2 de maio de 2024 00:05

Revisitando o histórico ano de 1842

No ano em que Movimento de 1842 completa 180 anos de seu acontecimento, alguns fatos, talvez desconhecidos, devem ser (re)contados, rememorados, trazidos ao momento presente e submetê-los às interpretações e às descobertas neles tão intrínsecas .

O texto aqui trazido por mim, é  tão grande e  valorozo seu contexto que não me atrevo a dele retirar uma só um só excerto, uma só palavra. Transcrevo-o na íntrega. Sua riqueza de detalhes equipara-se, talvez, à  sua importância histórica. Quem nos presenteia com essa descrição encantadora revelarei, ao final do texto.

Eis o que transcrevo:

“A casa em que morei em Queluz é a que fica defronte da matriz e que ocupa toda a frente do largo entre a rua Direita e a outra que passa pelo lado oposto. Quase toda de pedra, a madeira que nela se empregou é tão grossa e de tal qualidade, que faz gosto vê-la  que ao mesmo tempo admira. Entretanto, esta casa foi comprada algum tempo depois da revolução pela insigni-ficante quantia de dois ou três contos de réis.

Quando nela morei, ainda se viam em diversos lugares os sinais das balas que a haviam ferido no combate de 26 de julho de 1842; combate este de que a suma é a seguinte: Tendo na véspera à noite sido a vila flanqueada pelas forças do capitão Marciano Pereira Brandão, que se emboscaram nas estradas de Congonhas, Suassui e Ouro Preto, no dia 26 foi atacada do lado do Lavapés pela coluna do Coronel Antônio Nunes Galvão e do lado das Bananeiras pela do Coronel Francisco José de Alvarenga. O exército da legalidade que defendia Queluz, tinha estado ao mando do comandante das armas José Manuel Carlos de Gusmão; tendo, porém, este, poucos dias antes, se retirado para Ouro Preto, no dia do combate era o exército comandado pelo brigadeiro Manuel  Alves de  Toledo Ribas.

Como em quase todos os combates a que assistiu o presidente rebelde, neste combate de Queluz o papel proeminente ou o mais brilhante ainda veio a caber ao bravo e infatigável Coronel Galvão. Galvão, entretanto, já era velho e de mais a mais um velho achacoso, Tão adoentado se achava no combate de Santa Luzia, que mesmo no momento mais crítico daquela ação, foi atacado de uma forte síncope que o impedia de continuar a combater; mas tal era a sua força de ânimo e de vontade, que apesar do estado enfermo em que se achava, desde que asi tornou e que pôde dar ordens, desde logo as deu e tão sábias e acertadas, mais como umexército que voluntariamente se retira do que mesmo como um exército vencido. Tendo logo depois daquele combate deposto as armas em Matozinhos, ele ali mesmo se ocultou e muito pouco depois  ali mesmo faleceu.

Os rebeldes, porém, tinham feito grande medo ao governo; e se, como se diz, o medo é mau conselheiro; eu não duvido acrescentar que o medo foi sempre muito pouco cavalheiro. E disto foi uma das provas, naquela ocasião, o modo como foram tratados os prisioneiros de Santa Luzia pois que embora constituíssem eles o que havia de melhor na província e embora tivessem voluntariamente se entregado, além de outras picardias que sofreram nem sequer lhes dispensaram os ferros na sua condução para a capital. Grande foi, portanto, o terror que de todos se apoderou logo depois da vitória; e tão grande foi esse terror; que dar asilo a um rebelde pareceu ser um crime igual ao da própria rebelião. A pessoa, pois, que havia asilado a Galvão em Matozinhos parece que receiou de ser acusada de haver cometido esse tão grande crime, e o que é certo, é que por esse ou que por outro qualquer motivo, não só foi Galvão enterrado sem acompanhamento e sem honras; mas embrulhado ou cosido apenas em um simples lençol, como era o costume de enterrarem-se os escravos; mas até mesmo no próprio assento de óbitos, o seu nome ali foi dado como o de um escravo da fazenda, em que ele havia falecido.

