Com a nova lei 15.240/25, o abandono afetivo vira ilícito civil, fortalece o princípio da afetividade, consolida decisões do STJ e tribunais estaduais, permite indenização a filhos profundamente prejudicados e reduz contradições em casos de pais ausentes que pagam pensão, mas ignoram completamente o cuidado emocional e a convivência cotidiana.
Em 2025, a sanção da nova lei 15.240/25 colocou no papel um debate que há anos crescia nos tribunais brasileiros, ao reconhecer o abandono afetivo como ilícito civil sujeito à responsabilização por danos morais. A partir desse marco, pai ou mãe que se omite do convívio e do cuidado emocional, mesmo reconhecendo a paternidade, pode ser cobrado na esfera patrimonial quando o sofrimento psíquico do filho for comprovado.
O tema ganhou ainda mais visibilidade após as declarações públicas de Narcisa Tamborindeguy, que afirmou que o ex-companheiro, o diretor de TV Boninho, teria sido um pai ausente, criticando a falta de apoio afetivo e financeiro ao longo da criação do filho. Embora se trate de um relato pessoal, o caso ilustra como a discussão sobre abandono afetivo saiu do campo privado e entrou definitivamente no radar jurídico e social, num momento em que a nova lei passa a orientar a análise dos juízes.
O que diz a nova lei sobre abandono afetivo
A nova lei do abandono afetivo torna expresso no ordenamento jurídico brasileiro que a parentalidade não se limita ao sustento material.
Ela positivou o dever de assistência afetiva, estabelecendo que pais e responsáveis legais devem oferecer orientação, apoio, presença e solidariedade emocional no exercício da parentalidade.
Na prática, isso inclui acompanhar a vida escolar, orientar escolhas educacionais, culturais e profissionais, estar presente em momentos de sofrimento, ouvir demandas emocionais e garantir, sempre que possível, a presença física quando a criança ou o adolescente solicita.
A omissão reiterada nessas dimensões, quando comprovada, pode configurar abandono afetivo como ilícito civil.
Segundo a advogada Maria Eduarda Omena, especialista em Direito de Família e Sucessões, a nova lei busca eliminar dúvidas que ainda sobreviviam na jurisprudência.
Ao deixar claro que o cuidado emocional integra os deveres jurídicos da parentalidade, o texto desloca o tema do campo abstrato do amor para o plano concreto da responsabilidade civil, reforçando que o que está em jogo não é o sentimento, mas a conduta de cuidado.
A advogada destaca também que a lei se conecta ao art. 4º, parágrafo 2º, do ECA, deixando nítido que, embora família, sociedade e Estado compartilhem o dever de proteção, a responsabilização pela assistência afetiva recai apenas sobre os responsáveis legais da criança ou do adolescente.
São esses responsáveis que poderão ser acionados judicialmente em caso de omissão.
Jurisprudência que abriu caminho para a nova lei
Muito antes da entrada em vigor da nova lei, decisões judiciais já reconheciam o abandono afetivo como fato gerador de indenização.
Desde pelo menos 2012, juízos de 1ª instância passaram a responsabilizar civilmente pais que, cientes da paternidade, se afastaram de forma reiterada do convívio e do cuidado com os filhos, limitando a relação à obrigação alimentar.
Em um dos casos, o magistrado ressaltou que não se trata de “precificar o amor”, e sim de punir a violação de um dever legal de cuidado, especialmente quando comprovados danos psicológicos duradouros.
Nesses processos, indenizações foram fixadas entre cerca de 22 mil e 100 mil reais, variando conforme a extensão do abandono e o impacto sobre a vida da vítima.
Esse entendimento foi ganhando corpo nos tribunais estaduais. Cortes como TJ/MG, TJ/GO e TJ/SP passaram a manter condenações por abandono afetivo inclusive em situações em que havia algum grau de cumprimento do dever material, como o pagamento de pensão.
Nessas decisões, ficou claro que o cumprimento da obrigação alimentar não afasta a obrigação de prestar assistência emocional, de acompanhar o desenvolvimento do filho e de estar presente no cotidiano.
Em alguns casos, o reconhecimento do abandono afetivo levou até à exclusão do sobrenome paterno do registro civil, diante do sofrimento psíquico provocado pela manutenção de um vínculo formal esvaziado de conteúdo afetivo.
Para os julgadores, manter o nome de um genitor totalmente ausente reforçava a dor e a sensação de rejeição.
Virada no STJ e fortalecimento do dever de cuidar
A virada interpretativa decisiva ocorreu em 2012, quando a 3ª Turma do STJ reconheceu expressamente a possibilidade de indenização por abandono afetivo.
Relatora do caso, a ministra Nancy Andrighi afirmou que não há impedimentos à aplicação da responsabilidade civil no Direito de Família e destacou que o cuidado é valor jurídico essencial, com influência direta na formação da personalidade da criança.
Desde então, o STJ vem repetindo a ideia de que não se discute o dever de amar, mas o dever legal de cuidar, separando o abandono afetivo das obrigações alimentares e do poder familiar.
