Organização Mundial de Saúde afirmou que quadro afeta a qualidade de vida das pessoas e atinge, principalmente, os jovens e idosos
Em janeiro, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a solidão como uma epidemia global, ao criar a Comissão Internacional para Conexão Social, afirmando que o crescente isolamento social tem se revelado uma ameaça grave à saúde física, psicológica e emocional das pessoas ao redor do mundo. De acordo com o levantamento da organização, os jovens e os idosos seriam os mais atingidos pela solidão, numa média de uma em cada quatro pessoas afetadas nesses segmentos.
O nutricionista Breno Souza, de 24 anos, acredita que “a gente tem se afastado do convívio social e talvez estejamos a caminho de uma epidemia”. “Converso mais nas redes sociais do que pessoalmente”, admite ele, que, no entanto, pondera que “a rede social pode ser uma alternativa para manter contato com pessoas que estão longe”. Nos momentos de solidão, ele utiliza a “corrida e a atividade física” como contraponto.
Agente administrativa, Eleusa da Silva, de 32 anos, conta que se sente “sozinha, vazia e ansiosa” durante as interações virtuais. “Porque é um celular, não é a mesma coisa de estar conversando e interagindo com uma pessoa”. No momento, ela observa que as “redes sociais estão afastando as pessoas e os encontros presenciais diminuíram muito”. Para enfrentar esse vazio, a auxiliar de cozinha Ludmila Calixto, de 25 anos, tomou uma decisão drástica. “Desinstalei todos os aplicativos do celular, se as pessoas quiserem falar comigo, têm que me ligar, é uma paz terrível”, caracteriza.
Ludmila conta que, ao lado da esposa, tem experimentado uma “solitude muito gostosa”. “O Instagram me deixava muito ansiosa, só via coisas que faziam eu me sentir sozinha”, declara. Bombeiro hidráulico, Alessandro da Silveira, de 52 anos, recorre à fé. “Não me sinto sozinho porque me dedico apenas às coisas que me completam. Oro à Deus, vou à igreja”, relata.
Comparação
A psicóloga e psicanalista Vanessa Teixeira pontua que a sociedade contemporânea tem lidado com “uma altíssima exposição ao recorte dos melhores momentos” da vida das pessoas, propiciados pelas redes sociais, fator decididamente atrelado à epidemia de solidão declarada pela OMS.
“Essa é uma questão da qual temos falado à exaustão e que parece batida, mas ainda assim nos afeta porque o aspecto visual tem um grande poder de captura sobre a nossa espécie. Ou seja, mesmo que a gente cognitivamente esteja informado de que aquilo que o outro posta na rede social é apenas um recorte, ainda assim somos afetados e levados a acreditar naquela imagem, o que acaba nos dando a sensação de fracasso”, analisa.
Ao olhar para “aquela janela toda calculada que é a imagem do outro na rede social”, a suposição seria a de que “a vida está acontecendo lá, ao invés de aqui dentro”, num ímpeto de comparação que tende a ampliar essa incômoda sensação de vazio.
“Está todo mundo amando, com o parceiro perfeito, o melhor casamento, filhos incríveis, amigos maravilhosos, em eventos chiques, gostosos, badalados, e eu aqui sobrando? Sem lugar? A pessoa faz esses questionamentos e é como se ela caísse de um lugar ao qual não pertence mais, o que vai trazer a tristeza pela sensação de inadequação”, explica Vanessa. Em muitos desses casos, “quem está sozinho acredita não ser bom o suficiente”, complementa.
Experiência
Em sua clínica, a psicóloga observa cotidianamente “um aumento significativo da sensação de solidão”. Entre as principais queixas dos pacientes, estaria “a impaciência com as diferenças e o tempo do outro, uma certa pressa e o medo de ser julgado”. A decisão frequente estaria sendo se isolar.
Outro fator recorrente que ela aponta é o trauma causado pela pandemia de Covid-19. “Muitas pessoas ainda não se recuperaram desse choque. Vivemos uma proximidade com a morte e a fragilidade do corpo e das estruturas socioeconômicas de maneira muito intensa. Nós, enquanto sociedade, não realizamos o devido luto dessa experiência”, sublinha.
Fatores sociais como o aumento da violência e as dificuldades econômicas contribuem igualmente para uma espécie de “ressentimento com o outro” que leva a rejeitar a interação. Aplicativos virtuais em que a pessoa literalmente “monta” um parceiro amoroso ou amigo segundo as características que deseja têm sido utilizados por algumas pessoas para vencer a solidão, sem precisar lidar diretamente com o outro. Todavia, o fato de ser construído seguindo orientações do gosto da pessoa pode dificultar “justamente a riqueza das relações, baseada em conhecer o diferente”.
Individualismo
Vanessa critica o que ela entende como uma “demanda cultural por um individualismo exacerbado”. “Somos seres gregários por natureza, e esse ideal do empreendedor de si mesmo, de que damos conta de tudo e não precisamos de ninguém, acaba gerando um ciclo de solidão que afeta as pessoas. Até mesmo para sobreviver precisamos do outro. Adoecemos, o corpo envelhece, sofremos imprevistos e aí precisaremos de contar com alguém ao nosso lado”, reforça a especialista.
A saída, talvez, seja substituir o imperativo moderno da “independência” pela “solidariedade”, palavra que caiu em desuso a ponto de se tornar quase anacrônica. Como anota o crítico literário Antonio Candido (1918-2017), “o individualismo extremo, depois de se desenvolver largamente, revela o seu vazio e atira o indivíduo, de novo, à necessidade de amparo e comunhão”.
Como estratégias para vencer essa solidão moderna, Vanessa propõe a criação de uma legislação trabalhista que permita às pessoas um “tempo para o lazer, o estudo, e atividades com a família e os amigos”. “Quando os seus contatos visam apenas ganhos para o seu negócio, sofremos uma perda crescente de afeto pelos outros. E afeto solto é angústia”, conclui.
Recolhimento pode ser positivo
A psicanalista Vanessa Teixeira não deixa de lembrar a existência dos “solitários convictos”, pessoas que preferem “não andar tanto em bando e priorizam relacionamentos mais íntimos”.
Esse tipo de solidão, que não vem acompanhada pela tristeza, é descrito por ela como “solitude”, pegando emprestado o termo utilizado pelo psicanalista Christian Dunker. Vanessa destaca que a expressão apareceu pela primeira vez na poesia do século XVIII, carregando a ideia de “se estar só com os próprios pensamentos, seu ócio, suas dúvidas e sensações…”.
“Algumas pessoas fazem essa opção de se recolherem para pensar, passar um tempo sem tanto estímulo externo, numa separação do outro temporária”, analisa Vanessa. A vantagem desse movimento reflexivo seria justamente o de formar um pensamento crítico acerca da sociedade.
“A gente tem uma tendência de se ‘colar’ na massa, de ver uma imagem de como as pessoas agem e acreditar que aquilo tem que ser feito por todos, inclusive nós mesmos. É meio que andar na manada. Mas é importante que a gente pare e pense o que queremos para a nossa vida, ao invés de apenas seguir os fluxos, pois as consequências serão sentidas por nós, e não pelos outros”, arremata.
FONTE: O TEMPO