E eis aqui está qual foi o triste e lastimoso fim do mais valente cabo de guerra da revolução mineira; ou como miseranda vítima de uma tão generosa causa escondeu-se seu nome debaixo da terra e morreu como escravo, aquele que tanto havia combatido pela liberdade, e que muito mais do que tantos outros era digno de uma estátua porque prudente e bravo, modesto e firme, Galvão possuía ainda um grande coração e uma alma verdadeiramente heróica. E eis aqui um exemplo apenas para que se possa conhecer o homem. Atacada a vila de Queluz por todos os lados, o exército da legalidade começou a recuar por toda a parte, até que por fim se concentrando no largo da Matriz fez desta uma espécie de fortaleza, donde com a artilharia de que dispunham, os legalistas varriam as ruas que iam ter ao largo.

Na rua Direita e quase que defronte da casa em que morei, havia um sobrado donde se avistava o adro e grande parte do largo: um filho de Galvão, o alferes Fortunato Nunes Galvão, penetrando naquela casa, trata imediatamente de fazer dela um ponto de apoio para atacar o inimigo, e apoderando-se ele mesmo de uma espingarda, e convertendo-se em atirador, logo que havia carregado a espingarda dentro da sala, vinha para uma janela da sacada que tinha a casa, e protegendo-se com o portal da mesma janela fazia com segurança a pontaria e atirava para a igreja. Tão incômodo para os legalistas tornou-se logo aquele tão terrível atirador, que resolveram, custasse o que custasse, pô-lo fora de combate.

Um soldado, portanto, saindo da igreja pelos fundos do adro, passa-se para o lado oposto ao da rua Direita; e cosendo-se com as casas e ocultando-se de todos os modos que pôde até chegar junto da casa em que depois vim a morar, aqui de novo atravessa o largo e sempre escondido pela casa, vai coloear-se na esquina que esta formava com a rua Direita. Ali colocado, o soldado fez exatamente o mesmo jogo que eslava o moço fazendo; e enquanto este amparando-se com o portal da janela apontava para a igreja, o soldado amparado pela esquina da casa apontava para ele; e disparando o tiro, o feriu, porém, em cheio.

Como a distância era muito pequena e pouco mais teria de dez braças, se é que realmente as tinha, o jovem Galvão caiu mortalmente ferido. Avisado que lhe morre o filho, corre o velho pai a vê-lo; e   mal tem tempo para lhe cerrar os  olhos. Terrível foi o golpe e o coração lhe estala. Mas como se tivesse pejo da sua própria dor, ele como o carvalho que se de-senraíza e não se verga, não chora o filho nem a si mesmo se lamenta; e dizendo apenas — é um que perco, mas três ainda me ficam para darem a vida pela liberdade da nossa pátria — silencioso  se retira; e vai de novo  combater. Este combate de Queluz é um daqueles muito poucos em que a verdade aparece em toda a sua nudez; porque havendo a seu respeito nada menos de três partes oficiais, nos pontos capitais são todas perfeitamente concordes. (grifo nosso).

Se, porém, todas são concordes nos pontos capitais e sobretudo na completa derrota que ali sofreu o exército da legalidade; nenhuma delas, entretanto, se ocupa dos pequenos incidentes, nem nos dá a menor notícia de um grande número de episódios mais ou menos interessantes que se deram naquele combate e que a tradição conserva. Em parte ao menos, eu poderia sanar essa lacuna; isso, porém, me levaria muito longe. Eu pois, deixando de parte tudo quanto sei, me contentarei apenas com o citar aqui dois fatos, dos quais o primeiro pode servir de argumento para aqueles que acreditam na fatalidade do nosso destino e o outro é uma das melhores provas de quanto é capaz o medo ou um terror pânico.

