Na noite de 16 de abril de 2025, a Matriz de São Sebastião se tornou espaço consagrado à arte sacra do barroco e ao silêncio que canta. O Ofício de Trevas, cerimônia da Quarta-feira Santa, reuniu um público comovido e atento, em número crescente a cada ano, para reviver, em som e sombra, a agonia de Jesus no Horto das Oliveiras — um dos momentos mais pungentes da tradição cristã.
O evento, sob a coordenação do Padre Daniel Marcos, vem se firmando como um dos pontos altos da Semana Santa em Conselheiro Lafaiete. Não apenas pela liturgia, mas por sua altíssima qualidade artística, que dialoga com o barroco mineiro, a emoção popular e a contemporaneidade da dor e da esperança.
A delicadeza da preparação: o tempo antes do tempo
Foram dois meses e meio de ensaios, intensos, delicados, exigentes. As noites dedicadas ao Ofício começavam com aquecimentos vocais, mas também com conversas sobre o sentido profundo de cada texto cantado. O Madrigal Roda Viva, sob direção de Geraldo Vasconcelos, tratou cada responsório como um relicário.
“Cada nota é uma oração. O músico de ofício barroco precisa ser artesão do silêncio, do afeto e da escuta. É preciso compreender a dor de Cristo como a dor do nosso povo: dos invisíveis, dos esquecidos, dos que clamam por justiça,” diz Vasconcelos.
Nos bastidores, não faltaram dúvidas, ajustes, risos e comoção. Houve noites em que o cansaço quase venceu — mas a força do coletivo, a mística do grupo, sempre reerguia os ânimos.
O tenor Juarez Marçal, emocionado, comentou: “A cada ensaio, eu pensava nos que sofrem em silêncio. Quando cantei o Miserere, não era só a minha voz: era a voz de muitos.”
O repertório como manifesto
O programa reuniu joias da música colonial mineira. O destaque ficou por conta dos Responsórios das Matinas de Jerônimo de Sousa Queirós, figura ainda pouco conhecida fora do circuito erudito, mas cuja obra revela uma linguagem rica, dramática e profundamente humana. A escolha foi proposital.
“Dar voz a um compositor mineiro do século XVIII é também uma forma de devolver à nossa história aquilo que é dela por direito — e de mostrar aos jovens que há um Brasil profundo, musical, que pulsa desde sempre,” explica Vasconcelos.
O Salmo 50 – Miserere, de Manoel Dias de Oliveira, foi outro ponto alto. A contralto Andreia Marçal, e a soprano Giselda Rodrigues fizeram dos solos, dramaticidade, denuncia e súplica coletiva.
Repercussão: um acontecimento que transforma
Nos bancos da igreja, olhos úmidos, silêncios reverentes e muitos comentários que se tornaram testemunhos. A senhora Conceição Amarante, 73 anos, disse: “Nunca ouvi algo tão profundo. Parece que a igreja, emocionada, chorava com a gente.”
O jovem Lucas Henrique, estudante do ensino médio, revelou: “Fui porque minha avó insistiu. Saí impactado. Eu não sabia que a música podia ser uma oração com tamanha profundidade e reflexão.” Camila Barbosa, que veio direto do plantão, disse: “Foi um bálsamo. Ouvir aquela música depois de um dia difícil foi como curar a alma.”
Um encontro harmonioso: Terra Sonora e Roda Viva
A presença do Quarteto Terra Sonora, de Mariana, conferiu brilho instrumental ao evento. Com Gustavo Fechus (violino), Maria Emília Dutra (flauta), Everson Oliveira (cello) e Vitor Gomes (órgão), o grupo se encaixou com naturalidade ao corpo do Madrigal. “A gente respirava junto. Foi como se as vozes e os instrumentos tivessem nascido para aquela noite,” comentou o baixo Ademar Serrano. Vasconcelos não esconde a admiração: “O Terra Sonora é composto por músicos de excelência. Têm escuta generosa, profundo domínio técnico e uma alma artística que inspira.”



Um gesto de renovação: a regência compartilhada
Num momento de simbólica grandeza, a maestra Édila Shirley, presidente do Roda Viva, a convite do Maestro Vasconcelos, assumiu a regência da antífona inicial. Com movimentos suaves e firmes, trouxe uma leitura expressiva e cativante.
“Conduzir o coro ali, diante da assembleia, foi uma emoção que não cabe em palavras. Era como se eu estivesse sustentando a fé de todos com as mãos,” disse Édila, visivelmente comovida. “Inovar é necessário. Ver Édila reger com tanta precisão e elegância foi inspirador.”
Um compromisso com o futuro
No encerramento, Padre Daniel Marcos agradeceu emocionado a todos os envolvidos e anunciou a continuidade do projeto: “Em 2026, o convite já está feito. Queremos novamente o Madrigal Roda Viva e o Terra Sonora aqui.
E, assim, ano após ano, nota por nota, a celebração do Ofício de Trevas em Lafaiete constrói seu lugar no tempo. Não apenas como tradição religiosa, mas como experiência estética, comunitária e profundamente humana — onde a beleza e a dor se abraçam, e a arte se transforma em travessia.
Para além do ofício de trevas, mas em consequência das reflexões que o mesmo proporciona, sobre o convite para a Professora Édila reger a abertura da cerimônia, Geraldo Vasconcelos disse: “Não se trata apenas de um gesto simbólico: trata-se de justiça. Dar lugar à regência da Maestra Édila Shirley é reconhecer a competência, a história e a presença potente das mulheres que sustentam a música coral com coragem e excelência. As batutas femininas ainda enfrentam o silêncio imposto por séculos. Que esta regência inicial, delicada e firme, seja o fortalecimento de um tempo, onde as mulheres estejam naturalmente no pódio da vida. A presença da maestra à frente do coro é uma afirmação de que a arte precisa refletir a sociedade que queremos: diversa, justa e plural. É um passo necessário para que a beleza do gesto não se perca no eco de um mundo ainda desigual.”
“Convidar Maestra Édila a reger foi também uma forma de dizer: aqui, a música não compactua com a exclusão. Aqui, ela é voz de afirmação. O toque da regente mulher, ainda tão raro nos altares e palcos, é força que nos ensina sobre escuta, sensibilidade e resistência. É urgente reverenciar o protagonismo feminino em nossa cena musical.”