A Corte passou a destacar que o afeto, enquanto sentimento, não é exigível, mas a omissão parental em relação ao cuidado mínimo, quando comprovada, pode gerar dano indenizável.
Em julgamento mais recente, o tribunal também admitiu a desconstituição da paternidade registral quando demonstrada a completa ausência de vínculo socioafetivo e o descumprimento do princípio da paternidade responsável.
Com a nova lei, esse conjunto de precedentes ganha reforço normativo, reduzindo o espaço para interpretações que negavam a aplicação da responsabilidade civil em situações de omissão grave.
Decisões que negavam indenização e o vácuo normativo
Apesar desses avanços, a jurisprudência não foi uniforme ao longo do tempo. Antes da nova lei, alguns julgados rejeitaram pedidos de indenização por abandono afetivo com o argumento de que o Judiciário não poderia intervir na esfera dos sentimentos nem promover a chamada “judicialização do amor”.
Em 2017, por exemplo, decisões da 1ª Vara Cível de Ceilândia, no Distrito Federal, e do TJ de Santa Catarina afastaram a responsabilização civil.
Nessas ações, embora tenha sido reconhecido o dever alimentar, a reparação por dano moral foi negada por falta de prova suficiente de dano ou por entender que certos conflitos familiares não encontrariam solução adequada no processo judicial.
Esses julgados evidenciaram um vácuo normativo. Enquanto alguns juízes condenavam pais ausentes com base em princípios constitucionais e no melhor interesse da criança, outros rejeitavam pedidos semelhantes por considerar que o Direito não poderia interferir no campo afetivo.
A nova lei 15.240/25 surge justamente para preencher esse espaço de incerteza, definindo o dever de assistência afetiva e oferecendo parâmetros objetivos para a análise do abandono.
Ao trazer para o texto legal obrigações concretas de orientação, apoio, presença e solidariedade emocional, a nova lei desloca o debate do amor como sentimento para o cuidado como conduta verificável, reduzindo a margem para decisões contraditórias e ampliando a segurança jurídica de quem busca reparação.
Como a nova lei afeta pais, mães e responsáveis legais
Segundo Maria Eduarda Omena, a nova lei deixa claro que a ausência de assistência afetiva consistente pode gerar consequências jurídicas relevantes.
Em ações de alimentos, de guarda ou de regulamentação de convivência, a falta de participação emocional, quando demonstrada de forma robusta, pode ser reconhecida como abandono afetivo e dar origem a pedidos de indenização por danos morais.
Nesses casos, crianças e adolescentes, representados legalmente, poderão processar pais ou responsáveis legais para buscar reparação pelos danos causados pelo afastamento emocional prolongado.
A responsabilização civil não substitui a pensão alimentícia nem resolve o conflito familiar por completo, mas funciona como uma forma de compensação pelo prejuízo psicológico e social decorrente da omissão.
A advogada enfatiza que, embora o cuidado de crianças e adolescentes seja um dever compartilhado entre família, sociedade e Estado, a responsabilização pela assistência afetiva recai exclusivamente sobre os responsáveis legais, nos termos do ECA.
Isso significa que a esfera de responsabilização é bem delimitada, evitando que o dever de cuidado seja transferido para terceiros que não exercem a titularidade da responsabilidade legal.
Na avaliação de Omena, a nova lei fortalece o princípio da afetividade, já reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência, ao lhe atribuir previsão expressa.
O dever de assistência passa a interagir com as demais obrigações parentais, somando-se ao dever de sustento.
Em outras palavras, não basta pagar pensão. Os responsáveis devem oferecer afeto, atenção, convivência e suporte emocional de forma contínua, dentro das possibilidades reais de cada família.
Casos midiáticos e impacto prático nos próximos anos
Episódios com grande repercussão pública, como o relato de Narcisa Tamborindeguy sobre o suposto afastamento emocional e financeiro de Boninho na criação do filho, mostram que o abandono afetivo não é apenas um conceito jurídico abstrato, mas uma experiência concreta para muitos filhos que cresceram sem a presença de um dos genitores.
Ao mesmo tempo, revelam como situações familiares complexas podem ganhar nova leitura à luz da nova lei.
Com o novo marco legal em vigor, a tendência é que ações judiciais ganhem maior previsibilidade, já que juízes passam a contar com base legal clara para enquadrar a omissão parental como ilícito civil.
Cada caso, no entanto, continuará a depender de provas consistentes da conduta omissiva e do dano psicológico sofrido pela criança ou pelo adolescente.
Especialistas avaliam que a nova lei pode tanto estimular mudanças de comportamento e acordos extrajudiciais quanto aumentar o número de processos por abandono afetivo.
O grande desafio será equilibrar a proteção integral de crianças e adolescentes com o cuidado para não transformar qualquer conflito familiar em disputa indenizatória, preservando o uso responsável desse instrumento jurídico.




