Comunidade rural de Belo Vale tem história contada em biografia da matriarca, dona Delina, de 81 anos. Casarão centenário testemunha saga familiar
Faz exatamente 18 anos que estive, pela primeira vez, na comunidade rural Noiva do Cordeiro, em Belo Vale. Lembro como se fosse hoje: numa manhã ensolarada, eu e o fotógrafo Beto Novaes chegando para conhecer – e contar, aqui no EM – a história de centenas de mulheres, lavradoras, vítimas de preconceito, segregação, infâmia ao longo de décadas. Desde aquele maio de 2007, voltamos outras vezes, documentamos transformações, mas nada se compara ao cenário encontrado no domingo passado (18/5).
Com alegria redobrada, a comunidade estimada hoje em 370 pessoas, com um centenário casarão que testemunha a história, fez festa para o lançamento do livro “Delina Fernandes Pereira – Matriarca da Noiva do Cordeiro”, escrito por Márcia Fernandes. Trata-se da biografia da mãe de 12 filhos, incluindo a autora, que sempre manteve a família unida diante de tenebrosas adversidades.
Sorridente e pronta para iluminar o futuro, Delina se lembrou, agradecida, da primeira reportagem “Herança de preconceito”, que abriu horizontes e marcou um novo tempo para as moradoras da localidade distante 20 quilômetros da sede municipal. A partir daquele momento, elas começaram a ser vistas com outros olhos, e, passo a passo, a interagir com a sociedade local. Turistas e jornalistas de vários países chegaram a Belo Vale para conhecer Noiva do Cordeiro. E a comunidade ganhou o mundo.
O orgulho bate forte no peito, e se materializa na primeira escola de informática da zona rural de Minas, que chegou em 2006. Hoje, o lugar tem acesso asfaltado e com placas de sinalização, supermercado, posto de saúde e escola formal (custeada pela família Noiva do Cordeiro), fábrica de produtos pet, muitas atividades culturais (aos sábados, abertas ao público) e as lavouras de hortaliças e grãos, celeiro da subsistência. Tudo é coletivo, compartilhado, conversado.
Outros tempos
Para entender melhor essa história, é preciso voltar mais de um século no tempo. Tudo começou no fim do século 19, quando Maria Senhorinha de Lima, natural do povoado próximo de Roças Novas, se casou com um descendente de franceses, Arthur Pierre. Três meses depois, sentindo-se infeliz, abandonou o lar e foi morar com Francisco Pereira de Araújo, conhecido por Chico Fernandes. A atitude de Senhorinha foi condenada e ambos rotulados de prostitutos, pecadores, sendo amaldiçoada sua descendência por gerações. Nos anos seguintes, em toda a redondeza, a atitude corajosa da mulher ganhou, à luz da religião e do moralismo, mais olhares de reprovação.
Seguindo em frente, o casal construiu sua morada (o casarão) e criou nove filhos. A situação se complicou novamente em meados do século passado, quando Anísio Pereira, neto de Francisco e marido de Delina, fundou a seita protestante Noiva do Cordeiro, que batiza o lugarejo, e converteu toda a família, agravando as relações com parentes vizinhos católicos. Novo período de polêmica e perseguições.
O sopro das mudanças veio em 1993, dois anos antes da morte de Anísio. A partir daí, houve um rompimento que abalou a estrutura familiar, ficando no local, onde todos são parentes, apenas os que defendiam uma sociedade temente a Deus, embora sem qualquer religião. Na sequência, as mulheres se tornaram presa fácil da maledicência, das injúrias e do abominável preconceito, ainda mais porque os homens saíam para trabalhar e elas ficavam em casa, dividindo o tempo entre serviços domésticos e a lida na terra. Se iam à escola, eram humilhadas; se tentavam marcar uma consulta médica, preteridas. Na rua, apontavam-lhes o dedo. Assim, ficaram no isolamento.

Grande amor
Na biografia, dona Delina abre o coração ao falar sobre a avó, Maria Senhorinha: “Uma mulher corajosa, que ousou escutar a própria alma, mesmo que isso significasse romper com tudo o que era considerado correto pela sociedade da época. Ela não aceitou o casamento arranjado pelos pais…e escolheu viver um grande amor com o homem que realmente desejava: Chico Fernandes. Para os padrões da época, essa atitude foi um escândalo. Um ultraje. A sociedade, presa às suas regras rígidas, não conseguia aceitar um amor que não se encaixava nas molduras impostas”.
A vida segue em harmonia na Noiva do Cordeiro, com trabalho e união. “Se tive um problema com alguém, peço desculpas na frente de todo mundo”, diz um lavrador. “Não temos leis, normas, apenas respeito por nós e pelo coletivo”, acrescenta uma moradora. Para adquirir o livro, acesse o Instagram @lojanoivadocordeiro, envie email para [email protected] ou ligue para (31) 99715-4683.
FONTE: ESTADO DE MINAS