Em uma casa que havia e que não sei se ainda existe quase que defronte da cadeia, porém um pouco mais para o lado da igreja do Carmo, morava em 1842 uma pobre mulher. Quando começou o ataque da Vila, foi tal o susto que dela se apoderou, que não contente de fechar todas as portas e janelas, ainda procurou um dos quartos que mais recônditos ficavam no interior da casa, e ali foi se esconder metendo-se debaixo da cama. No dia seguinte quando se abriu a casa e que se procurou a sua habitadora, esta ainda se achava debaixo da cama; mas estava morta e banhada no seu sangue. Como se de propósito a procurasse, uma bala de peça ou de espingarda atravessando uma ou talvez mesmo muitas paredes a tinha ido ali alcançar; e ela desta sorte achou a morte no lugar justamente em que mais segura supôs guardar a vida. Quanto ao outro fato que se passou com o Tenente Coronel Luiz Gonzaga de Melo e que foi o próprio que mo contou, foi o seguinte:

Acossado por todos os lados, o exército da legalidade tinha todos, como já disse, se concentrado no largo da Matriz e ali se achava quando chegou a noite. Completamente desmoralizado para que pudesse ainda resistir e estando privado de mantimentos e absolutamente sem água da qual se achava cortado, os rebeldes contavam, que apenas amanhecesse, o inimigo se renderia à dis-creção.

E como supunham que este se achava completamente cercado no largo, descuidaram-se de segurar as saídas da povoação. Próximo, porém, ao fundo do adro, havia um beco muito estreito, escuro e íngreme, que descia para uma rua que levava à estradas de Suassuí; e apenas escureceu, a não serem os feridos e aqueles que preferiram se render e que no dia seguinte foram aprisionados em número de 200, todos os mais enfiaram por aquele beco e procuraram a estrada de Suassuí; onde apenas existia um piquete de quatro ou seis pessoas que ali estavam unicamente para vigiarem  quem entrava ou quem saía.

Os legalistas tinham alcançado o seu intenso e já davam graças a Deus de os haver salvo de um perigo que parecia sem remédio, quando o piquete pelo seu lado ao ver aquele borbotão de gente com o qual de todo não contava, antes de salvar-se, lem-bra-se de aproveitar ao menos os tiros que já estavam prontos e disparou as espingardas contra os primeiros que chegavam. Ouvindo aqueles tiros, os fugitivos acreditam que a estrada estava guardada com forças pelos rebeldes; e seguiu-se então uma das cenas mais indiscritíveis de terror, confusão e desespero; porque além de tudo, entre aqueles fugitivos havia também algumas mulheres.

Fazia parte desta multidão assim posta em tão terrível debandada, aquele Tenente Coronel Gonzaga, que julgando estar a estrada tomada, ficou algum tempo sem saber o que fizesse; até que sendo um perfeito conhecedor de todas aquelas localidades, lembrou-se de meter-se no mato e procurar a fazenda da Pedra que fica nas imediações das Taipas e que, pertencendo a parentes seus, poderia lhe servir de refúgio.

Ele, portanto, sem mais demora, meteu-se no mato; e disse–me, que durante toda a noite caminhou sempre e sem parar um só momento em direção às Taipas. Quando começou a aparecer esse clarear tão duvidoso que precede a aurora, lhe pareceu lobrigar um campo e esse campo lhe pareceu ser exatamente o pasto da Pedra; e sem mais demora para este se dirigiu.

Quando, porém, entra no pasto, e que ali dá os seus primeiros passos, vê diante de si um soldado que lhe apontava uma espingarda ao peito. A surpresa e o susto que este fato lhe causou, foi tal, que lhe faltando a voz para gritar ou ânimo para correr, estacou no mesmo lugar, e imóvel ali ficou até que afinal reconheceu que o soldado era um toco e a espingarda um galho seco que ainda o toco conservava.

