Além da névoa cinza que a fábrica de cimento espalha, produtores rurais denunciam contaminação da água, que inviabiliza atividades de cachaçaria. Empresa nega
As marcas da extração de calcário e da produção de cimento são o cartão de visitas para quem passa pela comunidade de Boca da Mata, em Arcos, Centro-Oeste de Minas. Seja pelo ar coberto por uma névoa acinzentada ou pela poluição da água que afeta a população, a presença da indústria na região significa um estorvo para os moradores da área. Uma família que se instalou no local há 70 anos e implantou uma cachaçaria tradicional na cidade se vê obrigada a paralisar a produção e cogitar deixar a terra por conta da contaminação da água captada no terreno após a instalação de fábrica de cimento da CSN na vizinhança.
A história da “Cachaçaria do Criolo” começou em 1975, criada por Wilmar Arantes. Ele já morava no local desde a década de 1950, quando começou a produção da bebida, feita com cana-de-açúcar plantada no próprio terreno. À época, a região tinha um desenho bastante diferente, sem a exploração mineral e a fábrica de cimento.
No mesmo ano em que Wilmar iniciou a produção de cachaça, a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) se instalou na região para extrair calcário e, em 2010, a implantação de uma fábrica de cimento ampliou significativamente os impactos na região. Foi quando a relação entre a empresa e a Cachaçaria do Criolo ficou insustentável.
“Começamos a ter problemas com a nossa água. Na cisterna, de onde a gente tirava água para a casa e para a fábrica de cachaça, começou a aparecer uma nata e uma ferrugem muito concentrada. Então, fui até o responsável da CSN e disse pra ele que a represa estava contaminando nossa água, mas me disseram que eu estava equivocado”, contou Wilmar Arantes Junior, filho do fundador da cachaçaria e atualmente à frente do negócio familiar.
A suspeita da família era de que uma represa utilizada para lavagem de material e produção da indústria, localizada alguns metros acima do terreno da cachaçaria, estivesse afetando a água da casa, que ficou imprópria para consumo. “Eu não tomava mais a água, porque a gente estava tendo muito problema de pedras nos rins e infecção urinária. Começamos a comprar água mineral para tomar, ficamos quatro anos comprando direto”, conta Edilse Rodrigues, que também trabalha na produção da bebida e é esposa de Wilmar Junior.
ÁGUA CONTAMINADA Após denúncias protocoladas no Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) e na Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), a família conseguiu que a CSN realizasse um estudo para averiguar a situação da água usada pela família. O resultado apontou que há relação entre a atividade da empresa e a contaminação da água utilizada tanto para consumo doméstico quanto na cachaçaria. Cobalto, ferro, manganês e níquel, todos eles em concentrações acima da considerada aceitável para consumo humano, foram detectados na amostra da água que abastecia a casa e a unidade de produção da família havia quatro décadas.
A solução encontrada foi oferecer água à família por meio de caminhões-pipa. A CSN entrega 4 mil litros por dia, mas a saída não foi de todo conciliatória. Além de a quantidade ser suficiente apenas para o consumo dos seis moradores da propriedade, eliminando a possibilidade de continuar a fabricação da cachaça, a empresa começou oferecendo água de má qualidade.
“A Feam (Fundação Estadual do Meio Ambiente) intimou a CSN a ceder água num caminhão-pipa. São obrigados a oferecer 4 mil litros de água por dia e a água não era boa. Não era água potável, vinha um caminhão sujo. Só depois que arrumaram um caminhão com água limpa, mas antes não era. Até disso, a gente teve que reclamar, estava vindo barro. Era uma humilhação”, conta Edilse.
Além da poluição do lençol freático, os moradores também apontam para a contaminação do Rio Candonga, que é responsável por parte do abastecimento da cidade de Arcos. “Aqui na frente tem uma lavação de caminhão. Eles lavam os caminhões todos sujos da cal e do cimento e não tem uma contenção dessa água. A sujeira escorre diretamente para o rio. Tem gente que precisa da água desse rio. É um estado de calamidade pública. A gente chama a Polícia de Meio Ambiente, faz o B.O. (boletim de ocorrência), mas não adianta nada”, protesta Wilmar Junior.
OUTRO LADO Em nota, a CSN Cimentos informa que, mesmo considerando não ser possível tecnicamente correlacionar tais alterações aos rejeitos presentes na barragem ou mesmo às demais operações da companhia, iniciou uma série de estudos e investigações para tentar determinar a fonte da contaminação. A empresa afirma que possui outros três poços de água num raio de 500 metros do ponto de coleta de água na propriedade da cachaçaria, que não apresentam quaisquer alterações em seus parâmetros.
