, onde cada participante, assim como seus antepassados, passa com uma garrafa de aguardente. De acordo com a tradição, os homens também levam manjericão, rosmaninho e outras ervas aromáticas. Morro Vermelho abriga 800 habitantes e está situado a oito quilômetros do Centro Histórico de Caeté.
Na quarta-feira de cinzas, a imagem de Nosso Senhor dos Passos, datada do século 18, é retirada do altar. De pé, vestida com manto roxo, a escultura é respeitosamente despida pelos moradores e alguns visitantes – todos maiores de 18 anos, pois a presença de menores não é permitida –, que rezaram o Pai-nosso e solicitaram bênçãos. Em seguida, a escultura de cedro foi banhada em aguardente.



Esse ato, segundo a tradição, visa proteger a madeira da deterioração ao longo dos anos e evitar que seja infestada por cupins. Curiosamente, essa é a única peça sacra da Matriz Nossa Senhora de Nazareth que ainda não foi atingida por esses insetos. A sabedoria popular afirma que a bebida alcoólica tem baixa penetração na madeira e se evapora rapidamente.
Visita na zona rural
O distrito de Morro Vermelho possui uma tradição secular distinta. Durante o período da quaresma, uma pequena imagem de Nosso Senhor dos Passos visita as comunidades rurais vizinhas de Caeté, Barão de Cocais, Raposos, Sabará e Santa Bárbara, que são convidadas a participar das celebrações da semana santa no povoado. Segundo a tradição, a imagem não deve atravessar áreas urbanas. Ela é transportada em uma charola, um pequeno andor decorado, e frequentemente passa a noite na casa dos fiéis. Há aproximadamente 30 anos, uma devota acendeu uma vela e, tragicamente, o fogo consumiu a escultura de madeira, que datava do século 19. A solução foi criar uma nova imagem, o que não afetou a continuidade da tradição nem diminuiu a devoção do povo.
Cerimônia documentada
No dia 1º de fevereiro de 2013, conforme relatado pelo Estado de Minas, o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) documentou o ritual do banho com cachaça da imagem de Nosso Senhor dos Passos, como parte de um inventário sobre as tradições da Semana Santa. Pela primeira vez em 200 anos, mulheres tiveram a oportunidade de presenciar alguns momentos desse ritual antes do banho. Com essa cerimônia, o Iepha iniciou o projeto Ritos da Quaresma e Semana Santa.
Com informações de Gustavo Werneck (EM)
Fotos: Beto Novaes e Jorge Lopes/EM