Na Sexta-Feira da Paixão, fiéis percorrem pontos da via-sacra em Mariana e Sabará, onde tradição, história e a bela paisagem se fundem à devoção
Na manhã de Sexta-feira da Paixão, no interior de Minas, grupo de fiéis caminha até o topo de montes, onde há cruzeiros, monumentos e pequenas capelas para preces e momentos de reflexão – do alto, a paisagem é sempre um espetáculo. No único dia do ano sem missa e toque de sinos, com o silêncio quebrado pelo som das matracas, homens e mulheres seguem rezando e parando nos pontos da via-sacra. Em Mariana, na Região Central, os peregrinos saem, às 6h, da frente da Catedral Basílica Nossa Senhora da Assunção, a Sé de Mariana.

Nesta segunda reportagem da série “Paixão e fé – Espaços sagrados”, a equipe do Estado de Minas vai até a Cartuxa de Dom Viçoso, como o local é mais conhecido, na companhia do reitor e pároco da Sé de Mariana, padre Geraldo Dias Buziani. Já em Sabará, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), os repórteres visitam o Morro da Cruz, escutando, atentamente, as explicações de Nilza Leonardo da Silva, de 64 anos, que, desde criança, percorre a Via-sacra da Penitência.
O primeiro dos dois destinos é o Morro da Cartuxa, ponto distante seis quilômetros do Centro de Mariana. “Além da Sexta-feira da Paixão, todo dia 13 tem essa peregrinação. Aqui viveu e morreu dom Viçoso”, explica o padre Geraldo Buziani. Com a imensidão verde à frente se emendando às construções coloniais, torna-se primordial entender o significado da Cartuxa e conhecer um pouco mais sobre o sétimo bispo de Mariana, dom Antônio José Ferreira Viçoso (1787-1875).

Bispo da diocese de Mariana (atual arquidiocese) de 1844 a 1875, o português Dom Viçoso ingressou no noviciado da Congregação da Missão, em Lisboa, em 1811, sendo ordenado padre lazarista sete anos depois. Veio de Portugal para fundar missões na então província de Mato Grosso, mais tarde dirigindo o Colégio do Caraça (hoje Santuário do Caraça, em Catas Altas, a 120 quilômetros de BH). Em processo de canonização, Dom Viçoso recebeu (2014) o título de Venerável, em reconhecimento a suas virtudes heroicas.
No alto do morro, se encontram a modesta casa, um cruzeiro com uma vista magnífica e muitas árvores. Nesse cenário, o repórter aprende o significado de Cartuxa, que se refere à ordem religiosa (os monges cartuxos vivem em clausura) fundada por São Bruno, no século 11, de quem dom Viçoso era devoto. Importante destacar, no trabalho dele, a preocupação com a educação e o futuro das jovens. Em 1848, trouxe da França as irmãs vicentinas para criar, em Mariana, o Colégio Providência, primeira escola feminina de Minas. É dele a frase: “Somente educando a mulher, oferecendo-lhe uma boa condição cultural, é que teremos uma sociedade mais civilizada e preparada para dar à pátria cidadãos completos. Não vos esqueçais de que a mulher, sobretudo a mãe, será sempre a primeira mestra”.
LUGAR HUMILDE
O lugar onde Dom Viçoso gostava de ficar é simples, conforme mostra padre Geraldo, ao lado de Waldir Souza de Jesus, zelador do espaço administrado pela Arquidiocese de Mariana. Os visitantes podem ver alguns pertences, como um baú e a cama, sobre a qual está escrito: “Nesta cama, Dom Viçoso descansou o corpo e entregou a Deus o seu espírito”.
“Subir a Cartuxa de Dom Viçoso” significa sacrífico e busca de paz, acredita a empreendedora e presidente do Instituto Roque Camêllo, Merania Oliveira. Admiradora da vida e obra do bispo, ela se considera “miraculada”, pois já recebeu graças por sua intercessão, e lembra que, a ele, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) dedicou o poema “Santo particular”.
VIA-SACRA EM SABARÁ COMEÇA DE MADRUGADA
O Sol nem nasceu ainda quando centenas de fiéis de Sabará (RMBH), também uma das cidades do Ciclo do Ouro, partem da Igreja São Francisco, no Centro Histórico, em direção ao Morro da Cruz. Lá no alto, fica a Capela Senhor Bom Jesus, de meados do século 19, ponto final da centenária peregrinação da Sexta-feira da Paixão.
São 4h quando, ao som das matracas, religiosos e leigos sobem a ladeira com a imagem de Nossa Senhora das Dores. Até o singelo templo, distante dois quilômetros do Centro Histórico, serão 14 paradas representando a via-crúcis de Jesus – da prisão ao calvário. “Nossa Senhora das Dores vai parando em cada uma delas, vendo os locais do flagelo do filho”, conta Nilza Leonardo da Silva, de 64, ministra da eucaristia na Paróquia Nossa Senhora do Rosário.

Moradora da Rua Santa Cruz, no ponto onde fica a décima estação da Paixão de Cristo (“Jesus é despojado de suas vestes”), Nilza acompanha a via-sacra desde criança. A exemplo dos demais católicos participantes do cortejo, guarda a cruz que, na sexta-feira, segura durante a passagem do andor com a imagem de Nossa Senhora das Dores.
Momento de profunda demonstração de fé, respeito aos ritos católicos e preservação da cultura da tricentenária da cidade que mantém extensa programação, no período, nas igrejas barrocas. Missas, procissões, bênçãos e outras cerimônias vindas do século 18 fazem da Semana Santa um espetáculo de devoção e beleza.
Depois de caminhar por duas horas na madrugada, os fiéis fazem reflexão no morro da cruz, com a cidade a seus pésJuarez Rodrigues/EM/D.A Press – 6/4/07
PAISAGISMO
Do alto do Morro da Cruz, moradores e visitantes têm a cidade a seus pés. Dona Nilza se mostra orgulhosa das tradições sabarenses e diz que um grupo de amigos do Bom Jesus tem planos para a área externa, com plantio de árvores e flores em torno da construção de arquitetura simples, que está restaurada e tem tombamento municipal.
Na porta de casa, ao lado da cadelinha Marri, Nilza conta o desfecho do cortejo: “A caminhada penitencial termina por volta das 6h. Como não há missa nesse dia, é feita uma reflexão sobre a Paixão de Cristo, na janela da capela, e depois as pessoas descem em direção à Igreja Nossa Senhora do Rosário.”
O pesquisador José Bouzas revela que as cerimônias paralitúrgicas em Sabará, fruto da devoção popular, têm, no mínimo, 100 anos. “Recente só mesmo a encenação da Paixão de Cristo, iniciada em 1969. Trata-se de um espetáculo grandioso, com início às 19h, na Sexta-feira da Paixão. Em seguida, tem a Procissão do Enterro.”
FONTE: ESTADO DE MINAS