No texto, a CSN ainda informa que apresentou um Plano de Recuperação de Área Contaminada (Prac) no ano passado para avaliar e monitorar a qualidade da água na região. Segundo a empresa, “os estudos realizados até o momento indicam que as concentrações de ferro e manganês não têm relação com as operações da Companhia ou com a antiga barragem, podendo estar, inclusive, relacionadas a fatores naturais como, por exemplo, a composição mineralógica das rochas e dos solos presentes na região”.
Até que haja uma solução definitiva, informa a CSN, a empresa segue suprindo a propriedade com 4 mil litros diários de água potável, além de ter perfurado um novo poço na área. A empresa afirma que não foi constatada alteração na água retirada desse poço.
Projeto de vida interrompido
Desde 2019, após 44 anos de produção ininterrupta, a cachaça Acaciana parou de ser produzida. Sem água para a receita e para o sistema de produção da bebida, Wilmar Arantes viu o projeto de sua vida ser interrompido. Hoje, a família vende o estoque armazenado, mas sabe que o produto está com os dias contados.
“Esses 4 mil litros diários não são suficientes para fazer a pinga. A CSN já perguntou quanto a gente precisa para a fabricação e acha muito, mas (os representantes da empresa) não sabem nada sobre o processo. Estão oferecendo o suficiente pra gente sobreviver, mas não para manter o trabalho. A gente vive disso aqui. A fábrica é de 1975”, explica Edilse.
Como se não bastasse perder a fonte de renda, a família havia feito investimentos recentes na cachaçaria. Em 2009, o Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA) fez uma vistoria na fábrica e demandou que toda a estrutura fosse trocada por materiais de aço inoxidável. A adequação foi finalizada em 2011 e mexeu nos cofres da empresa familiar.
Além de a contaminação da água ter interrompido a produção, Edilse acrescenta que os metais presentes nela acabaram por avariar os materiais recém-instalados. “Como a água estava contaminada, a caldeira apodreceu, o encanamento apodreceu. Foi um grande prejuízo”.
“A vida do meu pai está aqui, até chorar ele chora. A gente perdeu o entusiasmo. Meu pai não quer vender, mas é o que falei pra ele: ‘Pai, infelizmente, neste nosso país, as mineradoras que mandam. Mesmo você estando aqui antes, a lei está cega’. As empresas aqui ficam contra a gente, falam que a gente está contra o emprego, jogam a gente contra as pessoas”, desabafa Wilmar Junior.
O pai, Wilmar Arantes, tem 88 anos, a esposa dele, Maria Ferreira, 86. Duas histórias construídas na região da Boca da Mata e viradas de ponta-cabeça após a chegada das mineradoras. Em meio ao imbróglio com a CSN, uma das soluções apresentadas foi sair da região e vender a propriedade à empresa. Novamente, a discussão está longe de ser amigável.
“Em 2019, um representante da empresa veio aqui e se ofereceu para comprar a propriedade. Mostrei pra ele todo o terreno. Aí disseram que eu poderia buscar um corretor para avaliar o terreno. Nossa área aqui está em perímetro industrial, então é um terreno valioso e temos uma fábrica que faz uma cachaça premiada como uma das melhores de Minas Gerais. Temos também a fábrica de rapadura. Eles acharam que pedimos muito pela propriedade e não quiseram nem fazer uma contraproposta”, afirma Wilmar Junior.
O produtor rural complementa dizendo que pretende sair do local, pois as condições de vida são muito precárias com a poluição sonora, do ar e da água, mas que a ordem da transação com a CSN não está correta. “A empresa tinha que pagar o que a gente decidisse que é o valor da propriedade e também tirar as pessoas antes de causar o dano”.
Poluição generalizada e sem trégua
As janelas da casa onde moram Wilmar Arantes e Maria Ferreira são lacradas. Idosos, eles sofrem com problemas respiratórios causados pela poeira constante no ar do entorno da CSN. Durante a estação seca, a situação fica ainda pior. Em medição realizada por empresa de gestão ambiental em setembro de 2021, foi constatado que a concentração de partículas no ar da região da cachaçaria foi de 1.172,06 microgramas por metro cúbico. É quase cinco vezes maior que o limite estabelecido pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama).
O barulho intenso da fábrica de cimento e do incessante trânsito de caminhões na região também é uma reclamação de quem mora próximo à CSN. “Eles estavam carecas de saber que a gente seria prejudicado. Tem uma correia que passa o dia inteiro fazendo barulho, é caminhão passando 24 horas. Você já ouviu falar de colocar brita no asfalto? Os caminhões destruíram o asfalto e eles jogaram brita para tapar os buracos. Aqui está podendo fazer tudo. Aqui não tem lei, infelizmente”, reclama Wilmar Junior.
FONTE ESTADO DE MINAS