É desnecessário dizer, qual não foi o alívio que sentiu a sua alma já tão atribulada, quando ele se viu livre daquele perigo embora cômico, tão terrível para ele. Esse alívio porém, bem pouco durou ou não passou de um simples alívio puramente momentâneo; porque livre daquele perigo e pondo-se, sem mais demora, a correr para a casa que ficava em baixo e que ia se tornar para ele a salvação, de repente reconhece, que em vez da fazenda da Pedra que fica a cinco ou seis léguas distante de Queluz, ele estava descendo, pelo contrário para a chácara das Bananeiras, que apenas dista um quilómetro ou pouco mais daquele lugar; e embora morto de fome, de sede, de sono e de cansaço, teve de novo de meter-se no mato e de ir já não sei onde nem como procurar outro  refúgio.

E já que acabo de falar deste combate de Queluz e da revolução de Minas, quero aqui fazer menção de um dos muitos parentes meus, que fui encontrar no município de Queluz; e que além de ter sido um daqueles com quem tive mais frequentes relações e de ser dotado de um caráter bastante original, ainda alcançou naquela revolução uma notoriedade mais ou menos extensa. Este meu parente era o Tenente Coronel José Antônio de Rezende que era casado com uma parenta (creio que neta) do Ti-radentes, e que tornou-se muito conhecido na revolução debaixo do nome de capitão dos óculos, porque, contra o costume da provín-cia, andava sempre de óculos, e em todos os combates em que entrou nunca deixou de mostrar uma bravura extraordinária. Baleado em uma coxa no ataque de Sabará, não pode o Capitão Rezende entrar em fogo ou antes, pôr-se à frente da sua companhia no combate de Santa Luzia; mas não lhe sofrendo o ânimo de ficar inerte, assentou, já que não podia comandar a sua gente, de se tornar ainda que um pouco de longe, um franco atirador. Tomando, portanto, uma reúna e um grande número de cartuchos, foi colocar-se em uma posição donde pudesse atirar sobre as forças do governo; e segundo dizia ele, quantos tiros deu, foram outros tantos carapuças que lançou por terra.

Carapuças era sempre o nome que ele dava aos soldados de linha, que, naquele tempo, em vez de bonés ou barretinas usavam de uma espécie de capacetes ou de mitras, que não deixavam de ter uma tal ou qual semelhança com as nossas antigas carapuças. Baleado como estava, foi um dos primeiros aprisionados; e dizia ele que foi nessa ocasião muito e muito insultado pelos carapuças; mas acrescentava que nem sequer ouvia o que eles diziam; porque naquela ocasião toda a sua atenção e todo o seu cuidado apenas concentrados no chapéu do Chile que levava e em cujo forro estavam duzentos ou trezentos mil réis que era tudo quanto então possuía e que tanta falta lhe poderiam então fazer; e por isso, enquanto o descompunham, o que ele fazia, era segurar com as duas mãos o chapéu contra o peito, para que não lho tirassem nem lhe pudessem ver o fundo.

Nem era este meu parente excelente atirador, unicamente como soldado ou de espingarda; mais o que muito mais admira pela dificuldade e muito mais talvez ainda pela singularidade, era também um insigne atirador de bodoque; de sorte que achan-do-se em sua casa um francês, e estando um cabrito bastante longe a roer uma planta; sem mais demora, ele toma o bodoque; faz a pontaria; e tão certeira foi esta; que a pelota foi dar no focinho do cabrito; o que produziu no francês um tal entusiasmo ou uma tão grande admiração; que este não sossegou, enquanto o meu parente não lhe deu ou não lhe vendeu o bodoque para levá-lo para a França.

Depois de velho, a sua maior distração era a de fazer palitos; e quando ia visitar-me, já eu sabia que tinha sortimento para muito tempo. Assim como em toda a parte, em Queluz todos os rebeldes foram despronunciados; mas aqui como em outros lugares, se exigia como condição da despronúncia que os rebeldes assinassem um termo em que declaravam que haviam sido iludidos e que não havia quem mais do que eles, amasse as leis e o imperador, etc.”.

Presenteia-nos com o texto, o senhor Francisco de Paula Ferreira de Rezende. Alguém de ainda falarei em outras edições deste Jornal Correio de Minas.

Luiz Otávio da Silva

Pesquisador

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